Trabalhar Cansa mostra os dramas e o terror das incertezas da vida em um filme que é a cara do Brasil

Trabalhar Cansa 3
Helena descobre que não basta apenas trabalhar duro para um negócio pessoal funcionar. (Crédito da foto: Dezenove Som e Imagem)

Texto Amanda Kaster

Foi o filósofo americano Henry David Thoreau que afirmou: “os homens vivem vidas de desespero silencioso”. Esta frase se encaixa perfeitamente com as vidas apresentadas em Trabalhar Cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra, que esteve em cartaz no início do mês no Capitólio como parte de uma mostra do chamado Novíssimo Cinema Brasileiro. O filme de estreia dos diretores Marco Dutra e Juliana Rojas, lançado em 2011, conta a história do casal Helena e Otávio e de sua empregada Paula, misturando drama e terror. A trama aborda como o trabalho afeta as relações e os valores humanos, principalmente em novos começos.

E é justamente em um desses momentos de mudança em que encontramos os personagens e se inicia a narrativa. A dona de casa Helena, motivada pela fé de iniciar uma nova jornada – e incentivada por uma corretora de imóveis duvidosa –, decide investir em seu sonho do negócio próprio. Para isso, utiliza as e economias da família com o objetivo reabrir um antigo minimercado de bairro que estava fechado há muitos anos. Nova tinta na parede, produtos na prateleira, funcionários contratados e um sorriso no rosto mostram a confiança de quem acredita no poder do trabalho duro para o sucesso garantido. Logo ela percebe que se precisa de mais do que boa vontade para que as coisas funcionem.

Para muitos, a necessidade de trabalho vai além da mera participação no sistema capitalista como assalariado para o sustento da família. A tradição protestante diz que o valor do homem está somente naquilo que produz, que devolve para a comunidade. É assim que pensa Otávio, o marido, que foi demitido de seu emprego corporativista de executivo de seguros depois de dez anos na mesma empresa, substituído por alguém mais jovem que ajudou a treinar. Desempregado depois de muito tempo, ele se vê perdido nos meandros das tentativas de reentrada no mercado de trabalho, pedindo favores e passando pela tortura das práticas de recrutamento, com suas dinâmicas de grupo e impessoalidade das entrevistas coletivas.

A patroa Helena (Helena Albergaria) e a empregada Paula (Naloana Lima) assistem tv juntas (Crédito da foto: Gabriel Chiarasteli)
A patroa Helena (Helena Albergaria) e a empregada Paula (Naloana Lima) assistem tv juntas (Crédito da foto: Gabriel Chiarasteli)

Mais do que falar sobre a dedicação ao trabalho, o filme mostra as necessárias e delicadas interações entre diferentes grupos para manter a estrutura nas organizações. Nenhuma, porém, é tão íntima quanto a do trabalho doméstico representada pela figura de Paula, a jovem que busca de uma vida melhor em seu primeiro emprego na casa de Helena e Otávio. A sua relação com a família não foge dos moldes tão conhecidos pela classe média alta brasileira: ganhando o salário mínimo e sem carteira assinada, ela é parte da dinâmica familiar, mas é excluída pelas paredes da minúscula dependência de empregada nos fundos, ao mesmo tempo em que se torna a companhia e referência da pequena Vanessa, a filha do casal.

Enquanto isso, Helena se vê cada vez mais envolvida com as responsabilidades de ser a única provedora da casa, lidando com a falta de dinheiro e corte de despesas. Ela se torna mais consciente de seu papel como empregadora. Otávio míngua pela falta de perspectiva de arranjar um novo emprego, e acaba ficando deprimido em casa, incapaz de saber como se portar diante das contas que se acumulam. Somado a isso, ressente-se de ter que ajudar no minimercado, que considera da esposa e não da família. Quanto mais Helena trabalha, menos faz Otávio. A relação, antes tão próxima e apaixonada entre os dois, começa a se desgastar e a perda de respeito afeta o tratamento de seus empregados e a relação na unidade familiar.

o indefectível mercadinho da família, palco das esperanças e dos medos de Helena. (Crédito da foto: Dezenove Som e Imagem)
o indefectível mercadinho da família, palco das esperanças e dos medos de Helena. (Crédito da foto: Dezenove Som e Imagem)

Não se pode dizer que Trabalhar Cansa será reconhecido nos próximo anos como um clássico do novo cinema brasileiro. O ritmo da narrativa é lenta e é preciso um pouco de tempo para se acostumar com os personagens e entender sua forma de pensar. As reações à vida, muitas vezes apáticas, podem falar mais alto do que grandes arroubos de paixão. No entanto, o filme apresenta dois grandes trunfos: o primeiro são os diálogos muito simples e econômicos, mas poderosos dentro do contexto que são apresentados. Diante do desespero e da incerteza, as palavras dão lugar às emoções, que deixam os atores mostrarem seu potencial dramático. Ponto certeiro para os diretores, que também assinam o roteiro. O outro é a edição, que intercala ações e imagens aparentemente desconexas, mas que sustenta o tom de suspense nas cenas mais tensas do filme e segura o espectador até o final.

Para os interessados em direção de arte, vale a pena apontar o cuidadoso trabalho de Fernando Zuccolotto com a criação de produtos à venda no minimercado. Nomes fictícios de marcas, propagandas e design de embalagens que, para o olho atento, são um deleite de piadas e trocadilhos com nomes conhecidos pelo público.

Longe, no entanto, de ser apenas um retrato ordinário da vida de três pessoas, o filme traz toques – muitas vezes inexplicados – de terror. O minimercado, além da morosidade de seus corredores com música popular tocando intermitentemente enquanto os minguados clientes compram, começa a apresentar problemas fora do comum. Cachorros que aparecem todos os dias no mesmo horário e rosnam ameaçadores, uivos de lugares desconhecidos, desaparecimento de mercadorias das prateleiras, encanamentos entupidos, a lembrança eterna dos antigos donos do estabelecimento – sempre presente na memória dos antigos clientes que contam histórias estranhas sobre seu sumiço – e uma parede em que um buraco negro não para de crescer, para o desespero de Helena.

Trabalhar cansa, e em certos momentos, o filme também. Sua narrativa lenta pode afastar a maioria dos espectadores acostumados com os parâmetros definidos dos dramas e filmes de terror do cinema americano. Mas ele vale pelas reflexões que traz dos pequenos terrores do dia-a-dia: das micro-agressões sofridas pela população periférica em seus empregos, a frustração das incertezas dos mercados e, finalmente, da vida que se dedica de corpo e alma ao trabalho que vai além do sobrenatural. Neste momento pode se questionar: o que é real? O que realmente se tira do trabalho? De que forma se pode solucionar os desafios apresentados na labuta diária daqueles que precisam do trabalho para viver? O filme traz um término, um recomeço e uma dúvida. Sem soluções fáceis, sem respostas definitivas

Compartilhe
Ler mais sobre
Entrevista Processos artísticos

Imagens sonhadas de um Brasil real: por dentro da fotografia de Marte Um

Memória e patrimônio Reportagem

Áspera e desigual: como Porto Alegre chega aos 250 anos segundo seus artistas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *