Então me diz, D2, qual é?

Fotos: Erick Peres

“Ih, eu tenho algo a dizer
Explicar pra você
Mas não garanto porém que engraçado eu serei dessa vez”

Precisamos falar do rap no Brasil. Cada vez mais popular no país, o gênero está sofrendo o fenômeno mais comum do sucesso: o embranquecimento. Ao chegar no nível “aceitável” para a sociedade e, principalmente, virar um bom produto de venda, o público que consome rap se transformou. Ele deixou de ser majoritariamente negro e marginalizado e passou a abranger mais cores e classes sociais. O rap cresceu, apareceu e construiu uma identidade. Entretanto, a representatividade se perdeu.

Antes, havia um perfil definido tanto de quem passava a mensagem quanto de quem a recebia, o negro(a) pobre. Vide os maiores nomes dos anos 90 e 2000: Racionais MC’s, MV Bill e Sabotage. A proposta do rap como compromisso sintetizava a realidade dura e hostil vivida pelos negros. Logo, a representatividade criou um laço de união e deixou o rap forte. Com o tempo, esses nomes se tornaram bastiões de uma cultura periférica e passaram a representar uma classe que mal aparecia na grande mídia (principalmente  Sabotage e MV Bill). Assim se quebrou o medo do negro, do bandido, do que não saberia se comportar e/ou trocar conhecimentos. Essa popularização deixou o rap mais aberto e assim foi consumido por quem vivia nos grandes centros, as classes sociais mais ricas.

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(dir-esq): Maurício Negão, Marcelo D2, Fernandinho BeatBox, Renato Venom e Stephan Peixoto

Os nomes fortes no passado se tornaram referência e influência para muita gente. E hoje, o rap abraça ritmos e canta sobre diversos pontos de vista. O rap é um dos representantes da cultura negra, não só aqui, mas no mundo. A cultura negra vive seu momento de destaque, seja na mídia, seja no cotidiano. Atualmente, o negro conquistou um status na sociedade por sua condição, o famigerado empoderamento. Após tanto tempo marginalizado, com vergonha de se mostrar natural, se sentindo inferior, o negro está ganhando espaço e apoio para se afirmar, para se permitir ser negro.  Os principais nomes do rap nacional possuem o mesmo princípio em suas letras: exaltação da cultura negra e problematização da branquitude. Apesar de que são apresentadas de formas diferentes. De maneira tradicional, com Emicida. Ao encontro da MPB, com Criolo. E por meio do samba, com Marcelo D2.

“O samba é o som, Brasil é o lugar
Incomodado que se mude, eu tô aqui pra incomodar”

Na noite da última quinta-feira (2), Marcelo Maldonado Peixoto se apresentou no palco do Opinião. O show do DVD Nada Pode Me Parar (Ao Vivo) chegava a Porto Alegre fazendo uma compilação das músicas famosas de Marcelo D2 com seu mais recente álbum. A previsão de início era às 23h, mas houve atraso de meia hora. O público parecia ter ciência disso, visto que entrou e lotou o Opinião por volta do horário registrado no ingresso. No tempo de espera, a casa tocou músicas, nacionais e internacionais, relacionadas com o tema da ocasião. A cada novo clipe posto nos três telões, uma resposta mais positiva que a outra. Do lado americano “Hotline Bling”, do Drake, “Outta Control”, do 50 Cent e “The Next Episode”, parceria de Snoop Dogg com Dr.Dre. Do lado brasileiro “Vida Loka I”, do DVD Criolo e Emicida Ao Vivo, “Estilo Vagabundo”, do MV Bill e Kamila CDD e “Diário De Um Detento”, dos Racionais MC’s. Além desses clássicos rap brasileiros, a nova geração do rap também foi para o telão. “Dama e Vagabundo”, do Oriente foi um exemplo. Uma música que só reforça a já ultrapassada expressão que “mulher gosta de um bad boy”. Mesmo com influências marcadas por questionar o racismo e o preconceito, ainda se consome muito músicas com estereótipos. Por isso a necessidade da problematização.

