Salman Rushdie e a função da literatura como memória

O escritor britânico, de origem indiana, Salman Rushdie abriu a edição 2014 do projeto Fronteiras do Pensamento nesta segunda-feira em Porto Alegre. Rushdie tornou-se um autor mundialmente conhecido após a publicação do livro Versos Satânicos em 1989, que condenava os atos de perseguição do Islão a outras religiões.  Na época, Ruhollah Khomenini, líder do Irã, ordenou a fatwa ao escritor, isto é, sua execução por blasfêmia contra o Islão. O que levou Rushdie a passar boa parte da década de noventa se escondendo. Embora a fatwa não tenha sido oficialmente revogada, é fato que o autor não é mais a prioridade das autoridades iranianas pós-Khomeini. Desde o início dos anos 2000, ele tem viajado pelo mundo dando em palestras e conferências.

Era de se esperar, então, que nos deparássemos com uma pessoa taciturna, mais fechada ou desconfiada do ambiente. Entretanto, Salman Rushdie esbanjou simpatia e um atraente bom humor. Mais tarde na palestra, ele revelaria que o tempo em que permaneceu na escuridão o levou a aprender sobre ódio, fanatismo religioso e política, mas também sobre amor, solidariedade e compaixão.

Como boa parte de sua literatura traz elementos políticos e religiosos, muito da sua fala na palestra foi sobre o fazer ficcional, a história e a responsabilidade dos escritores. “Nós fazemos a história ou ela nos faz?”, foi uma das primeiras perguntas levantadas por Rushdie. Para o autor, é a partir da literatura que podemos conhecer os hábitos, os costumes e toda a cultura de um povo. Algo que os meios de comunicação, cada vez mais focados em informações rápidas e superficiais, não dão conta. “É na literatura que encontramos a experiência de mundo mais próxima, que podemos reconhecer respostas para nossas curiosidades sobre outros lugares”, explica.

Memória coletiva

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Escritor foi sentenciado a morte por líder do Irã na década de oitenta (Crédito: Luiz Munhoz)

“O ser humano é a única criatura que tem a capacidade de contar histórias”, afirma Rushdie. Para ele, o homem cria grandes narrativas e elas se tornam parte central da formação da identidade tanto do indivíduo, quanto de uma nação. Elas se tornam memória, se tornam parte da cultura e, por fim, se tornam a nossa história – entendida, aqui, como o conjunto histórico. Para o escritor, então,a História é formada por grandes narrativas. É nesse sentido que muitas vezes a literatura tem a função de esclarecer passagens conturbadas da História. Para eles, escritores e políticos têm objetivos semelhantes: oferecer uma visão de mundo. “A diferença é que, muitas vezes, os políticos não dizem a verdade, e os escritores sim, por mais irônico que isso seja”, acredita. Seria preciso, pois, lutar contras os poderosos que controlam a história para esclarecer momentos ofuscados trágicos causados por governos – muitas vezes ditatoriais. Foi o que ele procurou fazer em Versus Satânicos  e também no livro Os Filhos da Meia-Noite. “A memória se torna um ato político, quando autoridades negam algo que aconteceu. E é dever da literatura mostrar isso”, acredita.

A arte do romance

“Jane Austen viveu e escreveu durante as guerras napoleônicas, mas em suas obras isso nunca foi citado”, diz Rushdie. Naquela época, havia uma forte separação entre o espaço público e o individual, isto é, muitas vezes na ficção não eram exploradosos grandes acontecimentos, mas apenas as complexidades e problemas íntimos dos personagens. Atualmente, parece ocorrer o contrário, e os escritores tendem a transparecer isso em suas obras. Segundo Rushdie, muitos autores têma tendência a escrever sobre o seu espaço e o seu tempo e como eles são determinantes nas atitudes de seus personagens.

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Fronteiras do Pensamento contará com oito conferências internacionais esse ano (Crédito: Luiz Munhoz)

O romance deve tornar o mundo vasto e também deve criar um mundo vasto para caber o suficiente de história nele. O escritor britânico lembra do filósofo grego Heráclito ao citar que “o caráter do homem é o seu destino”, para explicar que, além de sua personalidade, as coisas aleatórias da vida também decidem os seus atos. “Não é apenas o caráter que explica o homem. Em um romance é possível entender o que faz um jovem simpático e normal se tornar um assassino, um terrorista”, acredita.  É justamente ao trazer esse mundo ‘real’ para o mundo ficcional do romance que torna tudo plural, agregando mais qualidade para a narrativa. “A literatura deve ensinar que o mundo é vasto e que somos seres contraditórios por natureza”, diz, rememorando a frase clássica sobre contradição de Walt Whitman: “Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões”.

Pós-Diálogo

Durante as perguntas da plateia, foi comentando sobre o período de sua vida em que Salman Rushdie passou escondido e como isso influenciou em sua escrita.  “Não teria como não influenciar em alguma coisa, mas é um período já superado. Virou história antiga”, diz. O escritor também não costuma revisitar seus livros e ele sabe quando um está pronto no momento em que fica exausto com ele, “é quando você não mexe mais, porém começa a fazer as coisas diferentes, aí é hora de parar”.  Dos escritores brasileiros, ele leu Machado de Assis e acredita que seja um dos grandes e cuja raiz cronológica leva a Borges e outros escritores clássicos da América Latina. Também conhece um pouco da obra de Clarice Lispector e leu bastante Jorge Amado, que chegou a conhecer em um evento diplomático. Por fim, para ele, escrever não é uma profissão. “Encaro mais como um chamado, uma vocação. Faria de graça”, diz, para mudar de opinião em seguida, comentando que o publisher dele estava na plateia e poderia não mais pagá-lo – evidenciando o seu notório bom humor.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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