Festa de luzes, cores e cantos: o pintor das hinchadas

Pintor argentino é conhecido por pintar momentos do futebol latino-americano
Pintor argentino Ricardo Martínez Gálvez é conhecido por pintar momentos do futebol latino-americano

Texto Leonardo Cortes

O escritor argentino Mempo Giardelli escreveu uma vez um conto sobre um sujeito melancólico e fleumático que vivia sendo motivo de chacota de seus amigos. O homem, chamado Amaro Fuentes, vivia e sofria as frustrações por seguir e alentar a um time do oeste da capital portenha de menos reconhecimento do que a tradicional rivalidade Boca-River. O homem era nada mais nada menos que um hincha, traduzindo do castelhano: o torcedor de futebol.  Amaro era hincha. O autor deste parágrafo é hincha. Provavelmente, quem está lendo é um hincha. O que nos torna iguais perante à religião que o saudoso escritor Eduardo Galeano já nomeou, que é o futebol.

Também o artista Ricardo Martínez Gálvez é um hincha. Um dos temas recorrentes em seus quadros é o torcedor de futebol que encoraja sua equipe, aguenta os fardos viciantes que qualquer time contém e se prevalece das vantagens virtuosas que alguns possuem. O pintor já retratou desde as bandeiras nas arquibancadas, jogadores argentinos notórios e o mais importante: o torcedor de futebol. Gálvez pinta os Amaros Fuentes espalhados pela Argentina. Gálvez pinta os torcedores.

Nascido em Buenos Aires em 16 de dezembro de 1955, Ricardo é filho de uma família onde orbitavam o futebol e a arte. Aprendeu a aperfeiçoar o traço com cursos por correspondência. Até que, vendo o interesse pelo desenho, a mãe lhe deu um curso ministrado pelo artista plástico Domingo Méndez Terrero. Nesse tempo, passa a exercitar suas obsessões pela prática da pintura em óleo, por meio do qual adquiriu reconhecimento pela sua capacidade como artista.

Na sequência, você confere a entrevista que o Nonada fez com o artista, assim como algumas obras espalhadas entre as perguntas:

Hincha (16)

Nonada – Como começou a gostar de futebol?

Martínez Gálvez – Foi por causa do meu pai, ele era muito torcedor, me levava à cancha, eu e meus irmãos. Também escutávamos juntos as partidas pela rádio.

Nonada – E o teu interesse na arte?

Martínez Gálvez – Minha mãe, à parte de criar eu e meus sete irmãos, gostava de pintar, era muito boa e muito hábil para todo tipo de trabalhos manuais. Evidentemente foi ela que me encorajou e me levou a aulas de pintura.

Nonada – Quando começou a juntar futebol e arte?

Martínez Gálvez – Como tudo de criança, enchia blocos de papéis inteiros de jogadas. Os blocos de desenho de cem folhas que se vendiam nessa época, com folhas medias amarelentas, mas bem econômicas, e com uns poucos lápis de cores de duvidosa qualidade, eu pintava nas cem folhas as jogadas e as arquibancadas. Logo quando fiquei grande e me sentava na torcida popular e tudo me parecia tão forte e incrivelmente colorido e até diria estético – que comecei a pintar.

Nonada – Tu disseste em teu site que “Cada quadro transmite as emoções, os sonhos e a vida cotidiana dentro de um estádio de futebol; a pobreza, a morte e a fome afora da cancha; retratos de uma Argentina que vemos todos os domingos e poucas vezes olhamos”. Como é a Argentina que tu retratas?

Martínez Gálvez – A de um país com gente submergida, pobre, enganada e roubada por seus governantes. Porém, ela é nobre e faz do futebol uma religião, inclinando todas as suas esperanças em algo que deixe de se sentir perdedor por um momento, e assim, esquecer sua realidade por este dia. Essa linda e inigualável capacidade que a gente humilde tem para fazer uma festa de paixão e cor…. do nada.

Nonada – Por que pintar algo popular e não erudito?

Martínez Gálvez – Ao contrário do que muitos acham, não posso entender como não há mais gente que pinte o futebol. Não me refiro ao ídolo, sim ao torcedor e seu folclore. O futebol move a centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, que voltam sua paixão neste jogo e, muitas vezes, dá a eles um sentido de propriedade.

