Recortes | Comics – Super-heróis gays e o mercado editorial estadunidense

O Lanterna Verde, Allan Scott, e seu namorado, na revista Earth 2

Em questão de dias – já faz umas duas semanas agora, na verdade – as duas maiores editoras de quadrinhos estadunidenses deram grandes passos em direção a uma promoção dos direitos homossexuais. A Marvel anunciou o casamento do Northstar (cujo nome em português eu me recuso a utilizar) com seu namorado; a DC anunciou que, no reboot do personagem original, o Lanterna Verde seria gay.

Tudo muito bom, tudo muito bem; o fato de ser uma estratégia interesseira para arrecadar público e ganhar mais dinheiro em cima disso não diminui a iniciativa. Utilizar personagens secundários (e no caso da DC, em um universo paralelo, uma revista de bem menos circulação) para tentar conquistar um público homossexual não é exatamente errado. Só não é a estratégia mais efetiva.

Capa de edição de Astonishing X-Men com o casamento de Northstar (Divulgação)

Não gosto que as pessoas fiquem pensando que isso foi feito porque as duas editoras são tão boazinhas e adoram o público homossexual. Elas adoram compradores, ponto. Foi uma jogada de marketing para tentar salvar uma indústria que já há muito vem decaindo – e foi uma estratégia muito bem calculada. Houve muita pesquisa para saber qual seria a aceitação do público quanto ao tratamento de homossexuais, e apenas depois de essas pesquisas revelarem que ninguém teria nada contra, que as vendas não cairiam, essas revistas foram feitas (ou antes disso, anunciadas).

Não é um ato vanguardista, não é uma afirmação social ou política, não é um sinal de mudança na indústria. É apenas uma adaptação a uma mudança social refletida também no público leitor de quadrinhos. Esses heróis, no entanto, ainda são mais isca para público do que de fato gays. Gays não se identificam com esses personagens assim como negros não se identificam com personagens negros – e pelo mesmo motivo. Eles não são verossímeis pois são escritos e desenhados por pessoas que não conhecem a realidade específica que estão escrevendo.

(Não preciso nem falar da representação da mulher em quadrinhos de super-heróis, preciso?)

não, não preciso não
Emma Frost (mas também procurem Power Girl como exemplo. Ou ainda o genérico Loira Peituda)

Scott McCloud, teórico de quadrinhos e quadrinista inovador, defende, em seu livro Reinventando os Quadrinhos, exatamente isso. Se gays e negros (na verdade, qualquer grupo social) querem ter personagens que sejam autênticos e verossímeis para eles, devem escrever quadrinhos. E a inserção deles com esse objetivo na indústria editorial é difícil – o mercado (burro) não gosta de revoluções sociais, mesmo aquelas que podem ajudar a salvar um sistema em decadência. Por isso McCloud defende também o melhor aproveitamento da internet – criando um atalho entre o produtor e o leitor, fugindo das grandes empresas.

Assim, um autor gay poderia espontaneamente criar uma história com personagens gays; ela seria mais autêntica, mais verossímil, mais socialmente relevante e pareceria mais interessante para o público – gay ou não. Não um personagem que é hétero em absolutamente tudo na história, exceto o fato de ser gay, apenas citado uma vez ou outra aleatoriamente, sem ter nada a ver com a narrativa. A atitude da DC e da Marvel, por louvável que seja, é sim interesseira e não evidencia qualquer tentativa de mudança por parte das editoras.

claro q o nome dele é black panther
Black Panther e a Tempestade, que, claro, se casaram

Todos os grupos sociais (as minorias, no caso) sofrem disso. Não são escritos por alguém com conhecimento de causa, por alguma iniciativa própria, falando de temas reais para aquele grupo. Não representam aquela minoria em nenhum aspecto. Essa representação só aconteceria de fato com autores que entendessem daquilo que escrevem. Essa autenticidade seria inclusive mais efetiva para o objetivo final das editoras – angariar novos públicos leitores.

Se por um lado a internet propicia que uma produção espontânea independente alcance (ou mesmo crie) um público específico que se identifique, por outro lado, essas produções (e elas existem) não chegam ao mercado editorial. É um ciclo vicioso. O público, que, pelo menos por enquanto ainda prefere o quadrinho em papel, não cresce muito rápido. Os quadrinhos na internet só ganham uma versão em papel se têm um público grande. E o público não cresce porque ainda não existe a revista física. Certamente, assim que o público for grande o suficiente, as editores contratarão desenhistas e roteiristas independentes (sejam homens, mulheres, gays, árabes, negros, latinos, e, é claro, tenham várias visitas diárias em seus sites). O mercado sempre se apropria de formas não-mercadológicas que fazem sucesso.

E, até isso acontecer, eu vou contar quantas vezes o Northstar ou o Lanterna Verde citam seus respectivos “amigos” nas histórias – garanto que não serão muitas.

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