Nas bordas: pluralidade e democratização do cinema fora do cenário industrial

Texto Júlia Manzano, com a colaboração de Raphael Carrozzo

Filmadora amadora, amigos e família atuando, qualidade de som duvidosa e equipamento improvisado. Se essas, entre outras questões, podem parecer assustadoras para os cineastas profissionais, há tempos, criativos artistas desenvolveram e ainda desenvolvem seus trabalhos nessas condições. Os chamados filmes de bordas são parte de um conceito relativamente novo no Brasil. De acordo com os estudos da professora e pesquisadora em audiovisual Bernadette Lyra, o estilo é todo aquele filme que se encontra fora do círculo industrializado de produção cinematográfica.

Para se caracterizar um filme como “de bordas”, é preciso analisar fatores desde a sua produção até a sua recepção, o que torna a tarefa árdua. Ele tem uma relação muito próxima com o cinema de gênero, mas não precisa estar necessariamente ligado a apenas um tipo de produção. Se difere dos filmes trash, que exaltam suas próprias limitações enquanto obra cinematográfica; dos filmes B, com pouco orçamento e preparo, considerado “toscos” em muitos casos; e do cinema marginal, um modelo de filme questionador da situação de determinada época e sem muita verba.

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Pequeno e com público 

Zumbi de Zombio 2 atacando Petter Baiestorf
Zumbi de Zombio 2 atacando Petter Baiestorf

Petter Baiestorf, natural de Palmitos (SC), dono da loja Mondo Cult e diretor de obras como Monstro Legume do Espaço e O Nobre Deputado Sanguessuga, explica que o conceito “de bordas” não está equivocado, mas o título está sempre mudando com o passar dos anos. Suas produções já foram consideradas trash ou B, e, para ele, o que importa é que o público continue tendo acesso ao que faz. Ele começou a filmar em 1992 com colegas de sala de aula, gravando Criaturas Hediondas em VHS com uma câmera “simples, dessas de gravar casamento”. A história tratava de um cientista marciano, o Dr. Rottenberg, que vinha para o nosso planeta e preparava a Terra para uma invasão. Para divulgar o trabalho, ele enviava cópias dos filmes em VHS e tentava, assim, aumentar seu público. Foi dessas tentativas que o diretor viu que era possível fazer cinema e lançou seu primeiro filme em 1993.

O público de Petter é fiel. Em Porto Alegre, ele lotou a sala de cinema do CineBancários em uma segunda-feira chuvosa de setembro para ver a exibição de Zombio 2: Chimarrão Zombies, filme onde um grupo de zumbis afetados por uma substância radioativa ameaça moradores da região. Petter é apaixonado por cinema experimental, especialmente pelas possibilidades que este proporciona. “Eu sou um realizador de exploração. Eu exploro temas. E geralmente eu vou trazer algum elemento escandaloso, meter o dedo em algum problema social. Uma coisa justamente para atrair a atenção. Eu não faço filme normalzinho”, comenta.

Felipe Guerra nas gravações de Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado parte 2
Felipe Guerra nas gravações de Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado parte 2

Mas cinema de bordas não precisa necessariamente ser terror ou fantasia. Felipe Guerra, cineasta e gerente do Cine Santander Cultural, natural de Carlos Barbosa, faz filmes há mais de vinte anos. Um de seus primeiros trabalhos foi uma comédia romântica chamada Patrícia Geneci, um anagrama de sua namorada da época. Usando uma câmera emprestada e colocando seus amigos para atuar, o realizador gaúcho fez, em 1998, um filme de 80 minutos. Porém, foi em 2001 que ele fez um dos filmes que marcaria a sua carreira. “Eu fiz o longa ainda em VHS, editado com dois videocassetes, e se chamava Entrei em pânico ao saber o que vocês fizeram na sexta feira 13 do verão passado”, conta. A obra vendeu cerca de mil cópias, todas enviadas em fitas pelo correio. E a partir desse filme, um terror feito em uma cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul, que Felipe Guerra ficou conhecido pelo Brasil. O programa dominical Fantástico fez uma entrevista com ele, e o apresentador Luciano Huck visitou a cidade, participando de um curta do diretor gaúcho e mostrando o processo em seu programa de tevê.  Entre as estrelas desses – e de outros – trabalhos, está sua avó, Dona Ondina. Aos 85 anos, ela é considerada a Fernanda Montenegro do cinema trash.

