Um ano de travessia – Literatura

No primeiro ano de publicação do site Nonada – Jornalismo Travessia, a literatura de língua portuguesa produziu pelo menos uns 30 livros que merecem estar em nossa estante, seja pelo acerto do escritor com os mecanismos narrativos, seja pelo inédito e inusitado do ângulo proposto. Na editoria de Literatura do Nonada escolhemos selecionar os maiores lançamentos no País durante o período de nossa curta, mas promissora, existência.  A seguir uma seleção com dez peças indispensáveis para sua biblioteca feita pelo nosso colaborador Edgar Aristimunho.

 Cidade Livre. Grande vencedor deste ano da Jornada Literária de Passo Fundo, o livro Cidade livre (Record, 2010), do escritor potiguar João Almino, é uma bela história sobre uma cidade tão árida: Brasília. A façanha alcançada por Almino não é pequena: ele concorreu com grandes escritores como Luiz Rufatto, Cristóvão Tezza e Rubens Figueiredo.  Mesclando a visão imatura de um menino com o amadurecimento do adulto, o narrador de Cidade livre – primeiro nome do Núcleo Bandeirante, uma cidade provisória destinada a ser destruída após a construção de Brasília – conta a problemática construção da cidade, os sonhos que embalaram sua criação mítica e o destino de homens que morreriam por ela. O livro prova que a capacidade de um grande escritor está em retirar lirismo do cerrado – literalmente.

 

 Deus de Caim. Relançado pela pequena editora Letra Selvagem em 2010, o romance Deus de Caim do matogrossense Ricardo Guilherme Dicke lançado originalmente em 1968 foi aclamado na época e agora como um criador de mundos. Autor falecido e injustamente desconhecido, Dicke tem agora sua obra apresentada ao público com a marca indelével da boa literatura. Daquela que consegue criar diversas instâncias, em que reverberam ações e sentimentos, em que a geografia de um território arruinado e distante conversa assoma-se ao homem e cria um “mundo rodando em sua roda”. Autor de uma escrita visceral e desconcertante, repleta de recursos estilísticos e dotada de uma linguagem que se distingue de tudo que se lê hoje na prosa nacional, Ricardo Guilherme Dicke merece os nossos aplausos por apresentar-nos algo novo. Algo que mexe com a mesmice imperante de nossos dias literários.

 

Passageiro do fim do dia. Atual vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura (2011), o livro Passageiro do fim do dia (Rocco, 2010), do escritor Rubens Figueiredo, é uma obra de puro lirismo literário. Passageiro do fim do dia tem início num fim de tarde, no centro de uma cidade grande. A bordo de um ônibus destinado ao bairro da periferia que se encontra em conflito, durante o trajeto aparentemente interminável, o protagonista Pedro será tomado por um novo conhecimento da cidade, das pessoas e de si mesmo. O livro narra viagem da qual todos nós saímos derrotados: a da consciência de nosso lugar no mundo. Obra extremamente importante pela prosa concisa de um autor do quilate de Rubens Figueiredo, Passageiro… é leitura que nos projeto sobre nossas próprias descobertas.

 

Uma duas. Considerada pelo crítico literário José Castello uma revelação dentro da mornidão em que se encontra a literatura brasileira hoje, Eliana Brum é a grande revelação do ano. Uma duas (editora Leya, 2011) é um romance consistente do ponto de vista do drama que narra a relação de mãe e filha. Transitando por um campo muito próximo do sentimento que deve guiar uma narrativa forte, que tenha algo para dizer, Eliana Brum é uma escritora para a qual o ato de escrever é um ato de superação. Segundo se pode desprende da leitura do romance Uma duas, fazer literatura não é apenas inventar tramas eletrizantes (como os grandes best-seller) ou teses impecáveis (para os artistas da forma), mas desinventar-se a cada palavra. Como fizeram escritores viscerais nas últimas décadas. Como fizeram Clarice Lispector, Hilda Hilst e João Gilberto Noll.

 

Anônimos. O último trabalho de Silviano Santiago, Anônimos (Rocco, 2010) retoma a trajetória de um dos maiores contistas da literatura brasileira. Com farta quilometragem no território do conto, Santiago consegue percorrer aqui trilhas inesperadas que reafirmam a sua individualidade criadora e versátil de um escritor que já escreveu obras poderosas como no seu último romance, Heranças (Rocco, 2008). Eis um trabalho acima da média da produção nacional, no qual o escritor nos conduz para uma subjetividade descentrada em que o jogo narrativo (autor, narrador, leitor) é feito com suprema delicadeza e profundidade, no qual a aparente superficialidade das histórias esconde a complexidade das personagens que, pouco a pouco, nos envolve nesses “nove contos e uma homenagem”.

 

 Se eu fechar os olhos agora. Vencedor de dois grandes prêmios nacionais, o Jabuti o São Paulo de Literatura, o livro Se eu fechar os olhos agora (Record, 2009), de Edney Silvestre foi elogiado por grandes e diferentes escritores, como Luiz Rufatto, Lya Luft e Lívia Garcia-Roza. O livro conta a história de dois meninos e a descoberta de um brutal assassinato. Os caminhos da investigação que se segue mostrarão um perverso painel de violência e corrupção, sexualidade e política. Um pouco (bastante) do Brasil. Em seu romance de estreia – isso mesmo – Edney conseguiu a façanha não só de ganhar importantes prêmios literários, mas também de construir uma trama eletrizante e ao mesmo tempo comovente. Quer mais?

 

 A máquina de fazer espanhóis Na literatura de língua portuguesa atual, a obra do português valter hugo mãe (assim mesmo, como prefere o escritor que apareça sua escrita) ganha cada vez mais espaço nas terras além mar. Em seu romance A máquina de fazer espanhóis (Cosac Naify, 2010) narra a história de antónio jorge da silva (de novo, minúsculas), um barbeiro de 84 anos que depois de perder a mulher, passa a viver num asilo. Sozinho, mas sem sucumbir ao pessimismo, silva se vê obrigado a investigar novas formas de conduzir sua vida. Ele, que viveu sob o peso da ditadura salazarista, faz também uma dura revisão de seu passado e de toda uma geração – não sem notar que o pessimismo sobre o papel de Portugal no mundo exacerbou-se. Considerado o acontecimento literário de 2010 em Portugal, a máquina de fazer espanhóis foi o segundo livro de ficção mais vendido naquele ano no país.

 

 Azul-corvo. Outro grande lançamento do último ano é Azul-corvo (Rocco, 2010), da escritora Adriana Lisboa. Trata-se de um livro em que a autora, dona de uma prosa consagrada por livros como Rakushisha e Um beijo de columbina, alcança a mágica de um lirismo que cultiva o desencanto sem tampouco cair em pieguices literárias. Como observou a crítica, na obra de Adriana Lisboa “as influências literárias não se explicitam, porque a boa literatura prescinde de qualquer exibicionismo”. Em Azul-corvo Adriana Lisboa retoma o seu caminho de construir uma obra sólida a partir dos desdobramentos temporais e questionamentos da narradora, que vai ao passar do livro revelando-se ao leitor em seu mundo de desassossego e êxtase.

 

 Um erro emocional. Escritor consagrado após o aclamado O filho eterno, Cristóvão Tezza surge agora com o lançamento de seu mais recente romance, Um erro emocional (Record, 2010) narra o romance narra a relação entre Paulo Donetti, famoso escritor, e Beatriz, fã dele. A trama se passa toda numa única noite, no apartamento de Beatriz. Definitivamente, nada de muito importante acontece, mas pela mente dos personagens passa um turbilhão de reflexões e sentimentos. É uma trama que esconde inúmeras possibilidades às quais nos agarramos. Um grande acerto – e um próspero acerto – na literatura brasileira do último ano.

 

 Catatau. Por fim, mas nem por isso com menos importância, o relançamento de Catatau (Iluminuras, 2010) de Paulo Leminski é um acontecimento literário para ser comemorado não só hoje, mas daqui para frente e todo. Afinal, o livro escrito por Paulo Leminski em 1975 teve poucas edições, tendo ficado mais tempo fora do circuito editorial do que o contrário. Agora ele agora retorna ao público – pelo menos àquele leitor que se dispuser a percorrer a viagem experimental e alucinógena de Leminski. Quase inclassificável por sua revolução linguística, este romance de faceta histórico-revolucionária, composto ora em forma de canto, ora em forma alegoria histórico-circense, por vezes instância criadora de neologismos atrás de neologismo, chega a ser uma flor máxima de nossa raiz antropofagia, este libelo das letras nacionais teve a ousadia (e a capacidade) de conseguir explicitar em forma de romance toda uma forma de apropriação cultural. Por tudo isso, o texto de Leminski é considerado impenetrável por muitos, ao mesmo tempo em que não conversa com nada publicado antes dele (e nem depois). Deixe de lado então todas as opiniões já ouvidas e divirta-se com o bom humor de um livro que narra a suposta vinda de Descartes para o Nordeste brasileiro do século XVIII.

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