Em Orestes, tragédia grega conduz debate sobre a justiça no Brasil pós-ditadura

Versão de William Adolphe Bouguereau da Oresteia, em 1862
Obra de William Adolphe Bouguereau sobre a Oresteia, em 1862

A Oresteia (458 a. C ), de Ésquilo, foi a única trilogia grega que sobreviveu praticamente íntegra à ação do tempo. Sim, o gosto humano por trilogias vêm de longe. No período clássico grego, em Atenas, as festas dionisíacas da primavera começaram a ser acompanhadas de competições dramáticas, para as quais cada poeta participante deveria escrever três tragédias e um pequeno drama satírico. Devemos ser duplamente gratos ao destino pela preservação dessa trilogia de Ésquilo: ademais de ser base para o estudo do gênero trágico, é a representação literária de um marco civilizacional: o surgimento do direito e da democracia, a transformação das Erínias em Eumênides, isto é, da justiça vingativa – o olho por olho dente por dente – na ideia de uma justiça gerida pela coletividade.

A história conta que Orestes mata sua mãe, Cliitemnestra, para vingar o pai, Agamêmnon, morto anteriormente por ela, dando seguimento a um ciclo de mortes que vinha desde as primeiras gerações de sua família. Esta é a sina que comanda Zeus supremo e que é executada pelas Erínias, deusas da vingança – quem mata será, cedo ou tarde, punido com morte; quem trai será, cedo ou tarde, punido com traição. No entanto, a terceira parte da Oresteia rompe com este eterno retorno da vingança: uma corte judicial é estabelecida para julgar Orestes, que termina absolvido, ato simbólico que põe fim à maldição de vingança que assombrava sua família e inaugura um novo tipo de justiça, o da pólis grega.

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Os mitos gregos são fonte de imagens primordiais que a arte atualiza e reutiliza incansavelmente. Mas, em geral, enxergar essas raízes mitológicas – ou arquetípicas – em produções contemporâneas é uma exclusividade de especialistas ou autodidatas apaixonados pelo imaginário de nosso antepassados helênicos. O filme Orestes, de Ricardo Siqueira, explicita no título e em nota de abertura essa apropriação consciente da obra de Ésquilo, uma escolha que potencializa o argumento de seu filme, pois destaca, simultaneamente, a atualidade desta obra trágica e as dimensões profundas do debate político em que está imerso o Brasil contemporâneo.

Misturam-se no longa elementos documentais e ficcionais, que dialogam entre si, de modo a realçar as reverberações da Oresteia nos dilemas éticos que permeiam as discussões sobre as feridas deixadas pela ditadura brasileira. Também aqui, trinta anos depois do regime militar, nos vemos diante da necessidade coletiva de uma justiça legal para dar destino ao desejo – demasiado humano – de vingança. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal rejeitou, por sete votos a dois, o pedido da OAB pela revisão da Lei da Anistia – que em 1979, durante o governo de Figueiredo, concedeu perdão a todo os envolvidos em crimes ditos políticos desde 1961. A ideia de filmar Orestes surgiu neste momento histórico, posto que a reiteração do perdão do Estado manteve inalterada a revolta daqueles indivíduos que perderam amigos, familiares e cônjuges em torturas, assassinatos ou desaparecimentos inexplicáveis. Se o Estado não cumpre seu papel de manutenção da justiça, corremos o risco de voltar ao tempo das Erínias?

As personagens  

José Roberto Michelazzo Foto: divulgação
José Roberto Michelazzo Foto: divulgação

Na dimensão documental do filme, destacam-se as participações de José Roberto Michelazzo, Ñasaindy Barret e Sandra Domingues. Michelazzo foi convidado a fazer parte do filme por ter sido um sobrevivente da tortura e da perseguição levada a cabo pela ditadura, mas acabou contribuindo também com seus conhecimentos de psicodrama, forma de terapia psicológica que é um dos recursos centrais da obra de Rodrigo Siqueira. O psicodrama se baseia na encenação de situações que precisam ser vividas pelos participantes, pelo menos em simulação, para a liberação e elaboração de seus traumas mais íntimos. Segundo o diretor, as cenas que aparecem no filme são momentos autênticos das sessões psicodramáticas, cujo valor está justamente na naturalidade das falas, uma vez que, confrontados com seus maiores temores e fragilidades, os sujeitos reagem sem a censura racional, expressando emoções que de outra forma ficariam retidas no silêncio.

Sandra Domingues Foto: reprodução)
Sandra Domingues Foto: reprodução)

Sandra Domingues entra no filme como porta-voz da grande parcela da população brasileira que, diante da complexidade do fenômeno da violência urbana, ecoa o discurso raso de bandido x mocinho,  resquício das justificativas ditatoriais para a violência de Estado. Antes o regime perseguia e matava terroristas, agora deve – segundo não hesitaria em concordar um sem-número de cidadãos – matar os bandidos. Representante de um grupo de mães cujos filhos foram vitimas da violência urbana, Sandra não consegue disfarçar seu discurso de ódio, afirmando que, em nome da segurança, o Estado, na figura de cada policial, tem o direito de matar, dizendo-se também a favor da pena de morte. Seu posicionamento é muito confrontado pelo restante do grupo de psicodrama, do qual fazem parte pais que perderam os filhos vítimas de policiais militares em situações nunca explicadas. Muito menos julgadas.

