Notas musicais para uma tarântula

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Tarantata é o segundo livro de Cíntia Lacroix (crédito: divulgação)

Entre as agradáveis surpresas do mercado editorial gaúcho aparecidas neste ano, está o lançamento do livro Tarantata (Dublinense, 256 páginas, R$34,00), da escritora Cíntia Lacroix. Essa verdadeira sinfonia literária conta a história de um jovem promissor pianista e sua perturbação diante dos sentimentos que desenvolve em relação a uma vizinha, a quem ele quer bastante conhecer. Trata-se de um romance muito bem escrito, de leitura envolvente e que, apesar do número de páginas, é lido praticamente numa sentada só. O mérito do livro, portanto, está  nessa capacidade de criar uma boa história extraída dos costumes de uma região específica do planeta (Sul da Itália) e trazer para um centro urbano, onde uma história de amor precisa acontecer.

A incrível história contada pela escritora gaúcha neste livro inicia a partir da curiosidade do protagonista –  Marçal, o jovem pianista -, este que toma conhecimento da chegada da família Palumbo pela janelas de seu condomínio. Vindos do Sul da Itália direto para a cidade de São Paulo, os Palumbo chegam ao Brasil cheio e têm sérias dificuldades em adaptar-se aqui. Principalmente porque a filha mais jovem, Giuseppina Palumbo, sofre de um mal pouco conhecido em nossas terras: o tarantismo.

Segunda a tradição daquela região milenar da Itália, algumas jovens mulheres, quando picadas por um animal (a tarântula), passam a sofrer de forma periódica surtos de violência e grande agitação, desenvolvendo certas tendências à volúpia desenfreada dos sentidos. Essas mulheres acabam sendo chamadas de tarantatas, ou seja, são elas vítimas do suposto veneno desse tipo de aranha. Na tradição local, a única cura para essa maladie estaria nos rituais de dança e benzeduras para amenizar o sofrimento.

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A escritora já foi finalista do prêmio São Paulo de Literatura com seu primeiro livro (crédito: divulgação)

Chegados a um subúrbio de São Paulo nos anos 1960, cidade para a qual os Palumbo se mudam acreditando que o nome da cidade (e do santo – São Paulo) poderia lhes dar algum alívio, logo eles têm que se isolar por conta dos ataques da filha. Nesse cenário é que a trama se desenrola: a narrativa acompanha então a vida do jovem pianista Marçal, que vive a frustração de ser professor de piano para sustentar a casa e ainda por cima cuidar de sua mãe, seriamente doente. Daí então, pelas janelas do condomínio do edifício onde mora, que vem a enxergar Giuseppina e imediatamente ele se apaixona pelo olhar profundo daquela a qual ele também depois descobrirá – está perturbada.

Inicia-se aí uma séria de tentativas de se aproximar da garota, eternamente enclausurada,  protegida e vigiada 24 horas pelos pais extremamente religiosos e receosos do que ela possa vir a fazer. A única chance que ele encontra é aproximar-se do pai, o que acontece ao se propor a organizar com alguns músicos conhecidos uma tarantela (na tradição italiana, a música ao redor com dança da “doente” que supostamente espantaria os efeitos do veneno e do mal). A partir daí, ele tem contato direto com Giuseppina, e os dois se aproximam definitivamente. O resto? Bom, o resto é o desfecho da trama; convém não revelar.

A trajetória da escritora Cíntia Lacroix, autora de Tarantata, é até aqui bastante promissora. Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com seu primeiro livro, Sanga Menor (2009), ela nos traz agora um romance consistente em sua estrutura e límpido no ritmo de sua leitura. Aliás, uma leitura que flui porque o nosso interesse pelo destino desses dois personagens e seus conflitos interiores só aumenta a cada página. Como escreveu Alexandre Lucchese na ocasião do lançamento do livro, Cíntia “repete dois trunfos de Sanga Menor: o mergulho psicológico profundo nos personagens e a construção de uma narrativa elegante, com tiradas bem-humoradas. É o que faz de Tarantata um romance carregado de significados, mas cativante desde o início”. Nesse segundo trabalho, acrescente-se, a presença do paradoxo e por vezes nonsense da situação conflitiva do protagonista (o jovem pianista) diante dos problemas de saúde da mãe e da falta de dinheiro. A seguir, com a presença magnética da vizinha atarantada acaba por refletir também em sua tentativa (frustrada?) de montar a grande obra musical a que se dedica há anos.

Tarantata é desses livros que não largamos. Nossa torcida pelos seres humanos ali envolvidos, seus conflitos, seus dilemas, sua situação social, nos coloca como leitores do privilégio dessas almas. O privilégio da boa história, bem contada, que nos prende, que  nos remete, que nos recria. Nos colocando, enfim, na pele daqueles seres feito de frases e boa literatura.

Boa leitura.

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