Eram 23h38min quando Marcelo D2 subia no palco, mirado por todos os celulares. O cantor foi ovacionado. O terceiro single de seu álbum Nada Pode Me Parar foi feito e intitulado para começar uma apresentação, “Está Chegando A Hora (Abre Alas)”. Mesmo com um setlist previsível, o início do show foi impactante. Na sequência, D2 chamou seu filho Stephan Peixoto para cantar “Eu Já Sabia”, outro hit do carioca. Aos 25 anos, Stephan, também conhecido como Sain, já tem seu próprio grupo de rap, o Start. E como bom Peixoto que é, segue as rimas de seu pai. Minha família respira rap antes mesmo de você nascer! diz a letra que conta a relação dos Peixotos com a música. Versando as referências musicais da família, e diferente da versão original, Sain é o responsável por cantar o famoso refrão de “C.R.E.A.M”, do grupo nova-iorquino Wu-Tang: Cash Rules Everything Around Me (dinheiro manda em tudo ao meu redor).

“Amar como ama um black, brother
Falar como fala um black, brother
Andar como anda um black, brother
Usar sempre o comprimento black, brother”

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Muito comum em shows de rap, o punho cerrado é um símbolo de unidade, de força, de resistência

Assim que Sain começou a cantar, o público (masculino e feminino) parecia estar mais empolgado. O astro da noite era D2, mas era visível o que estava acontecendo no Opinião. A grande maioria das pessoas que foram eram jovens de, no máximo, 25 anos. Somado a isso, o embranquecimento. Eu, negro, estava perto do palco, na pista inferior, e pude contar – em uma mão – quantos outros negros estavam naquela área. Está na moda ser, falar e agir como negro, contanto que brancos façam isso. O show de D2 repetia uma fórmula constante, era um reflexo da trajetória do rap nacional. Sua música é negra e boa parte de seu público é branco.

Marcelo D2 surgiu de maneira underground com o Planet Hemp, e chamou a atenção da grande mídia. Com o fim da banda, sua carreira solo decolou e muitas vezes foi chamado de cantor pop, tamanho o sucesso. Mas D2 é puramente rap, e rap não precisa ser underground para ser bom. Com essa popularidade, ele expandiu seu número de fãs, se tornando a porta de entrada para muitos ao gênero. Stephan soube aproveitar a herança e, com o Start, já possui um considerável número de fãs.

O show seguiu nos moldes do DVD e emendou uma série de hits. “Rio (Puro Suco)”, “Eu Tenho O Poder”, “Você Diz Que o Amor Não Dói”, “Vai Vendo”, “Fella” e “1967”. Muita animação e descontração entre a banda, Stephan, Marcelo e seu fiel escudeiro, Fernandinho BeatBox. O coro e vibração do local só aumentava. Um dos mais recentes sucessos de D2 foi “Pode Acreditar”, na qual Seu Jorge participa apenas colocando seu timbre característico num básico laia laia, emplacou. Como Seu Jorge não estava presente, D2 pediu ajuda para o Opinião. Foi um instante memorável, daqueles de cantar com os olhos fechados e ter a certeza de que nada iria lhe acontecer.

Teve mais: “Ela Disse”, “Desabafo”, “A Maldição do Samba”, “Profissão MC”, “A Procura da Batida Perfeita” e “Pilotando O Ônibus da Excursão”. Ninguém parecia estar cansado com a apresentação, a não ser a estrela da noite. Esse foi o momento para Marcelo se sentar e passar o microfone para Fernandinho BeatBox. Fernandinho passou belos minutos improvisando diversas batidas, de rap, eletrônica e até mesmo rock. Para contribuir na performance, o guitarrista Maurício Negão foi convocado para acompanhá-lo. Com isso, D2 se animou novamente e se juntou aos dois.

