O cérebro-deus

Scarlett Johansson mantém o interesse mesmo sem uma trama das mais elaboradas. (Crédito: divulgação).

Lucy (Idem, França, 2014)

Direção e roteiro: Luc Besson

Com: Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Min-sik Choi, Amr Waked, Julian Rhind-Tutt, Pilou Asbæk, Analeigh Tipton, Jan Oliver Schroeder e Luca Angeletti.

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Embora em crescimento nos últimos anos, o número de filmes de ação estrelados por mulheres ainda é muito pequeno num gênero dominado (até mais que os demais) por figuras masculinas. Atrizes como Sigourney Weaver, Kate Beckinsale e Milla Jovovich são raros nomes femininos que construíram suas carreiras a partir do sucesso (artístico e/ou comercial) de suas franquias de ação, e volta e meia atrizes como Angelina Jolie e Jennifer Lawrence também se aventuram no gênero de maneira mais ou menos bem-sucedida. O que Luc Besson (de Nikita e O Profissional) busca fazer em Lucy é um longa de ação divertido e com um leve toque mais reflexivo sobre a incapacidade do ser humano de compreender a própria existência – empregando, para isso, a própria Viúva Negra.

(Crédito: divulgação).
(Crédito: divulgação).

Também escrito por Besson, o roteiro logo nos apresenta à personagem-título (Johansson), uma intercambista americana em Taiwan que acaba por acidente sendo empregada como “mula” pela máfia local para transportar uma nova droga poderosa para a Europa. Ao ser agredida por um capanga, o pacote se rompe dentro dela e, ao invés de matá-la, a droga expande gradativamente sua capacidade cerebral muito além do que a premissa do filme sustenta (leia-se: que usamos apenas 10% de nosso potencial). Ao mesmo tempo em que busca de vingar de seus captores, a moça busca a ajuda do neurologista vivido por Morgan Freeman para tentar antecipar as consequências de suas novas habilidades.

Que não são pequenas, diga-se de passagem. Na verdade, o absurdo da trama de Lucy não deve nada aos acidentes que costumam, nos quadrinhos, gerar heróis e vilões (especialmente no universo do Homem-Aranha) – e mesmo que a premissa-chave do filme seja falsa (o uso de apenas 10% do cérebro humano é um mito), é inegável que serve bem à narrativa construída. Assim, é pena que Besson encaminhe o filme para o desfecho antes de explorar o máximo potencial do conceito, já que faz um trabalho bastante eficiente em sua primeira metade: iniciando com uma cena leve, o diretor amplia a tensão de forma contínua a partir do momento em que o flerte com Richard (Asbæk) se converte num assédio nervoso, culminando nos horrores que a garota presencia na suíte do Sr. Jang (Choi). Não são cenas que prezam exatamente pela sutileza, mas é assim que parecem a partir do momento em que Lucy ganha seus “superpoderes” – mas o over acaba funcionando ao conferir uma certa comicidade a tudo o que segue: é difícil não rir do quadro em que um capanga surge emoldurado pelas pernas de Lucy, no prenúncio de um destino não muito feliz – e a sequência em que a garota invade uma sala de cirurgia também prima pelo humor negro.

(Crédito: divulgação)
(Crédito: divulgação)

Mas se o exagero de Besson na condução da trama não chega a incomodar – e, de fato, o cineasta acerta em cheio no retrato da escalada das habilidades de Lucy, que chega a ser capaz de ler pensamentos, manipular a matéria e ver a energia contida nela –, o mesmo não pode ser dito de sua insistência em preencher o filme com imagens de arquivo que não possuem propósito algum a não ser repetir o que já foi exposto (há uma metáfora envolvendo predadores na savana africana cuja obviedade só perde para o literalismo dos comentários visuais de Lars von Trier em Ninfomaníaca). Além disso, é difícil entender o porquê do colapso no corpo de Lucy seja controlado com mais uma dose da droga, algo que jamais volta a ocorrer depois e não tem sentido aparente. Felizmente, mesmo que praticamente todo o elenco secundário esteja preso a não-personagens, Scarlett Johansson agarra o papel principal com segurança, aproximando-se do espectador com seu retrato de fragilidade do início e mantendo tal interesse na forma badass, mesmo quando seus poderes começam a privá-la de qualquer emoção.

Enviando o espectador para fora da sala de projeção com mais dúvidas do que certezas na mente (os estágios finais da evolução da protagonista apresenta uma reflexão de apelo muito mais sensorial do que narrativo), Lucy está longe de ter a profundidade metafísica que gostaria. Mas, somado ao processo de ver Scarlett Johansson virando Deus cercada por uma misè en scene ágil e pelo virtuosismo visual de Besson nos últimos 10 minutos, acaba funcionando como uma atípica diversão despretensiosa.

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