Ñasaindy Barrett Foto: reprodução
Ñasaindy Barrett Foto: reprodução

Ñasaindy Barrett é outra peça chave nestas cenas, pois sua história de vida tem traços trágicos que ecoam a Oresteia. Ñasaindy é filha de Soledad Barrett, torturada e assassinada durante o regime militar, por indicação e traição de seu companheiro na época, José Anselmo dos Santos, conhecido como Cabo Anselmo. E se Ñasaindy fosse filha dele? Teria ela o desejo de se vingar com as próprias mãos do homem que foi responsável pela morte de sua mãe? O quanto desse desejo orestiano por vingança há em cada um de nós e em cada um dos familiares de vítimas da ditadura que não tiveram direito à justiça, isto é, ao julgamento dos responsáveis pela morte, tortura ou desaparecimento de seus pais, amigos e cônjuges?

O julgamento  

Filme de Rodrigo Siqueira simula julgamento (Foto: divulgação)
Filme de Rodrigo Siqueira simula julgamento (Foto: divulgação)

Essas questões, entre outras, surgem à medida que as cenas do psicodrama se aprofundam. E são também sistematizadas na parte final do filme, em que um julgamento é simulado. Para este momento, Rodrigo Siqueira imaginou um caso jurídico, em que Orestes da Silva teria assassinado seu pai, trinta e sete anos depois de vê-lo torturar e matar sua mãe, em nome do regime militar brasileiro. Diante de um júri popular, discursam o promotor Maurício Antônio Ribeiro Lopes e o advogado e ex-Ministro da Justiça José Carlos Dias, respectivamente nas posições de acusação e de defesa. Diferente do destino de Orestes de Ésquilo, não ficamos sabendo se Orestes da Silva é condenado ou absolvido.

Esteticamente, as cenas de psicodrama recheiam o longa com imagens realistas, feitas com a câmera na mão e o calor das reações que esta técnica ajuda a provocar. Os participantes do psicodrama funcionam como o coro da tragédia: representam a opinião dos cidadãos – aqui em sua natureza polifônica e contraditória. Isso ajuda o filme a não tomar uma posição, mas a exigir que o espectador a tome. É impossível ficar indiferente aos argumentos de Sandra ou à dor de Ñasaindy. Somos motivados a escolher um lado diante dos discursos de Maurício Ribeiro Lopes e José Carlos Dias, como se também fizéssemos parte do júri popular que os escuta. O filme termina sem o resultado do julgamento, e nós terminamos de assistir cheios de questões e desassossego, provocados a dar sequência a este debate do qual depende a saúde de uma cambaleante democracia: como lidar coletivamente com as feridas abertas de nossa história – não apenas as perpetradas durante o regime militar,  também as que seguem sendo feitas ali onde o Estado democrático falha.

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Acompanhei a estreia do filme no Cine Bancários na quinta-feira, 24 de setembro, seguida de um debate do qual fizeram parte Rodrigo Siqueira, José Roberto Michelazzo, Pedro Ruas e Raul Ellwanger. Em mais de uma hora de comentários e respostas a perguntas do público, ficou claro que as questões levantadas pelo filme se encadeiam numa rede complexa de desafios sociais e políticos. Raul Ellwanger, músico e militante do Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça, lembrou dos recentes episódios de reação violenta da polícia militar às manifestações pacíficas de professores, assinalando que a este tipo de atitude se reproduz pela impunidade aos indivíduos fardados que se perpetua desde a ditadura. Reiterou, ainda, a necessidade de uma educação para os Direitos Humanos que faça parte do currículo escolar e da formação dos policiais nos quartéis.

O Deputado Estadual Pedro Ruas destacou a inquietação provocada pelo filme quanto aos limites da capacidade de justiça de uma pessoa dominada pela dor, questionando-se sobre as pequenas vinganças e reações desmedidas que cometemos diariamente. Quanto a isso, Michelazzo mostrou-se firme em atestar que, por sua experiência, a recusa à violência e à vingança só pode advir do perdão. Para que ele não se tornasse também um algoz, foi preciso perdoar o algoz que carregava dentro dele, afirmou. No entanto, esse tipo de perdão só pode ser admitido por cada um em sua intimidade, lembrou Ellwanger – o Estado, como representante de um pacto social, não pode ser perdoado, precisa ser restaurado e relegitimado. No centro desse redemoinho de inquietações, Rodrigo Siqueira reiterou o seu desejo de fazer do filme uma provocação ao debate. Algo que, não restam dúvidas, conseguiu.

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