AfroME questiona: tá bom pra quem?

Espetáculo começa na rua, em frente ao Boteco (Foto: André Reali Olmos/Reprodução)
Espetáculo começa na rua, em frente ao Boteco (Foto: André Reali Olmos/Reprodução)

Por Leo Felipe*

O cenário é o real: um tradicional ponto do samba localizado na parte mais antiga do centro da cidade, o Boteco do Paulista, com suas mesas na calçada onde se consome cerveja gelada e pastel. O real, contudo, é cruzado pelo simbólico: o Boteco fica numa encruzilhada, espaço privilegiado das religiões afro-brasileiras cuja cosmologia, além de transcendência, traz presente o dado político. É no meio do asfalto, berço brutal que recebe os corpos de jovens negros assassinados diariamente no país, que o espetáculo começa silencioso. O tema demanda gravidade. AfroME trata da história e da condição de negras e negros, especialmente os jovens, no Brasil de hoje. Trata da luta para que este não seja o Brasil de sempre, marcado pelo estigma nefasto da escravidão e do racismo que a justificou e que insidiosamente ainda a perpetua. É arte política para tempos que a exigem. Não se trata de panfleto, no entanto, já que o próprio meio que veicula a mensagem (e é ela própria) tem suas condições de transmissão e recepção colocadas em xeque.

Estamos diante de um tipo de manifestação cultural que está além do teatro convencional. O foco não recai em apenas um ponto; ele é múltiplo, o palco explodido na própria urbe. A música, dádiva que a diáspora nos ofertou, fornece o ritmo (o diretor Thiago Pirajira está em cena cantando e tocando atabaque). Varais com prendedores recebem imagens e palavras que falam de história e memória. O elenco por vezes lê os textos ao invés de encená-los à maneira ortodoxa, decorada. Nada é decorativo em AfroME. O Grupo Pretagô obteve êxito em realizar um espetáculo fragmentado e multimídia com recursos bastante simples, prescindindo, no entanto, do uso ostensivo da tecnologia, como ocorre muitas vezes em propostas com pretensões semelhantes. AfroME é um pouco sarau, um pouco manifesto, um pouco cabaré, um pouco terapia de grupo. A dramaturgia se desdobra em variadas camadas de discurso que são direcionadas a diferentes públicos. A juventude branca descolada e politizada é o principal alvo. Ela testemunha o desmonte de seus privilégios e estratégias de apropriação cultural entre o constrangimento e a culpa. E como suportar o olhar das atrizes Kyky Rodrigues e Silvana Rodrigues que me encaram cantando com firmeza:

Tá bom

Pra quem?

A segunda temporada da peça continuou no Boteco do paulista, zona central de Porto Alegre (Foto: André Olmos/reprodução)
A segunda temporada da peça continuou no Boteco do paulista, zona central de Porto Alegre (Foto: André Olmos/reprodução)

Pensado a partir da perspectiva do feminismo negro, o espetáculo trata de identidade, (in)visibilidade, branqueamento, empoderamento (relutei em usar esta palavra, mas ela me venceu). AfroME estabelece um jogo sutil no qual os papéis sociais que são usualmente impostos aos negros ora são questionados ora reforçados e muitas vezes embaralhados, provocando um ruído que se estende também para os próprios protocolos do teatro (só não provei os pastéis servidos pelo elenco porque não tinha fome). Somos levados a diferentes estados de espírito que oscilam conforme o que nos é apresentado em relação à história de lutas do povo negro, história marcada por violência e resistência, esperança e invenção. Se por um momento caímos no samba esquecendo a dor e a culpa, signos de violência são logo reconduzidos à cena para que nos lembremos de como é viver num estado policial onde o cidadão de pele negra é considerado o inimigo. Como destaque, a própria história urbana de Porto Alegre e seus bairros – e o processo de exclusão e remoção que as populações negras vêm sofrendo ao logo dos tempos na cidade.

AfroME foi concebido como estágio de atuação da (poderosa!) atriz e cantora Camila Falcão para a conclusão do curso de Teatro e tem dramaturgia assinada pelos integrantes do Grupo Pretagô, assim como o espetáculo anterior Qual a Diferença entre o Charme e o Funk? (fiquei curioso para ver como o grupo se comporta no palco[1]). Indicada em cinco categorias no Açorianos de Teatro 2015, Charme e Funk ganhou o prêmio de melhor trilha sonora. Comemorei o prêmio com certa melancolia ao ver o músico branco João Pedro Cé discursar à frente dos colegas negros, chamados por ele ao palco do Teatro Renascença na ocasião da entrega. A complexidade da questão racial no Brasil aparece em detalhes perversos. Os integrantes do Pretagô vêm do Departamento de Artes Dramáticas do Instituto de Artes da UFRGS, e ambos os trabalhos foram orientados pela professora Dra. Celina Alcântara. No DAD, Camila e seus colegas puderam encontrar em Celina – mulher negra – uma orientadora que não os aculturasse (acredito que este é um dado importante para pensarmos os desafios da política de cotas na universidade).

Findo o espetáculo com a lua de São Jorge cheia, branca e (quase) inteira banhando a noite, o elenco quebrou o protocolo final que os confinaria em camarins e foi para a calçada beber e conversar com o público. A produção prepara choripans e o samba segue no Boteco do Paulista. Desde que foram iniciadas as obras na orla do Guaíba e colocados os infelizes tapumes que separam a cidade do rio e da visão do pôr-do-sol do qual seus habitantes tanto se ufanam, o movimento anda fraco, melhor aproveitar. O lucro dos pastéis foi revertido para a produção que também passou o chapéu no fim do espetáculo, coletando contribuições.  

AfroMe é a segunda peça do grupo Pretagô (Foto: André Olmos/reprodução)
AfroMe é a segunda peça do grupo Pretagô (Foto: André Olmos/reprodução)

Tudo é válido, nada é permitido.

O aforismo elaborado por Camila e dito por ela logo no início de AfroME me atormenta como uma nova verdade desafiando percepções ingênuas sobre o que é a realidade ou a liberdade. Quais estratégias de sobrevivência precisam ser usadas em um ambiente onde o que é válido ou permitido irá depender (da cor, do gênero, da origem) de quem faz tais questionamentos e demandas? Diante da validade e da permissividade seletiva, quando mentiras são repetidas como verdades, notícias republicadas como piadas e parece não haver mais distinção entre a ficção e a realidade, é necessário denunciar a falácia do real, reconfigurando-o sem pedir permissão. Todas as forças precisam ser mobilizadas em tal empreendimento. Não me surpreende que durante a última temporada de AfroME o céu tenha desabado sobre Porto Alegre na forma de um tornado que devastou a parte central da cidade. Dizem que apesar dos fortes ventos que puseram abaixo as árvores no entorno do Boteco do Paulista nenhuma garrafa caiu das mesas do bar naquela noite.

[1] O termo “comporta” é  usado aqui de modo intencionalmente irônico. Qual a Diferença entre o Charme e o Funk? será apresentado no dia 16 de maio, em Porto Alegre, no 11º Palco Giratório Sesc.

*Leo Felipe é escritor e curador; mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pesquisa que investiga a contracultura, o punk e outros fenômenos localizados entre as artes, a política e a cultura pop. É diretor e curador da Galeria de Arte da Fundação Ecarta. Autor dos livros AUTO (Ideias a Granel, 2004); O Vampiro (Ideias a Granel, 2006) e A Fantástica Fábrica (Pubblicato, 2014). Desde a década de 1990 tem se dedicado a diversos projetos na cidade de Porto Alegre, compreendendo artes visuais, música, literatura, jornalismo e radiodifusão.

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