Sandra Dani: uma vida em cena

 

“Me agrada trabalhar muito detalhadamente os personagens”

TEXTO Giuliana de Toledo (toledo.giuliana@gmail.com e @giutoledo)

FOTOS Mariana Gil

Trinta e oito anos de carreira, mais de 20 peças encenadas e cinco Prêmios Açorianos não são suficientes para que Sandra Dani aceite confortavelmente o título de diva do teatro gaúcho. Adepta à humildade e ao estudo constante, a atriz teve sua carreira revisitada em forma de livro no recém-lançado “Sandra Dani – Memórias de uma grande atriz” (Libretos), editado pelo jornalista Hélio Barcellos Jr e primeiro de uma coleção que pretende registrar figuras importantes do teatro no Estado.

 A madrinha da última edição do Porto Alegre em Cena recebeu a reportagem do Nonada na casa onde vive com o marido e companheiro de teatro, Luiz Paulo Vasconcellos, na Zona Sul da Capital. A conversa rendeu críticas ao sistema de ensino acadêmico do teatro, reflexões sobre o processo de criação e a revelação de desejos ainda por realizar.

Nonada – Como foi o processo do livro? Como foi repassar todas as memórias?

Sandra Dani – O livro foi resultado de dez entrevistas com o Hélio Barcellos Jr., que é um amor de pessoa, um jornalista excelente. A ideia foi do Luciano [Alabarse], de começar comigo uma série de livros e lançar um por ano durante o Porto Alegre em Cena, cuidando de preservar a memória do teatro com depoimento de artistas. As entrevistas foram aqui em casa, longas… E foi um trabalho muito interessante porque, na verdade, eu não me preparei para isso propositalmente. Isso me obrigou a fazer um exercício mesmo de memória. Eu falava em algumas coisas e voltava a falar sobre elas em uma outra entrevista, porque fazendo essa viagem no tempo, digamos assim, as coisas começam a vir com mais clareza. E, tem alguns escritos meus, poucos, no final do livro, que eu passei para ele. Alguns eu já tinha publicado, outros não. Alguns, incompletos, coisas mesmo que eu escrevi em qualquer folha, em qualquer lugar, como ideias para desenvolver. O que ele selecionou para o livro traz a minha ideia sobre o que é a criação, o que é o trabalho do ator, algumas inquietações, na verdade.

 Nonada – E esses escritos tu tinhas juntado com a intenção de fazer um livro algum dia? Tu ainda gostarias de fazer um livro?

Sandra Dani – Sim, era uma ideia, mas que carecia de sistemática [risos]. Agora sim, mais que nunca, eu gostaria de aproveitar o momento e aprofundar alguns aspectos que eu lanço ali, porque algumas ideias não estão desenvolvidas.

 Nonada – É projeto para breve?

Sandra Dani – Não, breve, breve não. Mas pretendo  reservaragora um período da semana para escrever e, depois, ter uma sistemática diária, porque sem isso tu não consegues.

Nonada – Qual é o teu processo de criação, é metódico ou varia a cada trabalho? Tu trabalhas todos os dias?

Sandra Dani – Ah, eu trabalho todos os dias e é bem sistemático. Fora do horário de ensaio, eu trabalho sozinha sempre, muito. Acho importante que tu possas fazer esse mergulho mais profundo. Me agrada trabalhar detalhadamente os personagens que tenho oportunidade de desenvolver… Os detalhes a nível de interpretação, de expressão corporal, do valor da palavra, do significado da palavra – não o significado que ela traz consigo, mas o significa que está atrás. Sempre me agradou trabalhar no sentido da pesquisa do meu corpo, que é o meu instrumento de trabalho. Não tenho, como o músico, um instrumento fora de mim. Sou eu mesma.

 Nonada – Tu te formaste em psicologia e depois entraste para a área das artes cênicas…

Sandra Dani – Eu me formei na PUC em psicologia em dezembro de 1970. Em janeiro de 71, eu tava fazendo vestibular para o DAD [Departamento de Arte Dramática da UFRGS]. Mas eu continuei trabalhando com psicologia na área clínica, mas depois eu comecei realmente a me direcionar mais para teatro. Mantive as duas profissões por um tempo até o momento que eu senti a necessidade de fazer uma opção clara, porque é impossível tu ter a mesma qualidade de trabalho nas duas. Tanto teatro quanto psicologia demandam tempo, estudo, tu tens que estar te atualizando sempre. Eu não abandonei a psicologia, porque eu trabalho muito com isso até hoje, ajuda muito.

