Ocupar a memória para não esquecer a história

Audiência pública debateu destino do DOPS (Crédito: Iara Pinheiro)
Audiência pública debateu destino do DOPS (Crédito: Iara Pinheiro)

Depois de quase 30 anos do fim oficial da ditadura militar no Brasil, que durou de 1964 a 1985, suas feridas seguem vivas e inexplicadas, apesar da luta pela preservação da memória. Hoje, 19 de agosto de 2014, foi realizada a 6ª audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) sobre o futuro do prédio em que funcionou o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio, a partir de 1962. Militantes do movimento Ocupa DOPS defenderam, junto com a Comissão Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RIO) a transformação da edificação em Espaço de Memória da Resistência. Já a Polícia Civil, que possui a guarda da construção, expôs a proposta de construção de um museu da Polícia.

O edifício, construído em 1910, na rua da Relação, nº 40, esquina com rua dos Inválidos, no Centro do Rio, serviu  como sede da Polícia Central da República. Inaugurada por Nilo Peçanha, a obra fora feita para abrigar uma polícia moderna, como demostram a ausência de porões e de celas, bem como a existência de janelas amplas. No entanto, durante a ditadura civil-militar, o projeto foi alterado, inclusive com a construção irregular de celas coletivas e solitárias (uma das paredes da cela cobre uma das janelas da edificação), além de uma sala de interrogatório cuja proteção acústica ainda pode ser vista.

A pesquisadora Fernanda Pradal, integrante do Grupo de Trabalho DOPS da Comissão da Verdade Rio, explica que o imóvel era um espaço, antes mesmo do golpe de 64, usado pelos aparelhos de segurança do governo. Ainda no período Vargas, com a perseguição às religiões de matrizes africanas, inúmeros terreiros foram invadidos pela polícia. As imagens apreendidas eram levadas para o DOPS e esse material, até hoje, está em posse da polícia. “O prédio foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) devido ao seu valor histórico. No entanto, a inexistência de celas no projeto original fornece argumentos para a desmontagem e descaracterização do local”, relembra Fernanda.

Fachada do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro (Crédito: Cartografias da da Ditadura)
Fachada do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro (Crédito: Cartografias da Ditadura)

Fechado, o lugar atualmente apresenta péssimas condições de conservação. O teto possui diversos buracos, em que telhas foram improvisadas, o assoalho está descascando, as paredes exibem infiltrações graves e a grade da varanda do segundo andar está presa por cordas para evitar sua queda. Apesar disso, em uma das visitas técnicas do grupo à área, foram encontrados documentos do período da repressão, obviamente em avançado estado de abandono e deterioração. Segundo Fernanda, ao inspecionar o acervo, as equipes identificaram certificados de registro de armas e explosivos e portes de armas das décadas de 1940 a 2011; escalas de serviços e outros documentos referentes ao Departamento Pessoal, fichas com pareceres sobre idoneidade moral e profissional da segunda metade da década de 1960 (época da repressão de estado) e pacotes fechados em sacolas plásticas e caixas com informações sobre pessoas e operações policiais.

O movimento OcupaDops, representado na audiência por Ana Miranda, ex-presa política, integrante do Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça, defende no ambiente a criação de um memorial pelas vítimas da ditadura. “Frente ao inegável atraso do Brasil em matéria de Justiça de Transição, faz-se urgente a destinação do prédio para a construção de um espaço comprometido com a memória da resistência e das lutas sociais, e que explicite a relação entre as violações cometidas pelo Estado no passado e no presente,estimulando medidas que impeçam a repetição de tais práticas”, afirmou Ana. Sob o lema “Ocupar a memória para não esquecer a nossa história”, o grupo reivindica a transformação do prédio símbolo de violência e terror de estado por décadas em um lugar voltado essencialmente à vida. O projeto, desenvolvido em parceria com a CEV-RIO, prevê no local um espaço voltado para as políticas de Direitos Humanos, que congregue a produção, guarda e circulação de informações, documentações, acervos, projetos e propostas voltadas ao direito à memória, verdade e justiça.

O modelo sugerido tem como inspiração o Memorial da Resistência de São Paulo, que recebe cerca de 70 mil visitantes por ano. Desse total, 25 mil são estudantes. A versão carioca seria baseada em quatro eixos: 1) Memória e conhecimento, 2) Direitos humanos; 3) Integração comunitária; e 4) Gestão participativa. Assim, o centro  tem foco no caráter pedagógico e na participação popular, com biblioteca e acervo específico sobre o tema aberta ao público, salas de discussão de órgãos ligados aos direitos humanos e exposições e apresentações culturais sobre o assunto.

O projeto memorial quer aproximar a população do local que já foi marcado por absurdos durante a ditadura militar (Crédito: Reprodução)
O projeto memorial quer aproximar a população do local que foi marcado por absurdos durante a ditadura militar (Crédito: Reprodução)

Por outro lado, a vontade da Polícia Civil é bem diferente. A instituição deseja oficializar no local a criação de um museu da corporação, cujo acervo inclui o mobiliário original de 1910, uma coleção histórica de armas, itens de cassinos, peças do carro do ex-presidente Juscelino Kubitschek e material de propaganda nazista e integralista. O DOPS, segundo o assessor especial de relações institucionais da Polícia Civil, Gilbert Stivanello, ocupava apenas um pedaço da construção, que ele se recusa a chamar de “prédio do DOPS”, preferindo a nomenclatura “prédio da polícia civil”. Para o assessor, o que funcionava ali, gerenciado pelos militares, não pela polícia civil, era um órgão que “recebia, identificava e encaminhava as pessoas com mandato de prisão para os locais mais adequados”.

O pátio dos fundos do ex-Dops é utilizado como estacionamento da Polícia Civil (Crédito: Cartografias da Ditadura)
O pátio dos fundos do ex-Dops é utilizado como estacionamento da Polícia Civil (Crédito: Cartografias da Ditadura)

No entanto, Stivanello não nega a brutalidade daqueles anos, sobre o que afirma: “essa é uma página da História que nos envergonha”. Segundo ele, o Arquivo Nacional tem acesso aos acervo armazenado ali, composto basicamente por documentos da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE). “Queremos resgatar não só os 20 anos de história do DOPS, mas os outros 84 anos de história contidos ali. Para isso, estamos buscando parcerias público-privadas através da lei Rouanet, com consultoria do Instituto da Cidadania e Justiça. A ideia é construir um museu com a história da Polícia Civil, além de uma livraria, um café literário, auditório e sala de exposições (aberta a todos os entes da sociedade)”, garante.

Nadine Borges, presidente da CEV-Rio, lembrou que na nomeação dos componentes da Comissão, o então governador Sérgio Cabral (PMDB) comprometeu-se em destinar o imóvel, sem uso desde 2008,  a um memorial da resistência. “É o mínimo que podemos fazer depois de 50 anos de silêncio e negação da verdade”, afirmou. O mediador do debate, deputado estadual Marcelo Freixo, encerrou a audiência com um apelo: “o prédio do DOPS é público e deve atender ao interesse da população. Não há sentido em haver um cabo de guerra com a Polícia Civil, que tem todo o direito de ter o seu espaço de memória, mas aquele ali tem outra referência histórica mais forte para a defesa dos direitos humanos. Espero que esse diálogo se aprofunde ainda mais”.

Para mais informações, acesse:

Avaliação do prédio do DOPS, realizada pelo Movimento Cartografias da Ditadura

Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro

Baixe o levantamento fotográfico realizado pela Cev-Rio aqui

Movimento Ocupa DOPS

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