Obra de Albertina Bertha é reeditada após um século de sua publicação

veredas-banner-300x300px (1)Aos poucos elas vêm surgindo. E são muitas. Escritoras esquecidas no século XIX e início do XX vêm ombro a ombro ocupando o seu devido lugar na história da literatura. Isso tem acontecido, principalmente, por meio de pesquisas acadêmicas que recuperam suas obras, nomes e ainda colocam antigos títulos em circulação. Uma das autoras, por exemplo, é Albertina Bertha de Lafayette Stockler (1880-1953), que, um século após a primeira publicação de seu romance de estreia, Exaltação, terá o livro reeditado. A previsão de lançamento é para o mês de abril.

A façanha é resultado do trabalho da organizadora da obra e pesquisadora do Programa Nacional de Pesquisadores Residentes, da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), Anna Faedrich. Ela digitou 200 páginas do livro original, atualizando o texto às novas regras ortográficas. Sabe-se que atualmente existem programas de conversão, ferramentas que transcrevem o texto ditado. Mas, na época, ela fala que nem pensou em tal possibilidade. “Entrei na aventura, sem pressa, e foi uma boa experiência”, conta.

Mesmo assim, se algum interessado quiser pesquisar determinada escritora terá que “se enfurnar em uma biblioteca tendo o maior cuidado para que o livro não estrague”, adverte Faedrich, falando sobre a dificuldade em ter que lidar com documentos e títulos antigos. “O livro das escritoras do final do século XIX estão caindo aos pedaços [em função do desgaste do tempo]”. Por isso ela destaca a importância de se recuperar tais obras.

Erotismo e inconformidade diante da sociedade 

Albertina Bertha (Foto: arquivo Anna Faedrich)
Albertina Bertha (Foto: arquivo Anna Faedrich)

Mas, afinal, quais são os principais temas abordados em Exaltação? Por que ele teve grande repercussão crítica na época? Quais os motivos para o livro ser condenado pela Liga das Senhoras Católicas, despertando a ira e o desejo destas em ver o romance na fogueira, tudo para não influenciar as meninas de família? Conta Faedrich que a obra é bastante ousada pela protagonista, Ladice, reconhecer a hipocrisia da sociedade, além do teor erótico do enredo. A personagem se sente em desacordo com os preceitos do meio em que vive e quer ser livre, agir de maneira fiel às suas vontades. Porém, ressalva a pesquisadora, a transgressão da protagonista é relativa, pois em muitos momentos ela acaba cedendo à norma dominante.

 


“Tirando de um estojo um colar de pérolas, ele o arrebentou no seio de Ladice:

– Rolai sobre esses membros esguios, pérolas simbólicas: – Sois os anos, o tempo em que vivi em lamentos, em queixumes; sois as lágrimas petrificadas, os soluços, as tristezas, as inclinações funestas; sois as extravagâncias pensadas, idealizadas, a aspiração estéril, as ambições não realizadas, o estímulo desejado, a imoderação, a alternação dos prazeres, as intolerâncias, o grito incisivo de revolta contra Deus e a humanidade; sois os tumultos, as forças, os poderes, que me devastara, a juventude… rolai, pérolas, quebrai-vos à guisa de estações que se findam, que se destroem, à guisa do arvoredo que fenece, murcha e seca, para depois renascer, exuberante, dominador, imenso.

E as continhas espalhavam-se, corriam pelo corpo de Ladice, festejando a sua glorificação, o seu batismo de amor, a sua iniciação no mistério, o mais profundamente estonteante da existência.”

( Primeira cena de adultério, contato de ladice com o poeta amado)

Além disso, a obra literária de Albertina Bertha apresenta traços formais românticos, como o uso excessivo de adjetivos e de descrições. Também é herdeira do amor romântico, no sentido da idealização, contudo, superando-o, pois a obra apresenta teor erótico altamente ousado para época – a concretização do amor e a realização sexual. No plano formal, observa Faedrich, alguns traços modernos, como a introspecção. Albertina faz uso do monólogo interior, fluxo de consciência, utiliza a escrita epistolar e diarística como estratégia literária dentro do romance.

Para Faedrich, é uma vitória Albertina Bertha criar uma protagonista que prioriza os seus desejos, se entrega ao amor, numa época em que o casamento era arranjado pelas famílias. Enxerga como positivo o fato de ela escrever sobre um tabu, o adultério feminino. Mesmo assim, a pesquisadora destaca que a vitória é pequena pelo desfecho da obra, que é trágico. “Interessante observar que o final pode ser polissêmico, entendido como punição da mulher que tentou ir além dos limites sociais impostos em sua época”. O romance, que data de 1916, contou com seis edições. E foi praticamente esquecido depois da década de 1960.

