Frapa e Festival de Gramado discutem perspectivas do audiovisual no Brasil

43º Festival de Cinema de Gramado – Cerimônia de Premiação - Premiados da noite. Foto: Cleiton Thiele/Agência PressPhoto – www.edisonvara.com.br
O filme Ausência, de Chico Teixeira, foi o principal vencedor do 43º Festival de Cinema de Gramado (Foto: Cleiton Thiele/Agência PressPhoto)

Texto Priscila Mengue

Arte ou indústria? Fernando Castets iniciou sua master class no 3º Festival de Roteiro Audiovisual de Porto Alegre (Frapa) evocando o dilema meio shakesperiano que ronda o cinema quase desde o nascedouro, como se fosse possível diferenciar duas das características mais intrínsecas do cinema. Se foi no evento realizado de 4 a 6 de agosto na Cinemateca Capitólio que a pergunta foi proferida, sua natureza dúbia ganhou evidência no mais famoso tapete vermelho do cinema brasileiro. Com filmes mais ousados dividindo espaço com produções que claro apelo popular, o 43º Festival de Cinema de Gramado ocorreu de 7 a 15 de agosto. O Nonada – Jornalismo Travessia esteve presente em parte da programação de ambos. Como colaboradora do site, pontuo, a seguir, alguns destaques.

Festival de Gramado: discursos politizados e gaúchos em destaque

Ao menos desde 2012, quando teve a curadoria completamente modificada, Gramado volta-se a promover diálogos. Diálogos entre diferentes vertentes do cinema brasileiro, diálogos com as demais cinematografias do continente, diálogos com festivais hispano-americanos, diálogos entre o que agrada a crítica e o que agrada o público. Com tamanha gama de braços pra administrar, nem sempre todos recebem a atenção que reivindicam, mas o festival gaúcho vem comprovando que ainda tem fôlego pra permanecer, especialmente com uma razoavelmente qualificada seleção e o aprimoramento da programação paralela. A relação completa dos premiados pode ser conferida no site do evento.

Como toda premiação, algumas decisões dos júris do festival são questionáveis, especialmente o prêmio de melhor longa para o argentino La Salada. Contudo, como Marcos Santuario (curador ao lado de Rubens Ewald Filho e Eva Piwowarski) deixou escapar em coletiva de imprensa: os maiores destaques das últimas edições nem sempre foram premiados com o kikito de melhor filme, caso de O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, e A Despedida, de Marcelo Galvão, por exemplo. A vitória de Ausência, de Chico Teixeira, não foi injusta, embora a ousadia de Ponto Zero, de José Pedro Goulart, merecesse mais do que apenas os prêmios de som e de montagem – assim como a precisa atuação de Gilda Nomacce em Ausência. Chama a atenção, também, uma menor preocupação dos júris em agradar todos os filmes, sendo esta uma das poucas vezes em que não houve distribuição de menções honrosas e afins.

No tapete vermelho, o número de celebridades foi inferior a edições anteriores, embora a maioria dos longas (e parte dos curtas) tivessem a participação de globais. Outro ponto de distinção foram os roteiros dos apresentadores da noite, este ano mais descontraído e promovendo iniciativas de interação – evidenciando certa influência do clima descontraído de premiações estrangeiras (o que, também, se refletiu na adoção de uma projeção in memoriam).

O aspecto mais evidente na premiação foi, contudo, as questões políticas. Presentes em alguns filmes das mostra, ganharam maior eco quando Luiz Carlos Barreto (um dos produtores de maior história do cinema nacional) chamou a atenção para as tentativas de destituição da presidenta Dilma Rousseff. Logo depois, Luiz Fernando Emediato (um dos produtores de O Outro Lado do Paraíso, ambientado durante o golpe de 1964) discursou ao ganhar o prêmio do júri popular. Segundo ele, parte da plateia vaiou Barretão: “Eu não gosto desse governo, eu trabalhei nesse governo, mas existe uma coisa que é golpe. Sem o estado de direito, tem tortura, tem morte, tem escuridão”, assinalou. Outro ponto ressaltado nos discursos, especialmente dos curta-metragistas gaúchos (ressaltado, também, por realizadores de outros estados) é a não liberação dos recursos do Pró-Cultura RS, que beneficiaria dez longas-metragens do Estado.

