Quando tanto faz

Trata-se do relançamento de duas novelas de Reinaldo Moraes (Crédito: Divulgação)

Por Edgar Aristimunho*

Entre os projetos que ocuparam as editoras brasileiras em 2011, o lançamento da coleção Má companhia da Cia. das Letras chama a atenção pela qualidade dos títulos já lançados. Entre os consagrados, estão O invasor e Não há nada lá, mas também podemos encontrar outra pedra preciosa: Tanto faz & Abacaxi (Cia. das Letras, 2011, 337 pg.). Os dois livros de Reinaldo Moraes, reunidos agora em publicação única, andavam desaparecidos das prateleiras, talvez perdidos em alguma das tantas viagens do protagonista (único também)… Bom, mas não vem ao caso saber as razões de seu desaparecimento, mas sim que contamos novamente com esse ótimo exemplo da influência beatnik na literatura brasileira – marca registrada que define o texto forte de Reinaldo Moraes, autor do excelente Pornopopéia (Objetiva, 2009), outro grito sufocado dentro das letras nacionais.

Tanto faz & Abacaxi é o relançamento de duas novelas de Reinaldo Moraes, autor cultuado nos anos 1980 e que agora tem sua inquietante obra relançada. Com pequenos retoques de revisão pelo próprio autor, esses livros contam duas histórias que dialogam entre si. No primeiro livro, Tanto faz, Ricardo de Mello é o herói-narrador, uma espécie de eterno garotão à beira dos trinta que deixa para trás a burocrática rotina de um emprego em São Paulo para voar pelo Atlântico e pousar em Paris. Sua desculpa é uma bolsa de estudos num curso profissional, mas os próprios acontecimentos narrados o levarão a abortar a ideia. Por trás dessa aventura em terras francesas, encontra-se um ambicioso projeto pessoal de transformar-se em escritor. Por isso, ele logo abandona o projeto de faculdade de economia para atirar-se numa vida desregrada, sem limites, animada aqui e ali por loucas aventuras, bebidas, drogas e dezenas de garotas que cruzar por seu caminho. Passado um ano de estrepolias na Paris dos sonhos malucos, é hora de encarar a dura realidade: voltar para casa. Aqui começa a história de Abacaxi, o segundo livro reunido. Durante o seu retorno, a viagem é marcada por uma longa escala e por novas experiências adquiridas na cidade de Nova York, depois no Rio de Janeiro, onde o narrador viverá suas melhores e mais hilárias passagens pelo mundo das drogas, sexos e… vejamos bem, tanto faz… Porque Abacaxi é no fundo um título bastante apropriado para simbolizar não só a visão quase estrangeira (estranha) que o protagonista tem do Brasil, mas uma imagem que mostra seu próprio desprendimento e escracho com relação ao mundo prático (e careta) ao seu redor.

Autor tem influência da literatura beatnik (Crédito: Arquivo)

Livros considerados transgressores para a época e ainda hoje capazes de chocar qualquer cidadão de bom senso (para os que procuram bom senso na literatura), Tanto faz & Abacaxi escancaram o talento de um grande escritor, com seus achados linguísticos, diálogos hilários e um cruzamento vertiginoso e saboroso entre alta e baixa cultura – algo abandonado pelos autores de hoje, talvez à exceção de João Paulo Cuenca (Corpo presente) e de Santiago Nazarin (Feriado de mim). A linha evolutiva a qual pertence as obras como Tanto faz e Abacaxi mergulha de corpo e alma, suor e lágrimas (bem mais suor, bem menos lágrimas, sejamos justos) na linhagem da literatura norte-americana que ficou conhecida como geração beat, ou literatura beatnik, romances que buscavam caracterizar o submundo de juventude anti-conformista a partir de relatos de personagens em movimento, em busca, em constante inquietação com a oferta pobre do mundo em que vivem.

Resgate importante de nossas letras, o relançamento de Tanto faz & Abacaxi é uma preciosidade para o leitor que está em busca do tempo perdido, não o de Proust, não o de lirismo do escritor francês, mas de bons e profundos socos no estômago de uma geração que encarou o relato literário como uma folha para a libertação pela negação ao consumismo, ao óbvio, ao clichê. Desse modo, as novelas e os romances de Reinaldo Moraes registram em nossa literatura um dos textos melhores produzidos no sentido underground e transgressivo da palavra; uma literatura nascida nos loucos anos 1980, ainda ontem, mas que bem poderia ser hoje, se você quiser, se você desgrudar da tela e abrir os olhos ao seu redor, descascar um abacaxi e tanto faz.

* É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela Editora Dom Quixote o livro de contos “O homem perplexo” (2008) e participou da antologia “Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com).

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