A Colina Escarlate prova que o conceito de mansão mal assombrada não está esgotado

Texto Júlia Manzano

A Colina Escarlate, o novo longa de Guillermo Del Toro, surge como uma grata surpresa dentro do cenário do terror. Associando a direção segura, o design de produção competente (de Thomas E. Sanders), atores talentosos e um roteiro (escrito pelo próprio del Toro em parceria com Matthew Robbins) bizarro o suficiente para ter saído de um livro de Edgar Allan Poe, ele é bem-sucedido. E referências à literatura gótica não faltam. Lugares distantes e isolados, personagens vulneráveis à insanidade, práticas estranhas, uma casa mal-assombrada e outras questões macabras estão presentes.

Edith logo se encanta com a presença do nobre inglês
Edith logo se encanta com a presença do nobre inglês

No filme, a jovem Edith Cushing (Mia Wasikowska) é uma aspirante a escritora em Buffalo, Nova York, no ano de 1901. Quando o baronete inglês Thomas Sharpe (Tom Hiddleston) se encontra com o construtor Carter Cushing (Jim Beaver), pai de Edith, a fim de pedir dinheiro para uma máquina que permitisse extrair argila das minas de sua família, ela acaba se interessando nele. Levemente misterioso, Sharpe lembra a estética gótica: com a pele quase fantasmagórica e sempre vestido de preto, ele chama a atenção de Edith por levar a sério não apenas sua capacidade enquanto escritora mas também por não ridicularizar seu interesse pelo sobrenatural. Após eventos trágicos, eles se casam, e ela se muda para a antiga mansão da família Sharpe, na Inglaterra, onde estranhos eventos se desenrolam.

Além da estranheza de Thomas, também somos apresentados a sua exótica irmã, Lucille. Representada com destreza por Jessica Chastain, é graças ao talento da atriz que ela não se transforma em um estereótipo de mulher misteriosa/louca. Chastain dá a Lucille sutilezas que constantemente provocam o espectador quanto às reais intenções da atual matriarca da família Sharpe. Aliás, personagens isolados da sociedade e que não parecem ser o que demonstram é outra característica da literatura gótica. Muitas vezes, para refletir a instabilidade interior da pessoa, mostra-se tempestades batendo à porta dos locais onde os fatos se desenrolam, e em Colina Escarlate temos uma tormenta de neve como obstáculo natural. A natureza representa tanto uma ameaça quanto algo quase intransponível, como se reflete no diálogo entre Edith e Lucille no parque de Nova York. Quando Lucille menciona que as borboletas estão morrendo, a protagonista comenta que é triste, a outra logo responde: “Não é triste, Edith. É a natureza. É um conjunto de coisas morrendo, comendo umas às outras abaixo dos nossos pés”.

Após o casamento, Edith muda-se para a casa do marido, na Inglaterra
Após o casamento, Edith muda-se para a casa do marido, na Inglaterra

Edith, além do pai, tem o médico Alan McMichael (Charlie Hunnam) como amigo. Afeiçoado à protagonista,  é ele quem parece o mais preocupado com o envolvimento de Edith com os Sharpe, tanto pessoal quanto financeiramente. Hunnam encarna o personagem com simpatia, sem cair no estereótipo de “homem salvador”, mas também sem fazer com que o público se afeiçoe muito a ele. A real heroína aqui é Edith, que por mais que demonstre fraqueza (justificada nos eventos do longa) em certas ocasiões, não precisa de um herói. Wasikowska constrói a protagonista com inteligência e esperteza, mas também vulnerabilidade – o que talvez leve o espectador a temer ainda mais pelo que acontecerá dentro dos portões de Allerdale Hall, a propriedade dos Sharpe. E McMichael é um oftalmologista, o que também pode ser significativo, já que o próprio acredita em fantasmas e o fato de ajudar as pessoas a “ver melhor” pode estar ligado à simbologia da produção.

