“Que Horas ela Volta? abre caminho contra as regras machistas”, diz Camila Márdila

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Camila Márdila e Regina Casé no filme “Que horas ela Volta?” (Foto: divulgação)

Que Horas Ela Volta? estreou no mundo como uma sensação. Na sua primeira exibição, em Sundance/EUA, levou o prêmio de melhor atriz, dividido entre Regina Casé e Camila Márdila. Em Berlim, melhor filme de acordo com o público. Isso tudo por causa do seu tema, que foca nos costumes retrógrados da classe média alta, nas diferenças de classe no país, nos hábitos machistas da sociedade.

Aqui no Brasil, o filme trouxe essa reflexão também fora das telas. Em uma sessão especial em Pernambuco, os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira desrespeitaram a atriz Regina Casé a diretora do filme, Anna Muylaert, interrompendo suas falas, em uma tentativa injustificável – mesmo que ébria – de roubar o protagonismo da diretora. Os dois homens foram banidos por um ano da Fundação Joaquim Nabuco, e o assunto continua repercutindo nas redes sociais, com a indignação da própria Anna.

As atrizes Camila Márdila e Karine Teles estiveram em Porto Alegre no final de agosto para a pré estreia nacional da obra. O Nonada teve a oportunidade de conversar com elas sobre diversos temas que norteiam o filme. Confira a entrevista na íntegra e o aúdio, veiculado no programa Jabá, na minima.fm.

Nonada – Que Brasil é esse retratado no filme? Vocês acreditam que também é função do cinema retratar a realidade do nosso país?

Camila – Eu acho que o filme retrata vários cenários brasileiros, ou vários contextos, momentos que já vivemos e que estão ali embutidos na história, nos personagens. A personagem da Val, por exemplo, representa esse Brasil que ainda tem muito da herança escravocrata, da mãe de leite, da mulher que não é mãe, mas é a que cuida do filho da patroa e que nutre a casa do afeto. E na Jéssica, que é essa personagem que traz um viés do transformador, da energia de mudança, que quer romper o ciclo. Eu acho que em diferentes momentos da história política, da história do país, tem sempre um caminho meio “Jéssica” que aparece: o movimento da resistência, o movimento que acha que o que está vigente não precisa se manter. O Brasil é o cenário da mudança, das alterações sociais e do desejo de melhoras. E também é o Brasil da classe média que se fia muito na questão do privilégio da classe que ocupa, porque está financeiramente acima das outras pessoas e, a partir disso, reproduz atitudes e um modo de agir baseado em achar que é melhor que os outros. Então eu acho que tem vários cenários ali apresentados.

Karine – A arte tem essa função mesmo, de representar o seu tempo, seu lugar, e a Anna conseguiu de forma primorosa – a partir de uma história pequena, de um microcosmo ali de uma casa, de uma família – falar do país e das relações políticas e sociais de uma maneira muito poderosa. E eu acho que esse é trunfo do filme. Tanto que, fora do país, em outros lugares, as pessoas conseguem se identificar com ele, conseguem se relacionar com aqueles personagens e conversar sobre essas questões: da guerra de classes, das divisões sociais impostas por regras que nós nem sabemos mais de onde vem.

Nonada – Por fazer fortes críticas aos comportamentos da classe média alta, você acha que o filme está chegando a esse público?

Karine – Eu acredito que sim. A gente tem visto nas sessões aqui no Brasil, ao mesmo tempo em que as pessoas se emocionam e se identificam, elas também se percebem, se veem no filme e se incomodam com isso. Lindamente, eu tenho ouvido relatos de pessoas que começaram a pensar sobre isso a partir do filme. Mas pra além da crítica à classe média, também existe a crítica à classe trabalhadora. A Val também é uma personagem que acredita nessas regras impostas e se esforça para mantê-las. Nós tivemos algumas sessões para empregadas e os debates foram bem interessantes. Porque é difícil sair do lugar, você precisa de uma energia, você precisa perceber alguma coisa, entender que existe uma possibilidade de mutação e fazer um esforço para mudar. E o lindo é isso. A personagem da Regina Casé também passa por uma transformação no filme, ela se percebe como cidadã e percebe como é fora de lugar que é a situação dela naquela casa, na sociedade. É isso. A gente tem que lembrar que o país é uma democracia e que, na verdade, o governo trabalha pra nós, e não o inverso. Então, na hora que a população entender isso, perceber a força que temos, as coisas vão mudar com mais velocidade do que elas têm mudado.