Internet e zines 

Se a divulgação na década de 90 e no início dos anos 2000 era quase toda feita manualmente, a internet chega como uma grande aliada. Enquanto para a indústria cultural do cinema a disponibilização de filmes online é uma preocupação, para os produtores de borda ela é uma grande vantagem. Joel Caetano, cineasta paulista, classifica a internet como um espaço democrático para expor trabalhos. Um de seus primeiros filmes, Minha Esposa é um Zumbi (2006), está todo disponível no Youtube, para que o público possa acompanhar as mudanças na rotina de Tonho (o próprio Joel Caetano), quando sua esposa se transforma em uma morta viva.

Ao permitir que os filmes sejam mais vistos e, consequentemente, conhecidos, o cineasta de borda aumenta seu público. “Ter mais pessoas vendo os teus filmes proporciona que tu, como realizador, consiga mais oficinas, palestras e mostras, que te dão um cachê. Logo, um cara que fala que a internet atrapalha não está sabendo explorar”, defende Petter.

Petter também sempre se utilizou do fanzine, uma publicação na qual os curtas que seguiam o estilo eram divulgados. Segundo Cristian Verardi, cineasta, assessor de programação da sala PF Gastal e professor de Literatura, os zines tinham um papel muito importante na divulgação desse tipo de produção, que depois, acabou migrando para a internet.  “Hoje em dia, acho que as redes sociais e ferramentas como o youtube são essenciais para o cinema de bordas”, acredita.

Longe do centro  

Cristian no set de A Noite do Chupacabra, filme de Rodrigo Aragão
Cristian no set de A Noite do Chupacabra, filme de Rodrigo Aragão

Assim como Petter e Felipe, Cristian Verardi é natural do interior. Ele cresceu em Roca Sales, no Vale do Taquari gaúcho, cenário de suas primeiras produções. Aliás, uma das características da produção de borda é a exploração das cidades natais ou de criação dos diretores e produtores, e um dos motivos é justamente estar longe dos grandes centros de produção audiovisual.

Cristian alega que seus filmes, atualmente, não são “de bordas”, mas suas primeiras produções, sem dúvidas, se encaixam no conceito. “O primeiro foi um filme que circulou feito com orçamento zero. A filmadora era emprestada da minha irmã, filmei com meus amigos, só em finais de semana”. O longa se chamava Soul Crusher, o retorno do homem coisa, no qual uma criatura infernal vem ao mundo dos vivos resgatar um livro que foi roubado do inferno. “É uma tosquice, mas uma tosquice assumida”, conta rindo. “A gente admitia todos os defeitos do filme, e muita coisa era feita propositalmente. O que valia era sempre o primeiro take”. A montagem também seguia a tecnologia da época: era feita com dois vídeos cassetes. Ele já foi pensado para funcionar daquela forma, “pois a gente sabia que não tinha grana para fazer algo profissional”. Mesmo começando com o terror, em 2005 o diretor realizou Fórum Babilônia, um documentário de bordas que reunia filmagens do interior do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre. “Eu mesmo não tenho certeza se ele seria de bordas”, comenta Cristian, “mas ele foi usado em uma aula da Laura Cánepa [professora e pesquisadora da área] como exemplo de um filme do tipo”.

Cláudio Guidugli grava todos os seus filmes usando uma cybershot
Cláudio Guidugli grava todos os seus filmes usando uma cybershot

O cinema de bordas é fortemente marcado pela presença de seu realizador, seja enquanto participante na frente das câmeras ou deixando algum tipo de marca específica na sua produção. As melhores câmeras nos anos 90 eram praticamente inacessíveis, mas com a ascensão do digital e o barateamento dos equipamentos, muitas pessoas puderam começar a se envolver com o mundo do cinema. Cláudio Guidugli, também de Roca Sales (e amigo de Cristian), filma desde 1996 com amigos. Ele dirigiu seu primeiro filme em parceria com uma amiga em 2007, com uma câmera digital cybershot, que pertencia a uma das atrizes – e usa a tecnologia até hoje. O Atirador do Facão foi um “curta que convenci a gurizada da cidade a atuar, algumas ideias não originais e muitas boas intenções”, conta Cláudio. Nele, um homem faz testes em águas supostamente contaminadas para torná-las próprias para o consumo humano e sua personalidade muda. Ele também é responsável por Amarga Hospedagem, o primeiro filme que dirigiu sozinho, já com sua própria cybershot. A história foi inspirada na lenda dos crimes da Rua do Arvoredo, de Porto Alegre, na qual um açougueiro vendia carne humana. No longa de Cláudio, um grupo de ciclistas encontra-se com o canibal ao fazer uma trilha. A protagonista é sua esposa, e o cenário, o interior de Roca Sales.

