Jakob Von Gunten se confunde com Robert Walser?

Jakob von gunten pela primeira vez com tradução em português (Crédito: Companhia das Letras)

De certa forma, o fim trágico de Robert Walser (1878-1956), que morreu perdido na neve após fugir do hospício em que viveu por mais de duas décadas, pode simbolizar o quanto o escritor foi incompreendido em sua época. Porém, como no mundo das artes plásticas, as suas obras (mais ou menos como os quadros de pintores já falecidos) vem conquistando o merecido valor mais de um século depois de estrearem no universo literário.

Por mais que os seus primeiros romances tenham obtido ótimas resenhas dos críticos europeus, Robert Walser não pode ser apontado como um escritor de sucesso, sobretudo durante os anos em que se dedicou à literatura. Embora seus contos infantis sejam conhecidos e reproduzidos até os dias de hoje, como “Branca de Neve” e “A Bela Adormecida”, o sucesso das estórias é muito mais uma consequência dos desenhos produzidos pela Walt Disney do que pelo reconhecimento da sua criatividade. No entanto, a sua obra atualmente vem sendo estudada e – pela primeira vez – compreendida ao ponto de ser considerada fundamental para o conto contemporâneo de Franz Kafka, assim como para escritores brasileiros de vanguarda, como Oswald de Andrade.

Em 2011 chegou às livrarias aquele que é considerado o livro mais importante do escritor suíço: “Jakob Von Gunten” (Companhia das Letras), publicado originalmente em 1909. Por um lado, a demora da sua versão nacional comprova que a retomada e o reconhecimento das obras de Walser ocorreram de forma extremamente devagar, sobretudo no perímetro para além do europeu. Por outro, o livro, em forma de uma espécie de diário, simboliza os primórdios do estilo que seria consagrado pelas mãos de Kafka e receberia o rótulo de ousado no nosso país, quando Oswald de Andrade publicou “Memórias sentimentais de João Miramar” (1924).

O material publicado sobre a vida de Robert Walser, como ensaios e até mesmo outras obras literárias – inclusive uma delas assinadas por Walter Benjamin em 1929 –, é fundamental não só para o entendimento do que mais tarde formataria o seu romance mais bem sucedido, mas também os anos posteriores vividos no hospício alemão. Em um ambiente familiar turbulento, principalmente por conta dos problemas psiquiátricos da sua mãe (que cometeu suicídio quando Walser completou dezesseis anos), muitas das frustrações pessoais do escritor são repassadas e redimensionadas através de Jakob Von Guten, voz que assume a primeira pessoa no romance. Da papelaria onde o personagem (e o autor) trabalhou à escola de mordomos – profissão inclusive que o escritor chegou a exercer – em que se ambienta a estória.

Desde o início do relato, Jakob mora no Instituto Benjamenta, especializado em formar mordomos. Os rapazes internados usam uniformes e são doutrinados de modo ríspido pelos irmãos que administram a casa. O narrador, que frequentemente se mostra indeciso pelo caminho escolhido e a pedagogia autoritária dos professores, deixa entender que vem deu uma família rica, de origem nobre (o pai era do parlamento alemão). Porém, apesar do ambiente perfeito para um romance repleto de intrigas, sobretudo entre Jakob e seus colegas de personalidades tão díspares (e de origem muito mais humilde que a dele), o livro se afunda nos receios particulares e nos enigmas mentais do narrador. De certo modo, há uma nítida confusão entre o que representa as impressões de Jakob Von Gunten sobre o mundo retratado na obra e os dramas reais do próprio Robert Walser.

Robert Walser nunca foi reconhecido como um grande escritor em seu tempo (Crédito: reprodução)

O valor de “Jakob Von Gunten” está no tom angustiante e delirante que o narrador impõe na construção do seu dia a dia no Instituto Benjamenta e do relato dos seus sonhos mais inusitados. Não há como rotular de verdadeiro ou de fantasioso cada um dos curtos capítulos que compõem o livro, sobretudo quando Jakob revela um amor quase que platônico por Lisa Benjamenta, a administradora da casa. A personalidade confusa e esquizofrênica de Robert Walser, que ouvia vozes e chegou a tentar o suicídio diversas vezes até ser internado em um hospício por sua irmã, corresponde aparentemente e diretamente e a cada um dos pensamentos difusos de Jakob.

Não é à toa que “Jakob Von Gunten” é apontado como uma das bases da narrativa moderna desenvolvida com afinco no início do século passado. O limite entre o sonho e realidade, pioneiro na escrita de Robert Walser, seria mundialmente reconhecido (e prestigiado) na obra de Franz Kafka poucos anos depois. De certo modo, por mais que tenha deixado o Instituto Benjamenta no fim da obra, Jakob não abandonou (e nunca abandonará) o peso do passado que carrega – justamente a carga dramática e envolvente do livro. Coincidentemente como o próprio Robert Walser.

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