Os torcedores fazem sacrifícios que fariam por sua família (às vezes) para ver e seguir seus times, e suas alegrias na vida (que são muito poucas) passam muito pelas conquistas de sua equipe. Só eles podem entender o que gera um gol no último minuto, que te salva de uma eliminação segura ou te condena à derrota. O momento de alegria ou tristeza nesse minuto é impressionante. A volta a tua casa ou ao teu país tu não esqueces nunca. Como não pintar estes sentimentos, esta paixão, esta festa de luzes, cores e cantos? Não fazer isso seria um pecado!

Hincha (6)

Nonada – Que outros temas tens inspiração para desenhar e pintar?

Martínez Gálvez – Gosto de pintar a pampa, a fronteira e o gaúcho do século passado. Agora faço coisas da praia, cavalos e crianças, com muita influência do pintor espanhol Joaquín Sorolla.

Nonada – Podes falar também dos seus outros trabalhos, como nas histórias em quadrinhos e a série “Caballos y Gauchos”?

Martínez Gálvez – Me fascina a história argentina, acima de tudo a época da guerra com o índio, a fronteira, os “malones” (quando os índios vinham e arrasavam as instâncias e as cidades levando tudo), o gaúcho, sua liberdade e o cavalo. Uma época onde não havia o ruído de agora e alguém podia contemplar a paisagem e os animais.

Nonada – Como é a tua rotina de pintura?

Martínez Gálvez – Faço um monte de esboços pequenos todo o tempo, de recordações, coisas que vejo ou imagino e que se passam. Quando gosto de um esboço, ponho cor, os claroescuros* e logo trabalhos as figuras grandes e depois passo para tela e pinto.

Nonada – Pollock disse que a pintura é uma autodescoberta. Você mudou muito em tua vida e em teus quadros?

Martínez Gálvez – Acho que alguém vai mudando na vida porque é parte do crescimento. O que passa é que na obra de arte é mais evidente.

Hincha (12)

Nonada – O futebol argentino sempre foi um sinônimo de um jogo pegado e árduo. Como é para você descrever o futebol argentino?

Martínez Gálvez – Sei que muitos estrangeiros vêm deste modo, talvez agora seja assim. Embora historicamente o futebol argentino era jogar bem; não éramos Brasil, que era o melhor, mas o seguíamos de perto. O futebol árduo ou de garra, mais que nada, era o uruguaio. O futebol argentino estaria entre o brasileiro e o uruguaio.

Nonada – Tem algum momento que sempre te chama a atenção?

Martínez Gálvez – Eu vivia a uma hora de trem do estádio do meu time. Quando eu tinha entre 10 e 14 anos, eu recordo que era inverno e eu voltava de uma partida com meus amigos eu ficava em cima do teto do trem (pois não havia lugar dentro dos vagões); o último raio de sol na cara, o vento frio que nos pegava e as bandeiras que flameavam pela velocidade da locomotiva. Nunca voltei a sentir assim.

Nonada – És um hincha ou simpatiza de muitos times?

Martínez Gálvez – Supostamente, sou muito hincha, mas eu gosto de todas as torcidas, pois todas fazem sua festa e põem cor neste maravilhoso jogo, que dá as únicas alegrias que os povos tem.
O futebol nas arquibancadas é o jogo mais democrático e genuíno que existe. O torcedor mais pobre pode se sentir feliz e ganhador, enquanto um rico e poderoso senhor, na bancada da frente, não tem consolo.

Nonada – Tem algum projeto para o futuro?

Martínez Gálvez – Gostaria de fazer um mural grande em qualquer parte da cidade de Buenos Aires ou qualquer outra cidade futebolística do mundo, homenageando o hincha anônimo do futebol, pois é ele que dá realmente sentido a este esporte.

Nonada – Onde estás mostrando os seus quadros?

Martínez Gálvez – Na Galeria del Socorro, em Buenos Aires, e nos links:
https://www.facebook.com/pages/Ricardo-Martinez-Galvez-Pinturas/188136561245094 e www.martinezgalvez.com.

*Claroescuro: do italiano “Chiaroscuro” é uma técnica de pintura envolvendo contrastes de luzes e sombras para representar um objeto. Da Vince é famoso por usá-la.

(Todas as pinturas aqui são de criação e propriedade do artista)

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Confira a galeria completa:

 

 

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