 Nonada – Tu acreditas que a formação acadêmica é muito importante para a formação do ator?

Sandra Dani – Eu acho que a formação sistemática é muito importante, seja ela acadêmica ou não. A função da escola seria te fazer pensar um caminho. A escola tem que determinar com o seu corpo docente o que é essencial na formação do ator, por quais experiências ele tem que passar necessariamente para resultar em um bom ator, para depois dar o seu voo na área específica que ele quiser. Tem que ter conhecimento teórico que fundamente a reflexão sobre a sua prática.

Eu acho que a reforma universitária que aconteceu na década de 70 fracionou muito o ensino. Era época da Ditadura, a reforma vinha atender objetivos da Ditadura. A criação do sistema de créditos determinou que se acabasse a ideia de grupo, não se constitui mais uma turma. Isso evitava lideranças e desarticulava politicamente os alunos. Para as artes cênicas, eu acho que foi uma coisa muito ruim. Teatro é grupo. Mesmo que tu estejas fazendo um monólogo, há toda uma equipe por trás.

Eu acho que ensino acadêmico de teatro hoje no Brasil se voltou muito para a produção acadêmica, por uma exigência das universidades e da produção intelectual. Tu tens que ter muitos artigos publicados, uma produção docente qualificada, belas teses, teorias… E, muitas vezes, a prática fica em segundo plano. Então, vira um curso de gabinete. Uma teoria não tem sentido sem a prática. Ela nasce da observação da prática, não o contrário. Isso eu acho pernicioso. Vou usar um termo bem forte, mas acho mesmo.

Um professor de teatro não tem, necessariamente, que ser um ator, mas a prática docente também é importante. E eu vejo que a produção artística dos docentes é mínima, com raras e honrosas exceções. Penso que esse é um perigo muito sério e está passando da hora dos acadêmicos fazerem uma reflexão muito, muito séria sobre isso.

Nonada – Tu achas que isso se reflete no trabalho que se vê hoje nos palcos?

Sandra Dani – De certa forma sim. Eu trabalho com pesquisa, faço uma pesquisa detalhadíssima a cada espetáculo que tenho e adoro trabalhar com diferentes abordagens. Mas as pessoas às vezes colocam em cena um espetáculo que foi resultado de uma pesquisa. O espetáculo, então, não era o objetivo em si e deveria ser. Se não, ótimo: apresenta em sala de aula, apresenta para grupos específicos que vão avaliar a pesquisa. Não pode haver essa inversão. Tu vês técnicas muito bem executadas, mas que carecem de porquê.

E acho que, ao contrário, nos cursos que não são acadêmicos, isso não acontece. São grupos menores e há uma identidade muito grande dos alunos com o curso e com os professores. São alunos constituem uma turma, e isso muda realmente o caráter.

“Já me sentia a madrinha, porque o Porto Alegre em Cena nasceu aqui na minha casa”

Ouça um trecho da entrevista, em que Sandra dá conselhos a quem pensa em começar a carreira de ator:

[audio:sandradani.mp3]

Nonada – Durante o Porto Alegre em Cena, sempre há uma imensa procura por ingressos e a venda esgota-se muito rápido. Seria, então, o preço que afastaria o público do teatro?

Sandra Dani – Os preços do Porto Alegre em Cena, claro, são baratos se tu considerares que vais ver um Nekrošius [Eimuntas Nekrošius, diretor lituano] por 20 reais, mas o teatro local também tem preços assim ao longo do ano. Nosso teatro é muito barato, gente. Se a gente pensar bem, quanto a gente gasta quando sai para tomar chopp?

Acho que falta é muito planejamento do poder público. Tem que existir um compromisso maior, sério, definitivo do poder público com a cultura. Não pode ser um objeto apenas de uso político. Quando eles precisam, a cultura é uma vitrine. Isso tem que acabar. Cultura é um valor em si, tem uma importância fundamental na formação do homem em sociedade. Não existe país desenvolvido que não valorize a sua cultura.

A nível municipal, nós ainda temos uma política organizada e preocupada com a cultura. Agora, a nível estadual ou nacional, os percentuais para a cultura são ridículos. Ninguém pode fazer nada com a dotação orçamentária dirigida para a cultura. É a menor que existe entre todas as secretarias…

 Nonada – Ainda é muito difícil viver de teatro?