Como o próprio cantor se refere aos seus sambistas favoritos como “os verdadeiros arquitetos da música brasileira”, houve um momento de homenagens. Há duas semanas, faleceu o vocalista Mário Sérgio, do Grupo Fundo de Quintal. D2 disse que o Brasil perdeu uma das vozes mais importantes da música brasileira e que Mário se juntava a uma lista seleta, como Bezerra da Silva e Jovelina Pérola Negra. “A Batucada Dos Nossos Tantãs” foi cantada como tributo. Passadas mais de uma hora e meia, o show estava se aproximando do final. Estava na hora de cantar sobre o assunto que deixou Marcelo D2 famoso.

 

“E se a maconha for da boa que se foda a ideologia” 

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D2 acendeu um cigarro enquanto o publico cantava: “demorô formar o bonde dos maconheiros”

O álbum O Usuário foi um dos trabalhos que mais se destacaram na trajetória de D2, na época integrante do Planet Hemp. Acusados de fazer apologia à maconha, o grupo virou símbolo do movimento pela legalização da droga. Com um novo arranjo, mais sutil no início até que explode no refrão, “Mantenha O Respeito” foi cantado por todo o Opinião. Nesse momento, D2 apontou para uma das placas da casa que estampa a formação de 1995 do Planet Hemp, e disse que tem muito carinho pelo local.

Assim que entrou na carreia solo, em 2003, a música “Qual É?” foi o carro-chefe de Marcelo D2. Diferentemente dos temas abordados pelo Planet Hemp, dessa vez ele estava imergindo na seara do orgulho negro. A letra do rap é composta por traços da vida de Marcelo e suas influências ao longo da vida. Começa com o mesmo trecho de “Voz Ativa”, dos Racionais MC’s, perpassa pelos “Mandamentos Black”, de Gerson King Combo, cita “Da Lama ao Caos”, de Chico Science e lembra que Humildade e Coragem São Nossas Armas Para Lutar, CD de Thaíde e DJ Hum. Uma aula de empoderamento negro dentro de uma só canção.

Entretanto, assim como defender a maconha em suas músicas pode ser questionável, visto que a droga faz parte de um ciclo da violência no país, de nada adianta ser orgulhar em ser negro e falar mal do sexo feminino. Em um dos momentos do show, Marcelo D2 parou para tomar água e disse: “um copo d’água e um boquete não se nega, né?”. Uma frase ofensiva às mulheres, as colocando no papel de serem obrigadas a satisfazer os desejos de um homem. Mesmo assim, muitas pessoas continuaram a ovacionar o cantor depois da frase ser dita. Para um cara consagrado com uma música que exige respeito, D2 não parece saber reproduzir a mesma consideração.

Casos como esse evidenciam o machismo na música. O próprio rap entra frenquentemente em debates sobre o tema. Emicida se envolveu em uma polêmica com a música “Trepadeira”, na qual fala mal de uma mulher que tinha vida sexual ativa. Criolo – que proferiu o verso Se a maconha for da boa que se foda a ideologia, em “Covoque Seu Buda” – admitiu o erro de suas composições. Em “Subirusdoistiozin”, ele cantava As vadia quer, mas nunca vão subir e mudou para As vazia quer, mas nunca vão subir. Além dessa, em “Vasilhame” o rapper trocou um verso transfóbico. Os traveco tão aí, oh! Alguém vai se iludir por O universo tá aí, oh! Alguém vai se iludir.

Muita coisa mudou no rap, entre mudanças boas e ruins, o gênero precisa ser discutido veementemente. Ideologias precisam ser acompanhadas de diálogo, de atenção ao que se diz e respeito ao que se ouve. Assim como outras bandeira levantadas por minorias e movimentos sociais, é necessário problematizar o contexto em que vivemos, como interpretamos o que ouvimos. Como reproduzimos isso. Então, ainda precisamos falar sobre rap no Brasil.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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