José Mayer, o vendedor de livros

Zé é livreiro há mais de duas décadas Foto: Ladeira Livros/divulgação)
Zé é livreiro há mais de duas décadas Foto: Ladeira Livros/divulgação)

A Praça da Alfândega, situada no Centro Histórico de Porto Alegre, é um dos melhores lugares da cidade. Entre a Andradas e a Sete de Setembro, o local recebe todos os tipos de pessoas. Essa é uma das belezas da Praça, e do Centro, pessoas de classe alta e baixa transitando igualmente, quase que sem distinção. Crianças brincam no parque, idosos jogam dominó nas mesas, adolescentes sentam próximos à estátua e fonte para conversar, casais aproveitam o horário de almoço ou o fim do expediente para se verem. Uns dormem nos bancos. Feirantes vendem artesanatos, roupas ou acessórios.

Não é por acaso que um lugar lindamente arborizado (e que, durante a primavera e verão é uma atração à parte), tenha sido escolhido para ser sede da maior feira de livro a céu aberto da América Latina por 60 anos de forma ininterrupta. Com mais de 80 expositores – com bancas das principais livrarias, editoras e sebos da cidade – a Feira do Livro de Porto Alegre dura cerca de três semanas e atrai milhares de pessoas, fazendo jus ao local que a sedia.

Com tantas pessoas circulando durante o evento, algumas figuras se destacam mais que do as outras, principalmente tendo em vista os autores que marcam presença para autografar seus livros e participar das atrações. Tenho a ousadia de afirmar que, talvez, com tantos personagens singulares, os livreiros sejam os mais importantes da Feira. E José Mayer, o Zé, está aí para constatar isso.

Zé já está no seu 22º ano de Feira, na banca da Editora Vozes. Seu interesse por livros começou quando, aos 20 e poucos anos, começou a trabalhar na biblioteca do Colégio São Luís, de Santa Cruz do Sul. Com acesso total ao local, ele lia todos os tipos de livros. Mas foi enquanto cursava Filosofia e Teologia que ele acabou descobrindo seu afeto por esse tipo de arte. “Eu comecei a ler livros na área de Ciências Humanas, como sociologia e filosofia. Dialética para Principiantes ou Árvore da Vida são livros que me deram uma compreensão de mundo e do homem que eu acabei formando para mim”, ele me disse, em meio aos livros.

Quando desistiu de ser padre, Zé começou a trabalhar na livraria e, desde então, se limitou a ler orelhas, resumos e bibliografia. Essa era uma forma de obter o máximo de informação possível para o cliente, já que ler uma obra extensa por inteiro é complicado e demorado, tendo em vista o enorme acervo da editora.

O livreiro sabe como informar os clientes lendo as capas e orelhas das obras Foto: Mari Mariel/Nonada)
O livreiro sabe como informar os clientes lendo as capas e orelhas das obras Foto: Mari Mariel/Nonada)

Engana-se quem acredita que isso significa que ele sabe menos de livros do que quem lê os livros por inteiro. Zé passa o dia inteiro arrumando o exterior da banca, no meio dos clientes. Eles examinam, folheiam, e, depois, lá vai ele, colocar tudo no devido lugar. Quando compram, ele repõe com um novo. Está ali pra isso, para assessorar o cliente, ajudá-lo na busca por título, autor ou temas relacionados. “Os bons livreiros se conhecem realmente na Feira, você tem que ter uma livraria inteira na cabeça”. Quanto à organização, Zé não sabe dizer se é ou não metódico. “Olha, meus amigos dizem que eu sou muito desorganizado. Eu me acho na minha bagunça, e os clientes dizem que conseguem achar facilmente os livros. Então, não sei”, ele diz, rindo.