Independentemente de edital

As dificuldades financeiras para as produções são uma realidade para todos os cineastas que desejam fazer filmes de modo independente. Eles realizam seus trabalhos com recursos próprios ou de investidores particulares, e admitem que os filmes, por falta de verba, podem ter algumas limitações. Felipe, além de escrever e dirigir, edita, faz a fotografia e a correção de cor, investindo apenas com um técnico de efeitos especiais. Já Petter comenta que elementos estranhos funcionam como chamariz para suas obras e, de certo modo, compensam a falta de recursos. “Se tu vai fazer um filme completamente normal, mas com deficiência de orçamento, com atores amadores e uma série de dificuldades pra tornar o produto acabado, os caras vão ver um filme de locadora, bem realizado”. Os atores, dependendo da situação, são amigos ou conhecidos que estão lá de graça, apesar de, em alguns casos – como nos filmes de Felipe – receberem um cachê simbólico.

Felipe Guerra com parte da equipe de Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado parte 2
Felipe Guerra com parte da equipe de Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado parte 2

Os editais públicos também não são uma realidade dos produtores de borda, pois o dinheiro não vem da indústria cinematográfica nacional. Tanto Petter quanto Felipe são contra a ideia de que um filme pode apenas ser feito com o dinheiro público. Para os diretores, é essencial que ele dê algum retorno para os seus investidores, especialmente em um país com tantas dificuldades sociais como o Brasil – apesar de reconhecerem a importância do investimento em cultura. Felipe defende que, quando escreve um filme, quer filmar logo e acha o processo de concorrência ao dinheiro longo e burocrático. Para ele, o ideal seriam estúdios ou investidores particulares que possibilitassem a realização das produções.

Petter, Felipe, Cristian e Joel assinam os filmes com produtoras próprias, a Canibal Filmes, a Necrófilos Produções Artísticas, a Toque de Muerto e a Recurso Zero Produções Artísticas, respectivamente. Nelas, decidem como farão suas produções sozinhos, mas contam com amigos e parceiros. Ligações, aliás, não faltam. Petter, Felipe e Cristian atuam nos filmes uns dos outros ou auxiliam com questões de produção e desenvolvimento. “O filme pode ser um processo tão difícil de fazer que, ao invés de competição, ajudamos uns aos outros”, comenta Petter. O longa 13 histórias estranhas reúne curtas dirigidos por Petter (A cor que caiu do espaço), Felipe (Larvae) e Cristian (Ne Pas Projeter), e estreou este ano, no Fantaspoa, o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre. “Ele reúne quinze diretores, praticamente todo mundo que se envolveu com cinema fantástico e ainda sim o filme ficou super underground”, comenta Felipe. Mesmo tendo um público fiel, ele ainda é pequeno e para o diretor, há muito preconceito com a produção de terror no país. Os argumentos iriam desde o terror “não combinar” com a língua portuguesa até não gostarem de um filme que não esteja perfeitamente realizado – o que aconteceria devido à falta de verba. “E eu acho irônico que dizem que não vão ver um filme porque é tosco ou porque o cara filmou na casa dele, com a família dele, mas vão ver Atividade Paranormal, em que um grande estúdio gastou muito dinheiro para fazer parecer uma filmagem amadora”, argumenta. O diretor gaúcho Emiliano Cunha, que dirigiu obras como Tomou Café e Esperou e O Cão, acredita que o problema da distribuição também é latente, já que afeta filmes com e sem orçamento no Brasil. Para as obras de borda, ainda haveria a dificuldade da publicidade e locais para exibir os filmes.

Emiliano Cunha nos bastidores de Tomou Café e Esperou
Emiliano Cunha nos bastidores de Tomou Café e Esperou

Nos últimos anos, há mais espaço para a exibição, mas ainda assim, eles encontram maiores possibilidades de divulgação em festivais alternativos fora do circuito mainstream ou dos grandes festivais. Cristian, por exemplo, faz uma mostra própria na Sala P.F. Gastal, na Usina do Gasômetro, chamada A Vingança dos Filmes B. Mesmo hoje ela sendo mais ampla, ainda reserva uma seção chamada “Shoot or die”, apenas para filmes de baixo orçamento. Em São Paulo, existe a Mostra de Cinema de Bordas, organizada por estudiosos e cineastas da área, que também destina um espaço específico para esse tipo de produção.

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