Gradiva, buscando nomes do subterrâneo 

Exaltação será publicado graças ao edital de coedições da Fundação Biblioteca Nacional em parceria com a editora Gradiva, comandada por Ana Lisboa de Mello, orientadora de Faedrich entre a graduação e o doutorado. “Devo isso a ela”, ressalta a pesquisadora. “Foram 10 anos de orientação, incentivo, parceria e com quem mantenho ainda hoje constante interlocução e com quem partilho projetos e interesses acadêmicos”.

Ana Lisboa diz que a parceria com a FBN traduz o endosso do trabalho desenvolvido por Faedrich. A professora pretende propor outras edições com a FBN porque, em sua opinião, tanto para a Biblioteca como para a Gradiva, o objetivo é contribuir para visibilidade e difusão de obras que são relevantes para a cultura brasileira”.

O foco da Gradiva é tentar inserir no mercado livros raros brasileiros, aqueles traduzidos no Brasil com edição esgotada e os nunca traduzidos. O Duplo, estudo psicanalítico de Otto Rank que teve apenas uma edição no Brasil em 1939 (ganhou coedição com a editora Dublinense em 2013) é um exemplo, assim como a publicação do conjunto de ensaios sobre escritores do Rio Grande do Sul que publicaram no Almanaque de lembranças luso-brasileiro, que circulou de 1850 a 1932.

Ana é pós-doutora em Letras pela Université de la Sorbonne Nouvelle e pela Université Stendhal. Ela possui licenciatura em português e francês e respectivas literaturas (Ufrgs) e mestrado e doutorado em Letras pela Pucrs. Tem experiência na área de Letras, subáreas de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, com ênfase em poesia, narrativa, teorias e críticas do imaginário. Atualmente, é professora adjunta da Pucrs.

Afinal, o interesse de publicação de obras como Exaltação costuma partir exclusivamente da academia? Será que o mercado ainda é indiferente aos escritoras do século XIX? Ana acredita que, de modo geral, sim, mas o cenário vem mudando. Da mesma forma que o patrimônio arquitetônico do Brasil não era, no passado, foco de interesse – muitos prédios históricos foram destruídos por isso. “Hoje há uma grande preocupação em resgatar obras esquecidas, sobretudo de escritoras, que tiveram muita dificuldade de se expressar, muitas delas tendo que usar pseudônimos para não serem identificadas. É trazer à luz uma história subterrânea da cultura e formação do pensamento brasileiros”.

A intenção é de que, além de Exaltação circular entre o público universitário, pesquisadores de Letras e Ciências Humanas, deva interessar ao público leitor de modo geral, que terá uma visão do Rio de Janeiro nos anos 1910 e da situação da mulher naquele momento histórico. As escolas também poderão ter o livro em suas escolas do ensino médio e fazer parte do rol de leituras de obras que compõem a história da literatura brasileira. “Os alunos não leem romances de escritores do século XIX, como Alencar e Macedo? Por que os professores não poderiam incluir o romance Exaltação (1916), de Albertina Bertha, nessa lista de leituras?”

A afirmação através do repertório erudito 

Manuscritos de Albertina: a escritora mostra erudição para se valorizar intelectualmente
Manuscritos de Albertina: a escritora mostra erudição para se valorizar intelectualmente

Filha do renomado conselheiro e político Lafayette Rodrigues Pereira e de Francisca de Freitas Coutinho Lafayette, a escritora Albertina Bertha, por ser de família abastada, recebeu uma educação privilegiada, contando em sua casa com uma preceptora alemã. “Na época, as meninas não iam para a escola e não recebiam a mesma educação dos rapazes. Enquanto isso, nossos escritores viajavam todos para Coimbra e França”, destaca Fedrich.

A Albertina publicava quase diariamente na imprensa. Ela se destacou nas conferências que proferia, a maioria no Salão do Jornal do Comércio. Dos 13 conferencistas, ela era a única mulher. Os críticos a acusavam de adotar um jeito muito erudito de ser. Ou seja, não tem acusação. Os jornalistas e intelectuais precisavam era atacá-la. (Anna Faedrich)

Além de Exaltação, a autora publicou outros quatro livros. Dois romances (Voleta e E ela brincou com a vida), e dois livros de ensaios (Estudos I e Estudos II). Neles, da mesma forma que em Exaltação, os traços feministas da autora estão na luta pelo direito à educação da mulher. Albertina mostra – numa época em que elas ainda não eram autorizadas a estudar – a capacidade intelectual da mulher, através de sua extraordinária erudição. Ela escrevia sobre Nietzsche e outros filósofos, lia no original alemão, francês e inglês, lia crítica literária, fazia referência aos clássicos e ainda mantinha um repertório de leitura invejável.

