Fantaspoa 2016: “Kryptonita” traz perspectiva periférica para histórias de super-heróis

Os super-heróis do argentino "Kryptonita" (Foto: divulgação)
Os super-heróis do argentino “Kryptonita” (Foto: divulgação)

 

Por Filipe Rossau

E se o bebê Kal-El, que ganharia na Terra o nome de Clark Kent, não tivesse caído em Smallville, no Kansas, mas sim na periferia de Buenos Aires? Como seria a capital argentina no imaginário popular se seres com habilidades sobre-humanas vivessem ali? Foi nisso que o escritor Leonardo Oyola pensou quando escreveu Kryptonita, eleito melhor romance de 2011 pela Associação de Críticos e Escritores da Argentina. O livro deu base para o filme homônimo de Nicanor Loreti.

Oito versões do roteiro foram escritas até chegar ao texto original do terceiro filme solo do argentino, que fez sua estreia em longas-metragens com La H (2011). Em grande parte, esse trabalho de escrever e reescrever foi realizado para fugir das dificuldades de produzir super-heróis com um orçamento de US$ 400 mil. O desafio de Loreti, que escreveu o texto do filme com Nicolás Britos, Camilo De Cabo, Paula Manzone e o próprio Leonardo Oyola, consistiu em levar para as telas a história da gangue Gasolina Super, que invade um hospital em meio ao plantão do Dr. Gonzalez (Diego Velázquez).

O motivo é que o líder do grupo, o quase invencível Pinino (Juan Palomino), ou Nafta Super (o super-homem argentino, com direito a ‘S’ no peito e cabelos negros com a franja caída para o lado direito) está muito ferido após uma luta em que foi atingido por um material verde e brilhante que o enfraquece mais que qualquer coisa. Quem carrega Pinino é Lady Di (Lautaro Delgado), uma travesti que usa short azul e uma blusa vermelha, além de uma coroa de princesa, e Faisán (Nicolás Vázquez), usando uma camiseta verde do Deportivo Laferrere, que disputa a 4ª divisão do campeonato argentino. Mais do que salvar Pinino, a gangue precisa se livrar da polícia, que os persegue e os cerca no hospital.

As semelhanças de cada um dos personagens com heróis da Liga da Justiça é de simples reconhecimento até para os espectadores menos conhecedores do universo das histórias em quadrinhos. Ainda assim, Loreti se diverte com referências escrachadas, como o caso de Corona, um policial que abusa da maquiagem, de um humor psicótico, roupas coloridas e truques inesperados; ou Federico, motoqueiro de roupas negras que engrossa a voz na hora de intimar os inimigos.

Além dos personagens citados antes, temos ainda o calado telepata Juan Raro (Carca), que é pouco exigido e não compromete; o veloz Ráfaga (Diego Cremonesi), que irrompe na tela usando casaco com capuz vermelho e, como uma espécie de líder interino do grupo, ganha espaço na tela e se apresenta bem; e Cuñataí Güirá, numa atuação bastante apagada de Sofia Palomino. Não há espaço para todos no roteiro, ficando claro que alguns só estão ali para apresentar mais referências a nomes famosos das HQs. E talvez, nesse esforço quase exagerado de Loreti em criar ligação com os espectadores, é que esteja a única grande falha de Kryptonita.

Entretanto, se individualmente, alguns personagens passam batidos e se mostram pouco necessários em tela, por outro, no conjunto, o grupo se sai bem, já que os diálogos saem ao natural, o que passa a impressão de serem, de fato, amigos de longa data. Outro ponto positivo é Loreti demonstrar que reconhece em seu Kryptonita um projeto de baixo orçamento ao evitar a tentativa de efeitos especiais para focar no subjetivo, mesmo quando a ideia é mostrar os poderes de seus personagens. Um exemplo é Ráfaga sair de cena seguido por um efeito sonoro que nos diz que ele se moveu em alta velocidade.

O grande mérito de Kryptonita, no entanto, é não apenas entregar uma versão latina de um dos produtos de maior sucesso da DC Comics. O longa argentino é uma ode à visão descentralizada do mundo, virado de cabeça pra baixo e enxergado por nós, do hemisfério sul. Não é somente a origem dos personagens que muda, é a forma com que eles enxergam a vida ao redor que nos é trazida pela história. A explicação vem em uma das últimas falas do filme: “Somos deuses, somos homens, somos bons, somos maus… Somos reais”.

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