“Elysium”, ou: um pouco de luta de classes

"Elysium" fica aquém do que poderia fazer com sua premissa, mas ainda é uma obra eficiente. (Crédito: TriStar / divulvação)

Elysium (Idem, EUA, 2013)

Direção e roteiro: Neill Blomkamp

Com: Matt Damon, Jodie Foster, Alice Braga, Sharlto Copley, Wagner Moura, Diego Luna, William Fichtner, Brandon Auret, Josh Blacker, Emma Tremblay, Jose Pablo Cantillo, Adrian Holmes, Jared Keeso e Faran Tahir.

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Há décadas que a ficção científica – no cinema e na literatura – é empregada para criar alegorias sobre questões pertinentes das sociedades em que surge – e não é incomum que o olhar dado ao futuro assuma ares sombrios: de 1984 a Fahrenheit 451, passando por Admirável Mundo Novo e o clássico de Fritz Lang, Metrópolis. Assim, é apenas apropriado que, com a crise mundial a ampliar o abismo existente entre afortunados e miseráveis, duas ficções científicas que lidam com a questão da riqueza cheguem aos cinemas em 2013: O Expresso do Amanhã, de Bong Joon-ho (que será lançado nos próximos meses) e este Elysium, primeiro trabalho de Neill Blomkamp desde que foi revelado no ótimo Distrito 9, há quatro anos.

Ainda que não atinja a mesma excelência de sua estreia em longas, Blomkamp consegue empregar convenções tradicionais do gênero para seu manifesto particular. Num futuro distópico, as más condições ambientais da Terra levaram as classes abastadas a realizar seu sonho de mudar-se para uma luxuosa estação espacial (a Elysium do título) onde não precisam se incomodar com inconvenientes como pobres. É neste contexto que conhecemos Max (Damon), um ex-criminoso que, ao sofrer um grave acidente com radiação, fatalmente morrerá em cinco dias. Determinado a se salvar, o sujeito concorda em realizar um arriscado roubo para o gângster Spider (Moura) em troca de uma chance de voar até Elysium, onde a sofisticada medicina pode curar qualquer enfermidade. No entanto, o item roubado também é perseguido por Delacourt (Foster), secretária de Defesa de Elysium que planeja assumir o poder na estação a fim de endurecer as penalidades contra a imigração ilegal.

(Crédito: TriStar / divulvação)

Uma sociedade que trata seus “inferiores” como lixo e um protagonista numa jornada desesperada para se curar? As similaridades com Distrito 9 são bastante claras – algo que acredito se tratar menos de uma falta de inspiração de Blomkamp do que de sua própria bagagem pessoal como sul-africano que cresceu durante o apartheid. No entanto, se Distrito 9 era uma alegoria sobre um preconceito de peso mais étnico do que econômico (tanto que se passava em Johanesburgo), aqui o diretor já escancara nos primeiros minutos seu aspecto de “luta de classes”, quando contrapõe a opulência das mansões em Elysium com a imagem impressionante de um arranha-céu convertido numa colossal favela no centro de uma Los Angeles árida e miserável. Nesse sentido, o diretor acerta ao empregar boa parte do primeiro ato para estabelecer a dinâmica existente entre os dois habitats e os riscos enormes a que se submetem os que tentam entrar na estação com o único propósito de invadir uma casa e usar uma cápsula médica antes que sejam deportados de volta ao planeta.

O relacionamento entre estes dois mundos, aliás, é que Elysium tem de mais interessante. Não é estranho, por exemplo, que, embora ainda precisem de recursos oriundos da Terra, os “elysiunianos” criem um sistema que a exclui de qualquer benefício: as cápsulas médicas só funcionam em indivíduos registrados no banco de dados da estação, o que cria um fértil mercado negro de identidades falsas e de “coiotes”, numa alusão nada sutil à exclusão social de habitantes do Terceiro Mundo e às pesadas leis de imigração dos Estados Unidos. O mesmo se aplica às justificativas de Delacourt para a repressão contra os ilegais, que remetem às piores retóricas baseadas em ultrapatriotismo e xenofobia. Mesmo em detalhes menores Blomkamp não se furta de refletir as diferenças econômicas: enquanto o idioma secundário da Terra é o espanhol (leia-se: América Latina, subdesenvolvimento), os “elysiunianos” ocasionalmente se comunicam em francês (Primeiro Mundo, sofisticação).

Assim, é pena que Elysium tente criar em torno de Max (nas cenas em que este aparece na infância) uma certa aura de “predestinação” e, com o tempo, sua jornada pareça ganhar mais peso que as alegorias políticas da história. Também decepciona que, diferente de Distrito 9, Blomkamp e seu diretor de fotografia Trent Opaloch se entreguem ao estilo “câmera frenética” em boa parte das cenas de ação, que, mesmo enérgicas, acabam tornando-se desnecessariamente confusas. Em contrapartida, é um alívio perceber que o diretor, mesmo com um orçamento quase quatro vezes maior que o de sua estreia, não se vendeu à esterilidade PG-13 que vem dominando os projetos de ação contemporâneos, voltando a investir na violência gráfica – e o ferimento absurdo sofrido por Kruger (Copley) não sairá da mente do espectador tão cedo. E se a direção de arte é eficiente para expor a mensagem do cineasta (contrastando a aridez da Terra aos interiores branco-Apple de Elysium), os efeitos visuais do projeto são irrepreensíveis – e é bom que Blomkamp novamente se mostre adepto de efeitos práticos, deixando a computação gráfica para quando for inevitável.

(Crédito: TriStar / divulvação)

Sem muito tempo para conferir maior dimensão aos vários personagens, Blomkamp recorre a um elenco de peso para transmitir informações sobre estes ao espectador de forma rápida: Matt Damon empresta a Max a intensidade e a seriedade características de seu trabalho na trilogia Bourne, convertendo-o num indivíduo seco, mas não antipático. Enquanto isso, Jodie Foster surge corretamente ameaçadora com uma personagem irrecuperavelmente reacionária cuja expressão sempre fechada denota seu ódio aos “párias”. Já Sharlto Copley, também uma grata revelação de Distrito 9, chega a irritar em suas primeiras cenas pelo exagero, evoluindo no decorrer da narrativa para uma composição menos histriônica que ressalta ainda melhor a psicopatia do mercenário Kruger, culminando no momento arrepiante em que canta uma canção de ninar. E se Alice Braga e Diego Luna fazem o que podem com papéis que não vão muito além da “mãe diligente” e do “melhor amigo do protagonista”, Wagner Moura parece se divertir a valer com o gângster Spider, investindo numa atuação calculadamente over que conquista o espectador mesmo com as dúvidas que cercam seu personagem – e que tornam o desfecho da história mais surpreendente.

Um desfecho cujo sentimentalismo e abuso de flashbacks dramáticos pode fazer com que uma decisão importante de Blomkamp passe despercebida (SPOILER! Pare de ler agora se ainda não assistiu ao filme!): se inicialmente o diretor parece seguir na direção de alguns exemplares do gênero de “vilanizar” a tecnologia como algo desumanizador, é interessante que Spider reconfigure o sistema de Elysium para acabar com as regras excludentes, convertendo (dentro do contexto, claro) a tecnologia – uma ferramenta, não um sistema de opressão por si só – em aliada. E o que é melhor: sem a ajuda de algum “elysiuniano” arrependido. Mesmo que o que aconteça após isso tenha fortes tons de ingenuidade, ao menos Elysium reconheceu que, para que a mudança ocorra, não se pode esperar pela benevolência do 1%.

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