Nonada – Vocês acreditam que, para a classe média alta, a verdade dói? Porque o filme não apresenta a Bárbara como vilã, mas sim como uma pessoa que reproduz um comportamento e por aí vai por várias gerações…

Karine – É o que eu falei. As pessoas se encaixam em padrões pré-determinados e seguem os comportamentos que elas aprenderam ou assimilaram como corretos.  Então, esse lugar do patrão é tão estático e cheio de regras, como é o lugar do empregado. E o que eu acho bonito no filme é que aparece a Jéssica, que não se coloca nem como superior, nem como inferior, e não coloca ninguém como inferior ou superior. A Anna fala dessa utopia, das relações serem mais horizontais, que possamos nos relacionar para além dos lugares sociais.

Camila – Se simplesmente a Bárbara fosse uma vilã, acho que não geraria a identificação necessária para esse filme ser tão forte. Porque o bacana é a gente se ver Bárbara em situações da vida, com o porteiro da nossa casa, ou pegar um ônibus, ou em outra situação em que você está em uma posição de ser o chefe, ou algo do tipo. Eu acho que o legal dos personagens é isso, é a gente poder se ver como cada um deles em diferentes momentos da sua vida.. E acho que é por isso que o filme ganha uma força, porque nenhum personagem é estático, cada tem suas fraquezas, justificativas. E não justificativa para colocá-lo como certo, mas sim como humano, possível, presente entre nós. Então adotar todos os defeitos também como reais é um passo para a gente começar a lidar com isso, não simplesmente começar a julgar como certo ou errado. Mas, “ok, somos assim. O que a gente faz se a gente percebe que temos ações assim? O que será que a gente faz? Como posso agir diferente disso? Qual pode ser a mudança?”. E eu acho que o filme traz esse processo de conscientização. Tanto na personagem da Jéssica, chegando na casa, que é a abertura para se começar a repensar o comportamento ou modos de relação desse microcosmo, quanto nas discussões que ele gera ao todo da história, como debate pós filme. As pessoas saem pensando, se incomodando mais com coisas que a gente vai tomando como naturais na vida e que retardam muito nosso progresso social.

Camila e Karine estiveram em Porto Alegre para uma sessão especial do longa (foto: Cine Bancários/divulgação)
Camila e Karine estiveram em Porto Alegre para uma sessão especial do longa (foto: Cine Bancários/divulgação)

Nonada – Uma coisa que é impossível não notar é que ele é dirigido por uma mulher e as protagonistas são três mulheres. Os homens não exercem um papel importante no filme, exceto talvez a figura do Fabinho pela relação com a Val. E queria que vocês falassem sobre isso, a importância das mulheres no centro dos filmes – seja direção ou atuação -, como isso afeta as artes, das questões de ainda sermos uma sociedade machista, misógina, etc.

Karine – Em primeiro lugar, uma coisa que eu já ouvi a Anna falar e eu concordo plenamente, independente de ser uma mulher dirigindo esse filme, acho que ele tem um olhar diferente do que a gente costuma ver. A gente já viu essa relação sendo retratada em vários outros filmes. Mas o ponto de vista da Anna, além de ser o ponto de vista da cozinha para a sala, é o ponto de vista da mãe também. Essas três mulheres no filme têm esse lugar, da mãe, do futuro. A mãe é isso, é quem propicia o futuro, quem gera, quem vai renovar. A Anna é uma cineasta talentosíssima e com uma produção grande, e eu espero que ela continue produzindo. Eu acho bonito que tenha essa força feminina no filme, a gente tá vivendo muito essas discussões, tem se falado muito nisso, em pleno 2015 a gente ainda está discutido essas questões de misoginia, machismo, de diferença no salário e carga horária, de direitos trabalhistas…

