A esperança de Camus

Cadernos de anotações do escritor franco-argelino chegam ao Brasil  (Crédito: Editora Hedra/Divulgação)
Cadernos de anotações do escritor franco-argelino chegam ao Brasil (Crédito: Editora Hedra/Divulgação)

Texto Júlia Corrêa

Em 2014, a editora Hedra presenteia os leitores brasileiros de Albert Camus com o lançamento dos cadernos pessoais deixados pelo escritor, que teve seu centenário comemorado em 2013. As anotações do pensador franco-argelino foram reunidas em diferentes volumes organizados cronologicamente, três deles lançados no primeiro semestre: Esperança do mundo, A desmedida na medida e A Guerra começou, onde está a guerra? (tradução de Rafael Araújo e Samara Geske).

Esperança do mundo (Editora Hedra, 104 pg.), o primeiro volume, engloba os diários escritos entre 1935 e 1937. No livro, o leitor encontra reflexões dispersas de Camus, muitas delas apresentadas sob a forma de aforismos, capazes de iluminar diversos aspectos de sua já conhecida obra literária e filosófica. Ou mesmo, para aqueles que ainda não tiveram contato com livros como A peste ou o Estrangeiro, de despertar a vontade de adentrar na produção do autor.

As anotações englobam tópicos como cultura, religião, política, guerra e relatos de viagens, emaranhados no cotidiano de Camus.  O interessante é que, nos diários, pode-se entender parte de seu trabalho criativo, já que neles encontram-se, também, alguns esboços e fragmentos de sua obra. Ao longo da leitura de Esperança do mundo, deparamo-nos, por exemplo, com ideias para o Romance do jogador, forma como Camus se refere à peça que, posteriormente, será lançada sob o título Calígula.

No entanto, as referências à sua obra nem sempre aparecem tão explicitamente. Nas primeiras páginas do livro, Camus assinala que “o estranho sentimento que o filho tem por sua mãe constitui toda a sua sensibilidade”. Tal colocação nos remete de imediato à famosa introdução de “O Estrangeiro”, lançado em 1942, quando o indiferente protagonista Mersault anuncia: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.”.

O Nobel de Literatura de 1957 demonstra, já nessas anotações feitas durante sua juventude, como se colocaria, mais tarde, na contracorrente do pensamento radical francês do pós-guerra, encabeçado por intelectuais como Jean Paul Sartre. Prova disso é que será expulso, em 1937, do Partido Comunista, ao qual se filiara dois anos antes.

O descontentamento com as ideias marxistas manifesta-se sutilmente em Esperança do Mundo. Camus evoca os questionamentos de Jean Grenier, professor que se tornará seu mentor durante o resto da vida: “toda a questão é esta: por um ideal de justiça, é preciso concordar com bobagens?”, para então concluir: “pode-se responder que sim: é agradável. Não: é honesto.”.

O que se percebe é sua intenção de escapar de extremos ideológicos para focar sua atenção em questões existenciais e morais complexas. Nos cadernos, aparecem as linhas iniciais da tensão característica do “absurdismo”, filosofia proposta por Camus em O Mito de Sísifo (1941): a alternância de harmonia e desarmonia entre o homem e o universo. Como explicam os tradutores no esclarecedor posfácio da edição, “logicamente, para que haja uma experiência de separação, é necessário que haja antes uma experiência de união”.

Neste primeiro volume, Camus demonstra, apesar de já tomado pela tuberculose, uma verdadeira vitalidade, evidenciada pelo próprio título do caderno.  Na realidade, a descoberta da proximidade do fim da vida é o mote de tal esperança, pois, como escreve em março de 1936, “é a morte que dá ao desafio e ao heroísmo seu verdadeiro sentido”. Aponta, igualmente, alguns meses antes: “e, mesmo em meio a essa tristeza em mim, que desejo de amar e que êxtase ante a simples vista de uma colina no ar da noite”. Demonstra, assim, a vontade de estabelecer uma profunda e sensível relação com as coisas do mundo. Ironicamente, Camus não morrerá em virtude da doença, mas, de um acidente de carro, em 1960.

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