Nos vazios do teu deserto

Miguel Sousa Tavares é representante da nova geração de escritores portugueses (Crédito: Cia das Letras)

Por Edgar Aristimunho*

Existe na literatura um tipo de texto que convida o leitor a caminhar pelas planícies descampadas da alma humana. Nesse tipo de literatura, o leitor normalmente é arrancado de sua comodidade e é posto em movimento. Um desses livros é a recente produção literária do português Miguel Sousa Tavares, No teu deserto (Cia. da Letras, 2009, 128 pgs.). Um livro escrito ontem. Obra viva e que vive a tradição portuguesa. Como a nos dizer que apesar dos grandes romancistas do passado recente de Portugal (Augustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires), que também apesar da consistência do tempo de escritos fortes, históricos, políticos e intensos (José Saramago e António Lobo Antunes), apesar de toda essa tradição literária, autores como Inês Pedrosa, José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares e Miguel Souza Tavares fazem reviver o passado literário de glória de um país que nos deu Luis de Camões, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa. Um passeio pelo deserto de um livro que não se desaparece em nossas mãos depois da leitura.

Dentro de uma obra vasta, o livro escolhido de Miguel Sousa Tavares aqui tem uma particularidade pelo tema e pelo andamento. Nessa pequena novela que se passa entre a Europa ibérica e o norte da África, temos a garantia de uma viagem intensa sobre o mundo de sentimentos e afeições que caracterizam o homem na sua completude. A escolha do deserto como cenário contribui para reforçar o jogo inteligente de palavras contido no título (No teu deserto) e que impele toda a ação do livro do “eu” para o “tu”, fazendo deste um pequeno grande livro. A história é contada a partir das memórias de um jornalista que, anos depois, lembra os acontecimentos que o levaram a conhecer uma mulher mais jovem e a viver uma grande paixão enquanto juntos eles atravessaram o deserto africano. No caminho construído por suas lembranças, o narrador conta a história sentimental (e não só real) de uma viagem feita sobre o manto da cumplicidade e durante a qual o amor entre os dois floresce. Mas onde mesmo isso acontece? No deserto? E nos admiramos: Que lugar para um romance! É um estranho cenário para o nascimento de uma paixão, mas apesar das areias escaldantes e dos percalços da viagem dos dois amantes (que não se sabem amantes durante a viagem), Miguel Tavares nos conta em riqueza de detalhes esse acontecimento único: das dificuldades passadas juntas, dos encontros e desencontros, nas estradas vazias, do frio, da noite, e na imensidão do deserto, no cotidiano de viagem dura e cheia de improvisos, o autor faz surgir uma intimidade que se transforma em afeto. A leitura transforma-se assim em redenção para os leitores que tiveram a paciência de afastar a areia dos olhos para enxergar e chegar aonde o autor queria nos levar: em nós mesmos.

Miguel Sousa Tavares é um bom representante da nova geração de escritores portugueses. Desconhecido até 2004 no Brasil, teve inúmeras obras suas publicadas de lá para cá, entre elas Rio das Flores (2008) e Equador (2011). No caso dessa novela curta, o texto transmite a consistência das coisas que ficam gravadas na memória, como permanência, sentimento, experiência. Desse modo, é pertinente observar que a linha evolutiva e sentimental a qual se filia esse livro segue a literatura portuguesa da permanência, da memória, escola em que se enquadram as escritoras consagradas tanto ontem (Augustina Bessa-Luís) como hoje em dia (Inês Pedrosa). A literatura também é ternura e memória, mesmo se contar uma história de amor vivida por um homem no meio ambiente e na secura do deserto do Saara.

Definitivamente tocante, o livro de Miguel Sousa Tavares é uma obra que narra uma história ao mesmo tempo leve e pesada, seca e demasiada humana, simples e, por vezes, enredada em surpresas. Conta, enfim, a história de um amor que parecia impossível diante de tantas adversidades – e que nasce. Aliás, talvez seja esse o recado que o autor queira nos dar no início do livro, quando cita um trecho de poema de Fernando Pessoa que nos diz: “…qualquer que seja o destino daqueles que o amor levou (…) por certo eles foram mais reais e felizes”. Eis a marca de uma boa literatura: aquela que sabe transitar por todos os terrenos da vida, que sabe alcançar o leitor no deserto em que ele estiver.

* É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela Editora Dom Quixote o livro de contos “O homem perplexo” (2008) e participou da antologia “Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com).

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