Camila – Os mínimos gestos também. Porque o complicado é realmente perceber o tanto que o machismo está muito introjetado na nossa forma de agir no mundo, inclusive das mulheres, claro. E as três mulheres do filme são completamente diferentes uma da outra, mas a gente percebe a força que cada uma tem de estar acumulando tanta função no mundo, porque os homens estão ali quase que existindo só porque elas existem. Então você tem a mãe/babá que trabalha, a que quer prestar vestibular, a que está correndo atrás do prejuízo, a que está tentando sustentar a filha. O filme vai abrindo caminho para que o repensar no sentido de ir contra as regras machistas, criadas pelos homens, impostas no mundo em determinado momento e que estão muito baseadas na força, na classe social da conquista pelo trabalho, do território, da posse, do material, dessa energia que é a energia masculina, né? E historicamente já está totalmente introjetada no nosso modo de agir, relacionar, enfim. E essas três mulheres estão ocupando todas as funções ali dentro, e mesmo assim, quanta desvalorização, né? As pessoas ali à margem – Jessica e Val -, a personagem da Bárbara, entrando no curto circuito, coitada, um acúmulo de coisas.

Nonada – E como está sendo para vocês a aceitação no exterior e todos os prêmios que o filme tem recebido?

Camila – O filme ter estreado lá foi uma surpresa em relação à recepção, porque o roteiro nasceu muito dessa vontade de ser um filme espelho do nosso contexto brasileiro. E as pessoas terem se identificado, lá fora, no nível que foi – porque realmente foi muito forte desde a primeira exibição em Sundance – foi muito bacana ver como ele transcende. As pessoas partem pra discussão da relação de poder, falam sobre ser mulher, sobre estar à margem, sobre como é ser um cidadão ali na periferia. E em Berlim, que teve o prêmio de público, a reação das pessoas foi muito forte, e o filme funcionou muito como uma comédia de verão. Como muitas dessas questões já são muito mais resolvidas pra eles, socialmente e politicamente, muitas cenas já se tornam, de certa forma, um absurdo que eles morrem de rir. Por exemplo, o modo de a Bárbara se vestir no café da manha já é uma cena cômica pra eles. No Brasil ainda é chique manter essa pompa, e pra eles já é cafona. E é legal ver essas diferenças. E em Gramado foi uma sessão mais tensa, mais “estamos nos vendo ali”.

Nonada – Vocês acreditam que isso acontece por que falta discutir no Brasil sobre essas questões, diferente do que acontece lá fora? Falta mostrar como é a realidade, tocar na ferida da sociedade, nas questões sociais?

Karine – Eu acho que cada vez mais nós temos discutido os assuntos. Eu sou muito otimista, e acredito que estamos em um momento de transição muito poderoso, muito importante para o país, onde as pessoas estão sendo obrigadas a formarem seus próprios conceitos e ter que defendê-los. As redes sociais trazem essa necessidade de se posicionar. Eu acho o máximo ver como as pessoas não têm argumentos para defender certos posicionamentos que são completamente ultrapassados e infundáveis hoje em dia. E, às vezes, partem para ignorância, violência, xingamento, vão bater panela, porque não têm argumento. Eu acho que o filme vem um momento muito importante, porque, ao mesmo tempo em que ele fala de um ranço que ainda existe no país, ele também traz essas mudanças que a gente tem vivido. Ainda é muito pouco, mas percebemos que a realidade do país mudou bastante de 12, 13 anos pra cá. E a Jéssica tem esse lugar de possibilidade de mudança, de que as coisas podem ser transformadas.

Nonada – Como tá sendo para vocês serem o possível concorrente brasileiro ao Oscar?

Karine – Independente de concorrer ou não ao Oscar, eu acho lindo que tenha esse assunto porque isso estimula as pessoas a terem interesse de ver o filme. Como de fato eu acho que é um filme importante de ser assistido, eu acho lindo que tenha isso acontecendo, porque mais pessoas vão querer vê-lo e mais pessoas vão se deparar com suas questões e vão ser obrigadas a lidar com aquilo.

Camila – Ontem eu ouvi uma pessoa me dizer: “Se esse filme for para o Oscar, vai ser mais um 7×1 que perdemos” (risos). Mas enfim, piadas a parte, acho que nossa mente está tão focada para o público brasileiro assistir, que o Oscar vai ser um resultado, se ele for o eleito brasileiro, como diz a Anna, vamos trabalhar para que seja isso.. Mas realmente agora o foco está em como vai funcionar nos cinemas brasileiros, pro público, pra quem ele foi feito principalmente, acima de tudo.

 

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