Um dos destaques da mostra de curtas, O Teto Sobre Nós fo i filmado na ocupação Saraí
Um dos destaques da mostra de curtas, O Teto Sobre Nós foi filmado na ocupação Saraí (Foto: divulgação)

Narrativas Curtas

Um estado em que alguns curtas-metragens são mais conhecidos que produções de longa duração, o Rio Grande do Sul foi o principal vencedor da mostra de curtas-metragens nacionais pelo segundo ano consecutivo – assinalando o potencial de uma nova geração de realizadores saídos dos igualmente jovens cursos de produção audiovisual do estado. Dessa vez, o kikito de melhor curta ficou com O Corpo, de Lucas Cassales, protagonizado por Cesar Troncoso (de O Banheiro do Papa), um thriller com elementos fantásticos. O outro representante gaúcho foi O Teto Sobre Nós (de Bruno Carboni), mistura de documentário e ficção que retrata as tensões de uma moradora às vésperas de ser despejada da ocupação Saraí. Vencedora do kikito de direção, tem produção de Davi Pretto (de Castanha).

Outros destaques foram dois curtas paulistanos estrelados por Paulo Miklos. Na comédia Quando Parei de me Preocupar com Canalhas, de Tiago Vieira, o titã interpreta um taxista reacionário que vocifera impropérios. Inspirado em HQ de Caco Galhardo, foi escrito ainda durante a gestão de Lula, mas ganha estofo diante das manifestações de direita encabeçadas nesse ano. Miklos também estrela Dá Licença de Contar, de Pedro Serrano, no qual interpreta Adoniran Barbosa. A obra utiliza canções do músico para criar uma trama, na qual este perde sua saudosa maloca e conhece Iracema.

Diálogos Hispano-Americanos

Com sete produções, a mostra latina foi a de maior número de concorrentes desde 2010. Além de aumentar a quantidade de filmes, também apostou na diversidade, trazendo não só as filmografias mais frequentes no festival (e no cinema brasileira), como a argentina e a uruguaia. Também fisgou boas produções de países de menor espaço no circuito nacional, como Peru e Costa Rica. Além disso, o diálogo com os países vizinhos e ibéricos se estendeu para a programação paralela, que exibiu produções de representantes festivais estrangeiros, como os de Mar Del Plata, Havana e Lisboa.

Relações de Afeto e Ausências

O título do longa vencedor de Gramado simplifica, de certa forma, uma temática que transita por diversas produções da mostra: a ausência, mais especificamente, a ausência da família. Somente na segunda semana de competição, aproximaram-se de tal temática Ausência (de Chico Teixeira), O Outro Lado do Paraíso (de André Ristum) e Ponto Zero (de José Pedro Goulart). As três produções são protagonizadas por jovens garotos que têm relações intensas com o pai, por vezes distantes. Se no filme de Ristum (mesmo diretor de Meu País), a ausência do pai aumenta a mística sobre a figura quixotesca que sonha encontrar a bíblica Evilath (dentro da ideia de “pai-herói”), nos demais, o abandono paterno desperta crises dentro das famílias – nas quais, os adolescentes ao mesmo tempo que sentem a falta da figura familiar precisam ocupar seu espaço. Enquanto Goulart percorre um caminho mais angustiante, as tensões vividas pelo protagonista de Teixeira são permeadas por toques de afeto, pequenos respiros, a partir dos quais, toma direções mais otimistas. Dos três, Ponto Zero foi o que mais ousou, impactou mais o público, uma aposta perigosa, que pode nem sempre ser bem-recebida.

Ponto Zero

Veterano do audiovisual, José Pedro Goulart estreou em longas-metragens com uma das produções mais inventivas de Gramado. Em uma estrutura quase de dois atos, o filme do co-diretor de O Dia em que Dorival Encarou a Guarda é uma experiência sensorial. Após sua exibição, a sala do Palácio dos Festivais estava em silêncio, salvo algumas conversas meio atordoadas. No debate sobre o filme, boa parte da crítica não sabia sequer dizer se gostou do filme ainda, tamanho o impacto. Na verdade, não seria o próprio impacto o maior sinal de que se trata de um grande filme? Quantas vezes por ano assistimos alguma coisa que realmente mexe com a gente? Que vá além de clichês manipulações do riso, do choro ou do medo?

Ponto Zero desloca isso pra outro local, coloca o espectador como testemunha (meio cúmplice) da rotina perturbadora de um garoto, que já não bastasse todas as inseguranças, desafios e descobertas da adolescência, ainda precisa lidar com um papel de pseudopatriarca diante da ausência do pai e a submissão da mãe – profundamente abalada pelo casamento abusivo a que está atrelada. Embora lhe seja dado esse papel, o garoto pouco tem voz ali, ocupa espaços vazios, pelos quais transita quase despercebidamente (a exemplo de uma belíssima sequência em que transita de bicicleta por todos os ambientes que frequenta). É como se todos ao seus redor sugassem as forças desse menino de 14 anos, que em desemparo, procura algum alento sem sucesso na própria sexualidade.

A opressão é tamanha que o garoto chega a um “ponto zero”, a partir do qual seu desespero se encontra com uma fauna de estranhos tipos que encontra pelas ruas de Porto Alegre em pleno temporal – com uma fotografia que traz ares soturnos e misteriosos à cidade. O rigoroso trabalho técnico não é, contudo, pretensioso, embora seja ambicioso desde os primeiros minutos, quando sobrepõe metáforas que se fundem em um momento um tanto onírico.

Concebido por cerca de sete anos, o filme é uma experiência a ser vivida no cinema, para que se sinta a reverberação do desenho de som (em que música e efeitos são utilizados como elementos narrativos, sem redundâncias), que martela na cabeça do protagonista e do espectador. Com uma produção cercada de mistérios, em que a própria equipe tinha acesso limitado ao material (inclusive o roteiro), traz o estreante Sandro Aliprandini entre a quase apatia e o transbordar de sentimentos reprimidos. O resultado é angustiante, de um apuro estético comovente – e permanece muito além dos 94 minutos de projeção.

43º FESTIVAL DE CINEMA DE GRAMADO. Ponto Zero_LM Brasil. Credito Divulgação
Primeiro longa de José Pedro Goulart, Ponto Zero foi um dos destaques de Gramado (Foto: divulgação)

Para além da direção, Frapa discute o papel do roteirista

Na televisão, eles são os principais nomes das produções de ficção. No cinema, pelo contrário, geralmente o mérito recai sobre a figura do diretor. Independente do glamour da profissão, os roteiristas são peças fundamentais na maioria da produção audiovisual. Primeiro festival desse segmento na América Latina (segundo os organizadores), o Frapa ocorreu na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre. Com a maioria das atividades fechada para inscritos, em sua maioria roteiristas, o festival chegou à terceira edição em grande forma, com sessões lotadas (cheias de participantes vindos de outros estados) e convidados renomadas, tais como Fernando Castets (roteirista de O Filho da Noiva, Clube da Lua e Heleno, dentre outros), que ministrou uma master class. A relação completa dos vencedores da mostra de curtas está disponível no Facebook do evento. Além das mesas de debate, o festival também promoveu workshops, um concurso de roteiros e rodadas de negócios com produtores. Mais de 30 de canais e produtoras participaram das atividades, dentre eles a TV Globo, a Fox e o Canal Brasil.