Vivendo entre tantas pessoas e com muitos anos de Feira, o que não falta na vida de Zé são histórias – ele mesmo afirma que elas partem de um fato verdadeiro, contudo possuem elementos lúdicos. Uma história que o livreiro conta foi que, há alguns anos, uma cliente o procurou com uma relação de livros, pois ela iria prestar prova para um concurso. Ele passou duas semanas buscando os exemplares. No final, os entregou e ela saiu contente. Dois anos depois, na própria Feira, ela o encontrou e disse que tinha passado no concurso e que estava realizada. Zé, brincalhão do jeito que é, fez graça com a situação. “Eu agradeci e disse que estava feliz por ela, mas que se ela quisesse depositar 0,01% na minha conta bancária, aqui estava o número”, relembra, rindo. “Brincadeira a parte, acredito que, de certa forma, eu estou presente na trajetória de vida das pessoas e das conquistas delas a partir dos livros. Busco o exemplar em qualquer canto quando o freguês quer. Quanto mais difícil, mais singular, maior a satisfação em atendê-lo”, conta.

Com tanto livros na vida, é impossível que ele não crie alguma empatia com eles. Nas andanças físicas e virtuais em busca por algumas obras, Zé encontrou um que estava esgotado, pois não é mais produzido pela editora: A Farmácia de Platão, de Jacques Derrida. Ao adquiri-lo, ele o colocou em um lugar acessível, para que pudesse vê-lo todo dia. Certo dia, seu melhor amigo, que também estava buscando o exemplar, entrou na loja e o avistou. Comprou imediatamente. “Tenho que admitir, fiquei triste. Queria tê-lo na loja. Tem uns 10 livros que eu gostaria de ter aqui, na Feira, e não tenho. Eu sofro por causa disso. De certa maneira, dá uma dó de vender esse tipo de livro. Como foi o caso que contei”.

Vendo tantas pessoas na Feira do Livro, transitando por ali, sejam por curiosidade ou buscando um livro, não é difícil imaginar se, daqui a alguns anos, esse hábito se manterá presente na vida das pessoas como está hoje. “Atualmente, a instabilidade política e econômica atingiu a livraria. Mas a Feira se mantêm, há vários anos. Se vende bem e muito. O que se pode concluir é que muitos que frequentam a feira não têm o hábito de ir a livrarias no centro de Porto Alegre”.

Tendo em vista que a sociedade está passando por transformações significativas devido à internet e a facilidade que essa tecnologia fornece para a população, ele acrescenta: “A geração de agora ainda consome o impresso, em menor quantidade, mas consome. Mas e a geração que está crescendo com esse hábito do download, do Kindle, entre outras? A Feira do Livro, além de dar acesso a leitura para todos, é uma das táticas para evitar que se perca o impresso. Mas eu não sei como será daqui a 30 anos, por exemplo. Espero estar enganado. Enquanto eu estiver nesse ramo, apesar da minha compreensão sobre isso, vou agir como se não acontecesse”, concluiu.

No final do bate-papo, que durou quase uma tarde toda, sentados atrás da banca, Zé me contou mais uma história que aconteceu recentemente. Ele foi almoçar em um lugar no Centro, estava com apenas um caderno e uma caneta. E começou a escrever um poema sobre o “amor”:

“O amor que tenho por ti
É bem maior que a soma
Dos amores da tua vida.
Ah, se tu soubesses
Como um homem ama
Como é difícil para o homem amar
Como é difícil para o homem amar de novo
Ah, se tu soubesses
Como ama um homem como eu…”

Ele terminou o almoço e foi embora, esquecendo o caderno. Voltou meia hora depois. O caderno e caneta ainda estavam lá. Porém, no poema, tinha algo escrito: “Ah, se eu soubesse antes o amor que tinhas por mim”.

Com tanto movimento na Feira – e porque não na vida – deixamos de dar atenção para as pessoas ao nosso redor, principalmente as que nos atendem. Se você gosta de andar entre a realidade e a fantasia, vá até a Feira e converse com o Zé. Melhor. Converse com os livreiros quando for a alguma banca do evento. Você vai ouvir histórias tão bonitas quanto as que estão nos livros.

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