Cobertura Oscar 2013 | Kathryn Bigelow e o vácuo moral

O Nonada segue a sua cobertura do Oscar 2013 com o filme A Hora Mais Escura, que concorre em 5 categorias (Filme, Atriz (Jessica Chastein), Roteiro Original, Montagem e Edição de Som). Acompanhe-nos para ficar por dentro dos filmes que tem chances (ou não) de levar alguma estatueta para casa.

"A Hora Mais Escura" evita transformar seus protagonistas em referências morais. (Crédito: divulgação)

A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty, EUA, 2012)

Direção: Kathryn Bigelow

Roteiro: Mark Boal

Com: Jessica Chastein, Jason Clarke, Jennifer Ehle, Kyle Chandler, Harold Perrineau, Reda Kateb, Yoav Levi, Scott Adkins, Mark Strong, Édgar Ramírez, Chris Pratt, Joel Edgerton e James Gandolfini.

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Há várias características que Guerra ao Terror, brilhante trabalho anterior da diretora Kathryn Bigelow, divide com este A Hora Mais Escura: ambos conferem grande importância ao procedure, soam quase documentais devido à precisão com que constroem seus acontecimentos e têm, como centro de suas narrativas, personagens fortes e obcecados por suas profissões. Além disso, Bigelow e o roteirista Mark Boal, ao contrário de realizadores como Oliver Stone (que sempre faz questão de carregar sua opinião nos projetos que assume), evitam fazer discursos ideológicos escancarados em seus filmes, permitindo que a obra fale por si mesma – o que levou Guerra ao Terror a ser mal compreendido por vários espectadores, que o encararam como uma peça pró-intervenção no Iraque (apesar de, na minha opinião, a epígrafe e o desfecho angustiante do longa deixarem pouca margem para dúvidas).

(Crédito: divulgação).

Em A Hora Mais Escura, no entanto, Bigelow e Boal entram numa questão infinitamente mais controversa ao enfocarem a longa caçada ao terrorista Osama bin Laden – e a polêmica que o filme despertou pelo retrato que faz da tortura lembra, em parte, a repercussão de Tropa de Elite. Assim como no caso da obra de José Padilha a glorificação da violência policial tinha menos a ver com o filme do que com as ansiedades da “classe-média-que-sofre” com a insegurança, corrupção e “tudo isso que está aí”, o filme de Bigelow acaba sendo vítima da própria acuidade factual: fica claro que, naquela situação, não existe inocência ou altruísmo, mas um absoluto vácuo moral. Assim, ao evitar criar personagens heróicos ou de fácil assimilação emocional para o espectador, Bigelow transmite sua mensagem de forma sutil. Portanto, não é de estranhar que o filme também ganhe interpretações distantes de seu propósito, como se fosse uma “reabilitação do governo Bush”.

Embora possa cair numa interpretação perigosa (ainda que incorreta) de “os fins justificam os meios” em seu sentido mais extremo, A Hora Mais Escura tem méritos cinematográficos evidentes. Iniciando com uma tela preta acompanhada de gravações telefônicas de vítimas do 11 de setembro de 2001, o filme mantém um ritmo controlado capaz de manter o espectador sempre tenso e à espera do pior ao longo de suas mais de 2 horas e meia – e mesmo nos momentos em que se torna mais repetitivo, isso nada mais é do que um reflexo da exaustão da protagonista em sua interminável missão.

Falando na agente Maya, é preciso dizer que Jessica Chastein oferece uma performance das mais corajosas, não hesitando em externar as características menos nobres da personagem. Mesmo exibindo um claro desconforto diante da tortura (diferente de seu colega Dan, que executa a tarefa com frieza profissional e um levíssimo ar de tédio), a moça não levanta um dedo contra os procedimentos – e ao perder uma colega num atentado suicida, ela parece levar a investigação para o âmbito pessoal, como uma justiceira (“Vários amigos meus morreram nessa missão. Acredito que fui poupada para terminar a tarefa.”, diz ela em certo momento). Tornando-se cada vez mais obsessiva com a perseguição à medida que os anos passam (repare na fala impiedosa da moça para um soldado que invadirá a fortaleza na qual bin Laden se esconde), Maya sequer parece ter uma vida pessoal; o trabalho define sua existência numa medida que supera até mesmo o sargento William James de Jeremy Renner em Guerra ao Terror – o que conduz à uma cena incrivelmente amarga no interior de um avião, em que a moça constata o absoluto vazio de sua vida.

(Crédito: divulgação).

Com uma fotografia excelente de Graig Fraser, que frequentemente coloca os personagens em ambientes de luz fraca de modo a sugerir seu caráter dúbio, merece especial elogio a decisão de limitar o uso de câmera na mão à sequências em que isso se aplica. E se a montagem de Dylan Tichenor e William Goldenberg (este último também indicado ao Oscar por Argo) faz um excepcional trabalho ao permitir que vários dos atentados vistos ao longo da projeção surjam de forma inesperada, chocando justamente por sua natureza aleatória, peca brevemente no ataque à base militar no Afeganistão, telegrafando o que vai acontecer muito antes que o caos tome conta da tela. Finalmente, Bigelow conduz as cenas de ação com firmeza invejável, com três sequências merecendo destaque: a fuga de Maya da explosão de um hotel em Islamabad, o atentado contra a agente na saída de uma garagem e, claro, a invasão à fortaleza de bin Laden, que, durando mais de vinte minutos, é especialmente eficaz ao permitir que o espectador compreenda a lógica da operação enquanto é deixado literalmente no escuro (enquanto o brilhante design de som ressalta os menores ruídos em meio ao silêncio sepulcral quebrado por tiros, explosões e choro de crianças).

Evitando em qualquer momento exibir bin Laden na tela (tornando, assim, a perseguição ainda mais abstrata), Kathryn Bigelow entrega ao espectador um filme de guerra adulto e um denso estudo de personagem – e o fato de não sentirmos que a morte do terrorista é algo a ser celebrado evidencia as intenções sérias da cineasta: ao invés de nos sentirmos recompensados pelas ações da protagonista, o que sentimos é o vazio de sentido ao percebermos que, para punir o mentor da morte de quase 3000 inocentes, montou-se uma operação que deixou como rastro mentiras, subornos, tortura, duas guerras e o fim violento de mais incontáveis vidas – sem que isso tenha solucionado a impossível demanda do “fim do terrorismo”.

Não exatamente uma declaração de superioridade moral.

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