Um olhar sobre Anomalisa, de Charlie Kaufman, e as anomalias de todos nós

Anomalia é a incursão de Kaufman no mundo das animações (Crédito: Paramount Animation)
Anomalia é a incursão de Kaufman no mundo das animações (Crédito: Paramount Animation)

É realmente uma cabeça complexa essa do roteirista e cineasta Charlie Kaufman. Escrevo roteirista antes de cineasta, porque ele é um mestre do que podemos chamar de jogo cênico das ideias concebidas pelas palavras. Sabemos que um filme não se faz sozinho: são necessários diretores, fotógrafos, assistentes de produção, designers de som, pós-produção, enfim, uma penca de gente para tocar. Mas os filmes de Kaufman, pelo menos a maioria deles, possuem uma marca que perpassam todas essas funções. Não é exatamente o toque do fantástico, mas o do estranhamento nos acontecimentos (Quero ser John Malkovich e Natureza quase humana, por exemplo), a crise perene entre os personagens (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e Sinédoque, Nova York), enfim, a busca pela identidade desaparecida (em Adaptação, o jogo múltiplo dos gêmeos já indicava isso).

Anomalisa é seu segundo trabalho na direção, agora acompanhado por Duke Johnson, e é uma animação realizada em stop motion, primeira experiência de Kaufman nesse formato. Johnson já é conhecido nesse campo, sendo responsável por uma série para TV chamada Mary Shelley’s Frankenhole, e por dois episódios da série Community, que foram realizados com essa técnica. Dois fatos interessantes que ajudam a entender Anomalisa: O primeiro deles é que se trata da adaptação de uma peça criada em 2005 para um projeto chamado Theater of the New Ear, em que a ideia era apresentar peças apenas faladas, a atuação pela voz. Então, Kaufman participou, mas não assinou com o nome original, e sim com pseudônimo Francis Fregoli. Guarde esse sobrenome porque ele joga uma luz para entendermos o conceito do filme. O segundo fato interessante é que a animação se bancou sozinha, pelo Kickstarter, e isto quer dizer que os diretores tiveram controle total sobre a obra. Talvez isso explique o caráter adulto da animação, acredito que realmente um marco nesse formato principalmente por uma cena muito sensível de sexo – ironicamente mais humana que a maioria dos filmes com atores reais.

Vamos àquela parte do texto em que tentamos dar a sinopse do filme sem entregar muito: O ano é 2005 (ano do texto original da peça, aliás) e acompanhamos a viagem do palestrante motivacional e escritor especialista em atendimento ao público Michael Stone. Ele está em Cincinatti para uma palestra sobre o tema. Hospedando-se em um hotel, logo percebemos que Stone se encontra em um estado de crise, perdido, ansioso e sem saber muito bem o que fazer da vida. Até aí nada de tão diferente da maioria dos personagens homens criados por Kaufman. Nesse meio tempo, ele acaba conhecendo uma mulher também hospedada no hotel, chamada Lisa e, aos seus olhos, parece que há algo único sobre ela.

Cena de sexo entre os personagens é ponto alto do filme (Crédito: Paramount Animation)
Cena de sexo entre os personagens é ponto alto do filme (Crédito: Paramount Animation)

Diferentemente de outros filmes assinados por Kaufman, Anomalisa não tem uma trama complexa e tão “cerebral”, apesar de grande parte dos seus filmes acabarem tendo consequências emocionais porque acertam direto em nosso íntimo. O que quero dizer é que não há perseguições pelo consciente ou por lembranças como em Quero ser John Malkovich e Brilho Eterno e não há idas e vindas à narrativa, como em Adaptação, e também não é megalomaníaco como Sinédoque. Trata-se de um filme brilhantemente pensado na sua concepção e conceito e o fato de ser um stop motion facilita a compreensão. Se você continuar a ler, no próximo parágrafo já entenderá o porquê (mas ok, há spoilers).

Como o próprio título já nos indica, Lisa é a anomalia (Anomalia + lisa = Anomalisa) naquele momento da vida de Michael, o que fica bem evidente quando percebemos que todos os outros personagens têm a mesma voz (dublados pelo ator Tom Noonan) e o mesmo rosto (daí a escolha pelo stop motion também começa a fazer mais sentido). Tudo bem, você pode pensar que é uma metáfora um pouco óbvia: já que a vida do nosso protagonista está ruim, sente-se entediado no casamento, com as escolhas de sua vida, e com o tempo em que vive (em certa cena é posto em questão o mal-estar da época, no caso o segundo governo de George Bush), então, todo mundo aos seus olhos é semelhante, sem graça, entediante, justificando a opção pela caracterização igual de todos os outros personagens.

Pode até ser, mas é só quando surge alguém diferente (Lisa) é que começamos a perceber outras camadas no filme. Você se lembra do sobrenome Fregoli que citei anteriormente? Então, há um transtorno chamado Síndrome de Fregoli, que se caracteriza como uma condição na qual a pessoa acredita que um ou mais pessoas modificam sua aparência e passam a ocupar outros postos. É claramente uma ideia de perseguição, uma doença que se encontra em pessoas que possuem um transtorno delirante persistente, principalmente esquizofrenia. O filme não confirma e não deixa claro isso, mas repare que na cena inicial, ainda no avião, Michael toma a última pílula de um remédio aparentemente controlado. Quando ele está em Cincinatti, então, não está com nenhum tipo de tratamento, tem um sonho em que é perseguido, enfim, seus sintomas vão progressivamente piorando até culminar em uma representativa cena final. Quando volta para casa, parece que se dá conta de que todos são iguais. “Quem são vocês?”, pergunta ele. Em uma das últimas cenas, Lisa aparece com a amiga com quem estava hospedada no hotel em um carro e a amiga tem um rosto diferente do que tem quando apareceu a primeira vez em uma cena com Michael. Isso também é um indício que só ele via o mundo assim.  Vale ressaltar ainda que a síndrome também recebeu esse nome em homenagem ao ator italiano Leopoldo Fregoli, capaz de em suas apresentações encenar desde um monólogo até uma ópera, sendo ele o único ator e cantor do espetáculo, dando origem ao transformismo no teatro, a possibilidade de um mesmo ator interpretar diversos personagens. Que é o que acontece também na produção desse filme, com todas as vozes sendo interpretadas por um ator só, menos a de Michael e a de Lisa.

O mundo em Anomalisa (Crédito: Paramount Animation)
O mundo em Anomalisa (Crédito: Paramount Animation)

Lisa, então, em um primeiro momento é vista como uma anomalia (no sentido bom, da esperança) naquele mundo estranho de Michael, mas ela também é apresentada como uma anomalia (no sentido mau) em seu mundo, visto que se sente extremamente deslocada, sofre de baixa autoestima. Mas talvez seja justamente devido a isso que Michael consegue identificá-la mesmo que de longe, só pela voz, é alguém diferente, alguém que pode dar mais uma chance ao mundo real – que ele está perdendo.  Alguém em que ele reconhece genuinamente diferente. Não é à toa que a música também é importante. Em uma bela cena, Lisa canta Girls Just wanna have fun, de Cindy Lauper, e leva às lágrimas o protagonista. Kaufman consegue nos entregar uma animação muito humana, original e com um conceito brilhante por trás, que evoca muitas interpretações. É o tipo de filme que deve ser visto mais de uma vez e discutido pelas pessoas.

Anomalisa é sobre as pequenas anomalias do cotidiano, de nos reconhecer outros e seguir em frente ou estancar no passado.

 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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