Aliás, o próprio longa já estabelece seu pressuposto básico nos primeiros minutos de projeção: fantasmas são reais. O filme não tentará provar, a partir de sustos e tensões, que as criaturas fazem parte do nosso mundo. Ali, eles são tão personagens quanto a protagonista Edith. Longe da figura que usa cores claras e enevoadas, mantendo sua aparência (pelo menos quase) humana, os fantasmas de A Colina Escarlate são aterrorizantes apenas por seu visual, como se fossem corpos em decomposição e com traços das circunstâncias da sua morte. E Del Toro tem consciência disso ao apresentá-los surgindo lentamente no meio da tela, em direção à câmera em várias situações. Ou seja, não precisamos tomar um susto quando eles finalmente aparecem. Por si só são tão assustadores, que mesmo que aos poucos, temos medo daquilo que está chegando até nós.

E mesmo assim, os fantasmas não são os elementos mais bizarros do filme. Sua presença naqueles ambientes é perturbadora, mas seus efeitos são sentidos somente por Edith, e essa, ao não ignorar os contatos que tem com os seres sobrenaturais, descobre sobre a situação que a cerca na mansão.

Os irmãos Lucille e Thomas Sharpe
Os irmãos Lucille e Thomas Sharpe

A fórmula de “casa mal assombrada” é repetida em diversas produções pouco criativas, banalizando o conceito. Porém, em A Colina Escarlate, ele prova que não está esgotado. Os ambientes da propriedade Sharpe são assustadores. Enquanto os cenários de Nova York investem em uma paleta apagada, mas quente, com o marrom, o bege e o dourado criando um clima acolhedor, a casa da Inglaterra parece um pesadelo. Escura, fria e gigantesca, a mansão que acolhe Edith tem tudo para ser desconfortável. Um buraco no teto faz com que neve na parte interior, o piso está afundando (bela alegoria com a situação da família), os corredores são intermináveis e líquidos vermelhos (cor característica daquela argila específica) escorrem das torneiras, quase como se a casa sangrasse. Além disso, o local reproduz estranhos ruídos e é inacessível e distante de qualquer outro lugar habitável. E é claro: é assombrada.

A mansão também parece ter uma identidade visual própria. Enquanto Lucille combina seus figurinos com a casa – ao optar por modelitos em tom de vinho, azul marinho e preto – Edith não se encaixa. Seus modelitos variam, mas quando usa o dourado, faz uma referência direta a sua antiga vida em Nova York e ao fato de que ela não pertence àquele lugar. Porém, quando já está na casa, e nos momentos de maior vulnerabilidade, ela está de branco e pálida, quase fantasmagórica. Seu figurino oscila quando, por exemplo, chega na propriedade. Ao entrar na moradia dos Sharpe, ela não usa as cores que a definem normalmente, mas um vestido branco com detalhes em roxo e azul escuro (cores da família Sharpe), mostrando que teve que ceder a algumas questões que se referem ao casamento. Porém, por baixo, há um pano dourado: ela ainda é a Edith que veio de Nova York. O próprio vestido que Edith usa com Thomas no baile (ainda em Nova York) já é de um tom rosa bem mais pálido, que talvez demonstre como esta abdica de seu ambiente de conforto em nome da vulnerabilidade e do casamento.

E nas questões violências, não há economia de sangue ou dor. As cenas são gráficas, realistas e angustiantes, como Del Toro já havia feito no excelente O Labirinto do Fauno.

A Colina Escarlate não é um filme perfeito, sem dúvida. Mesmo que tente criar a melhor atmosfera possível, em alguns momentos pontuais, o longa ainda cede aos clichês do terror. O que realmente importa é que mesmo rendendo-se a alguns estereótipos – por que não questionar a competição feminina, que soa insana, enquanto a masculina parece ser sempre um acordo de cavalheiros? – o filme é bem sucedido na sua intenção de espantar. E o efeito é graças ao conjunto da obra que proporciona uma experiência, no mínimo, desconfortante.

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