Canta a Tua Aldeia

Um dos destaques da programação foi a mesa sobre regionalismos. No debate, George Moura (de Amores Roubados, O Rebu e Getúlio) defendeu a criação de mais produções que existam do eixo “Leblon-Jardins” (bairros das elites carioca e paulistana), mas que fujam do que chama de “kits” regionais, que são nada mais que amontoados de estereótipos sobre um determinado universo (seja o sertão mineiro ou a obra de Jorge Amado). Dentro dessa proposta de retratar um espaço do país, ele defende ser importante encontrar uma “realidade humana”, um “retrato genuíno”, dentro da qual há uma prosódia própria (sotaques, vocabulários) e um ambiente que se adequa ao universo criado. Em O Rebu, por exemplo, a mansão que eles imaginavam filmar existia disponível apenas em Buenos Aires, embora a produção seja brasileira, enquanto em O Canto da Sereia, optou-se por filmar em Salvador, com um elenco que misturasse atores locais e de outras regiões. Ele ressalta, ainda, que, ao trabalhar uma ideia com inspiração literária ou histórica, é necessário se despreocupar em ser reverente, pois a “cópia do resultado é o fim do invento e o fim do invento é  a morte do roteirista”, ou seja, um livro é um ponto de partida para a criação.

Também participante do debate, Giba Assis Brasil (de Verdes Anos e montador das produções da Casa de Cinema de Porto Alegre) defendeu que, embora se deva procurar o universal, personagens não podem ser genéricos, tem que ter suas especificidades. Além disso, comentou que, mesmo que se produza dentro da “aldeia”, é necessário sair dessa para manter-se, não há como encontrar toda a demanda necessária apenas na própria região. Em consonância a essa ideia, Moura comentou que é importante estar claro que o roteirista, o criador em geral, não deve mirar apenas naquilo que se sabe que o público anseia, mas mostrar a ele o que quer, apresentar novas formas de audiovisual que possa lhe agradar mesmo que não a conheça ou reivindique.

Roteirista de Pedro & Bianca (série infantojuvenil premiada no Emmy Kids), Thiago Dottori ressaltou, por sua vez, que é preciso haver uma consonância entre realizador e roteirista, que o escritor do argumento tem que estar dentro da “verdade emocional” daquele objeto, caso contrário, o trabalho não conseguirá ter andamento – ele mesmo já deixou um projeto por discordâncias difíceis de resolver. O participante comentou, também, da pouca valorização dos autores da televisão brasileira, embora considere, pessoalmente, Dias Gomes um gênio da teledramaturgia, por exemplo. Enquanto as séries estrangeiras (especialmente dos Estados Unidos) alçaram grande espaço no país, a telenovela e as minisséries nacionais ainda não tiveram suas qualidades suficientemente valorizadas.

Para participar de casa:

Se a chance de acompanhar o Frapa e o Festival de Gramado já passou, ainda é possível assistir alguns dos concorrentes do 26º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, que ocorre de 19 a 30 de agosto. Possivelmente o maior do segmento do país, o festival exibe alguns dos destaques nacionais da programação no Portal Curtas. No site, durante o evento, é possível assistir filmes concorrentes da Mostra Brasil e Panorama Paulista. Os dez melhores votados pelo público serão avaliados por um júri, que, por sua vez, elegerá os dois vencedores do Prêmio de Aquisição do Canal Curta!, no valor de R$ 5 mil. Dentre as produções concorrentes, estão três premiados em Gramado: o gaúcho O Teto Sobre Nós  (melhores direção e desenho de som), de Bruno Carboni, o paulista Quando Parei de me Preocupar com Canalhas (ator, Matheus Nachtergaele, e roteiro), de Tiago Vieira, e o pernambucano Virgindade (melhor montagem), de Chico Lacerda.

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