Durante sua investigação, a pesquisadora manteve contato com a neta e a bisneta da escritora, Liddi Stockler e Beth Stockler, respectivamente. “Em 2010, em nosso primeiro encontro, pude ver a penteadeira de Albertina, as xícaras de café, as pulseiras e os manuscritos. Ela era muito vaidosa”.

Anna Faedrich (Foto: divulgação)
Anna Faedrich (Foto: divulgação)

Após tomar conhecimento de tamanho engajamento na recuperação da obra de Albertina, o Veredas pergunta à Faedrich qual é a sua perspectiva em relação à recepção do livro. O blog também quer saber se a leitura de escritoras do século XIX ainda se restringe à academia e se a pesquisadora acredita que Exaltação chegue às mãos do leitor comum. Para Faedrich, é compreensível que o leitor do século XXI possa estranhar o estilo da obra. Assim como estranharia as roupas e a linguagem da época. “É normal. A literatura contemporânea tem um ritmo diferente, é mais dinâmica e concisa. Eu sou leitora dos contemporâneos e gosto muito”, enfatiza.

Por outro lado, o romance de Albertina Bertha é recheado de adjetivações e referências exaustivas aos clássicos. Se a obra for lida com o olhar do século XXI, pode ser entediante, alerta Faedrich, que alimenta a expectativa de que a curiosidade, contextualizada, desperte o interesse dos leitores. “Na medida em que entendemos a necessidade de uma escritora em usar referências ao seu erudito repertório de leitura para se afirmar enquanto inteligência numa época em que a mulher era extremamente desvalorizada intelectualmente, tudo passa a ficar mais interessante”. Isso, claro, sem contar o valor histórico do romance. Faedrich defende que ele deve constar no ensino de literatura brasileira. “Contextualizar é fundamental”.

O surgimento de ramificações 

A pesquisa de Faedrich, que teve início em setembro de 2014, se encerra no final deste mês, em março. Como resultado destes anos de intensa investigação do pós-doutorado, resultará um manuscrito teórico-crítico de 300 páginas. Além de Albertina Bertha, a pesquisadora analisa outras duas escritoras – Narcisa Amália (1852-1924) e Júlia Lopes (1862-1934) – suas obras e participação na imprensa periódica (Escritoras silenciadas pela história: Narcisa Amália, Júlia Lopes de Almeida e Albertina Bertha e as intempéries da produção intelectual feminina). “O espaço nobre de qualquer jornal era atípico, para não dizer proibido às mulheres, porque a socialização das que eram letradas as conduzia, desde cedo, a outros papeis sociais que não o de escritora”.

A intenção desse aprofundamento é mostrar a importante atuação das escritoras no cenário intelectual brasileiro no entresséculos e as intempéries da produção intelectual feminina. Júlia Lopes colaborou por muitos anos em um dos principais jornais do Brasil, o republicano e abolicionista O Paiz (RJ). Suas crônicas semanais eram publicadas na primeira página do jornal, à esquerda, “espaço privilegiado e de grande visibilidade, que atesta a posição de prestígio e de respeito da autora em ambiente intelectual e literário eminentemente masculino”, ressalta Faedrich.

Por sua vez, Narcisa iniciou a carreira traduzindo contos e ensaios de autores franceses, como História de minha vida, de George Sand, e Romance de uma mulher que amou, de Arsène Houssave. A reunião desses trabalhos foi seu primeiro livro publicado, o qual expandiu seu sucesso de tradutora. Nebulosas (1872) foi seu primeiro livro de poesia. Nele, constam poemas ecléticos: líricos, de teor intimista; laudatórios comemorativos, dirigidos à natureza; e poemas de cunho social. “A produção poética de Narcisa Amália não fica aquém da de Gonçalves Dias, no que diz respeito à exaltação da natureza, nem da obra de Castro Alves, uma vez que seus poemas de cunho social e político são igualmente intensos e críticos”, diz a pesquisadora. Infelizmente, o leitor que hoje se interessar pela obra de Narcisa encontrará exemplares deteriorados em pouquíssimas bibliotecas.

Levando em conta que as reedições têm o objetivo de reavivar a literatura escrita por mulheres esquecidas pela história literária, Faedrich não para por aqui. Assim como o lançamento de Exaltação é uma ramificação de uma pesquisa maior, de um projeto que estava na gaveta há seis anos, outro fruto surgirá deste projeto: a reedição de Nebulosas, de Narcisa Amália, que já está sendo feita.

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