Sandra Dani  – É, eu acho admirável. Há grupos que vivem somente do seu trabalho, mas é bastante sofrido. Tu vives, mas a maioria sobrevive e lança mão de outros recursos também para poder se manter. Eu optei por ser professora e fazer teatro, mas isso é uma faca de dois gumes. Eu não posso dizer que eu vivi exclusivamente do palco. Mas, por outro lado, isso me deu a chance de escolher o que eu queria fazer, de poder dizer “isso eu quero” ou “isso eu não quero”, de fazer um trabalho de conteúdo… Não que eu vá fazer sempre coisas “sérias”, no sentido de “chatas” ou pesadas, posso fazer comédia – e faço. Falo de fazer pensando no teatro como um instrumento de transformação do homem.

Nonada – Tu nunca pensaste em trabalhar mais também para televisão ou cinema?

Sandra Dani – Teve um período mais produtivo para cinema na década de 70, início de 80, época em que as produções eram em Super 8. Porto Alegre tinha um trabalho muito intenso na produção de filmes Super 8, então, eu trabalhava muito com cinema. Era um trabalho bastante artesanal, sem nenhum patrocínio, e se conseguiam coisas muito bonitas, apesar disso.

Depois, houve uma interrupção. Eu fui para os Estados Unidos fazer o meu mestrado [na State University of New York], voltei e o pessoal daqui estava retomando o cinema com a Casa de Cinema.

Eu tenho feito muito pouca coisa em longas… Fiz “Quase um Tango”, do Sérgio Silva, que ainda não está no mercado, mas deve ser lançado em seguida. O que eu tenho feito mesmo é teatro, a minha área é teatro. Mas gostaria muito de fazer mais trabalhos em cinema, porque é uma linguagem que eu não conheço e aprendo muito. É ótimo.

Televisão eu só fiz quatro especiais para a RBS. Mas são coisas ocasionais, que não tem a continuidade que eu gostaria. Fora isso, televisão aqui não, porque não tem mercado. Nossos canais daqui não têm autonomia na produção de novelas ou especiais mais longos.

 Nonada – Na abertura do Prêmio Açorianos deste ano, foi dito que “Sandra Dani é a nossa Meryl Streep”. Como tu lidas com a ideia de ser considerada uma diva?

Sandra Dani – Meu Deus! Eu não me vejo assim, por favor… Primeiro que isso me deixa velhíssima! [risos] Isso de “diva”, “dama”, isso não, pelo amor de Deus [risos]. Realmente, não curto isso aí, sabe? Não acho necessário, não acho legal. Isso não me afeta. Eu sei que é uma forma até carinhosa das pessoas dizerem que reconhecem o valor do meu trabalho. Claro que fico contente… Depois de 38 anos, se o meu trabalho não tivesse resultado de alguma forma para as pessoas, seria muito triste, eu teria que desistir [risos].

Eu acho que eu consegui criar uma carreira, construir o meu trabalho, amadurecer dentro dessa perspectiva… Fiquei realmente muito emocionada quando o Luciano [Alabarse] me convidou para ser a madrinha do Porto Alegre [em Cena 2010]. Apesar de que eu já me sentia a madrinha, porque o Porto Alegre em Cena nasceu aqui na minha casa.

Eu fico realmente contente de fazer parte dessa história, de ser um agente. Independente se as pessoas, ou não, gostam do meu trabalho, eu faço parte dessa história. Então, isso me agrada, me faz bem.

 Nonada – Como tu fazes para te reinventar e para te manteres sempre atualizada depois de 38 anos de carreira?

Sandra Dani – [Suspiro] Pois é, essa é uma preocupação que tenho: não deixar que o meu trabalho envelheça. É estar trabalhando sempre, é ter um olhar muito crítico sobre o que faço. Eu costumo dizer que a dúvida é a minha grande aliada. Em cima da dúvida que eu trabalho. É um elemento fundamental, porque te faz pensar e olhar distanciadamente para aquilo que tu estás fazendo. O ator trabalha para dentro, para fora e devolve e vem e se distancia e retoma…

Nonada – Que personagem, que texto ou que autor tu sentes que ainda te falta fazer?

Sanda Dani – Tanta coisa… Eu gostaria imensamente de voltar a trabalhar com Beckett. Eu adoro Beckett. Existe um projeto, que não está em andamento, mas eu chego lá [risos]. Gostaria de fazer “Esperando Godot”. Gostaria e vou fazer, já botei na minha cabeça [risos]. Tenho que ir a campo agora… Acho ele um grande autor, e esse texto, especialmente, é belíssimo. Outro que eu gostaria muito de fazer é “Mãe Coragem”, do Brecht. Gostaria muito de fazer também um musical e me aventurar a cantar.

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