Fantaspoa 2016: “Tikkun”, de Avishai Sivan

"Tikkun" foi um filme premiado durante o Festival
“Tikkun” foi um dos filmes premiado durante o Festival

Por Giulia Barão

Tikkun (2015, 120 min.) é o terceiro filme do diretor Avishai Sivan que desenvolve as temáticas da fé e das ortodoxias religiosas, sobre as quais apresenta um olhar problematizador. Longe de cair numa perspectiva documentarista, neste longa, Avishai consegue nos colocar diante dessas questões a partir da rotina e da intimidade do personagem principal, Haim-Aaron (Aharon Traitel), e seus familiares, principalmente seu pai (Khalifa Natour).

Haim-Aaron é o filho mais velho de uma família de judeus ortodoxos, e, como está previsto na tradição, frequenta a Yeshivá, instituição de ensino exclusivamente masculina, voltada para o estudo dos textos fundacionais do judaísmo, a Torá e o Talmud, assim como para a prática da devoção religiosa. Nisto estão incluídas diversas práticas que aparecem no filme, como extensivas horas de oração, privação de desejos corporais, tipo especial de vestimenta e banho ritual (mikvê). Nenhum desses costumes é explicado ao espectador: o cotidiano hassídico é apresentado como a norma de vida que Haim-Aaron segue sem questionamento. Além disso, a intimidade familiar é extremamente hermética. Os diálogos são curtos e enigmáticos, não há relações de afetividade, cada posição na família é mediada pela institucionalidade da ortodoxia religiosa.

Nesse contexto, Haim-Aaron é inicialmente apresentado como um estudante promissor na Yeshivá, que vira noites orando em jejum, o que gera admiração nos colegas. Imerso nessa rotina exclusivamente destinada à elevação espiritual, os mínimos acontecimentos cotidianos passam a parecer estranhos ao jovem, como se algo de muito grave estivesse sempre prestes a lhe acontecer. Há uma incapacidade crescente para a existência física à medida em que Haim-Aaron se dedica à devoção espiritual. O ponto culminante disso e que marca a virada trágica do filme é quando, após uma ereção involuntária, Aaron distrai-se e é surpreendido pela água fervente do chuveiro – que há pouco parara de funcionar misteriosamente. O rapaz cai na banheira e é encontrado morto pelo pai. Uma ambulância é chamada e após repetidas tentativas falhas de reanimação pelos médicos, que dão Haim-Aaron como morto, o pai se coloca a fazer as massagens cardíacas e consegue trazê-lo à vida.

O alívio, porém, dura pouco, pois Haim-Aaron volta da experiência de quase-morte transformado. Já não consegue seguir as obrigações ortodoxas e nem mesmo se reconhece –  não precisa mais usar óculos, por exemplo; e desejos desconhecidos habitam seu corpo. Essa mudança no filho angustia o pai, que se sente culpado por reconhecer ter agido contra a vontade de Deus ao trazê-lo de volta à vida. Em determinada cena de repreensão, chega a afirmar “Duas almas numa só vida, que petulância”, como se ao salvar Haim-Aaron, ele tivesse sido responsável pelo envio divino de uma nova alma àquele corpo. Aaron, por sua vez, não consegue suportar a rigidez moral sobre as novas vontades recém-descobertas. Nada disso é conversado entre os dois, e a mãe marca sua única posição possível nesse contexto: calar e aceitar os desígnios da autoridade masculina.

A angústia e o desconforto de ambos são representados por sonhos e visões que anunciam um destino trágico. Imagens surreais, como um jacaré que irrompe do vaso sanitário, compõem o clima predominantemente onírico do filme, o único longa em preto e branco deste Fantaspoa. Além da narrativa enigmática e inquietante, é essa estética obscura e repleta de imagens simbólicas que nos transporta por duas horas de muito silêncio sem cansar.

Também vale destacar a atuação da dupla de atores principais. Tikkun foi o primeiro trabalho de Aharon Traitel, que dedicou quase dois anos de preparação para o papel. Ex-judeu ortodoxo desde os 15 anos, Traitel foi escolhido por conhecer profundamente o cotidiano familiar e tradicional que o diretor queria retratar. Segundo este, em todos os atores profissionais que participaram da audição para o papel faltava aquilo que Traitel ainda conseguia acessar em sua experiência: a sobriedade, a retidão, o alinhamento das expressões e dos gestos aos moldes da tradição ortodoxa. Com justiça, Aharon Traitel acabou ganhando o prêmio de Melhor Ator na Competição Internacional do Fantaspoa. Já o ator que representa o pai, Khalifa Natour, é palestino e muçulmano, e dedicou-se a aprender iídiche e estudar o judaísmo ortodoxo especialmente para o filme. Puxando a brasa para o viés político que me é tão caro, é entusiasmante conhecer obras desta qualidade, em que as diferenças culturais são matéria-prima para criação e pensamento crítico – e não para conflitos.

A angústia e o desconforto são representados por sonhos e visões que anunciam um destino trágico
A angústia e o desconforto são representados por sonhos e visões que anunciam um destino trágico

Por Filipe Rossau

Após uma experiência de quase morte, o jovem hassídico (movimento dentro do judaísmo ortodoxo que prega a espiritualidade como aspecto fundamental) Haim-Aron (interpretado pelo estreante Aharon Traitel) tem uma forte crise existencial e passa a questionar a si e próprio e o restrito mundo a sua volta. Aparentemente convicto em sua religiosidade, Haim vive confinado ao círculo familiar e à Yeshivá (nome dado a instituições destinadas ao estudo do Torá, os escritos fundamentais do judaísmo), dedicando horas à biblioteca e mostrando muito respeito aos costumes tradicionais.

Filmado em preto e branco, Tikkun narra de forma bastante lenta o processo pelo qual Haim-Aron passa após ter uma reação inesperada no banho, cair e ficar desacordado. Dado como morto pelos paramédicos, volta a vida 40 minutos depois dos primeiros-socorros falharem e seu pai (Khalifa Natour) – um açougueiro kosher (que pratica o abate bovino considerado próprio para consumo pela religião) –, em tom de suplica, chamá-lo de volta a nosso plano. A ligação entre o acidente e a mudança comportamental de Haim demora a ser explicada, mas começa a aparecer quando ele deixa de consumir carne, passa a ter dificuldades de concentração e dorme nas aulas, até que se torna um notívago.

O afastamento da religião faz com que Haim-Aron seja visto como problemático. Esse é o retrato de uma parcela social que não aprendeu a lidar com o contraditório interno sem jogar a carta da culpa na mesa. Isso fica bem representado na reação do pai, que passa a ter pesadelos em que elementos fantasiosos aparecem – em um toque de surrealismo – o assustando a ponto de fazê-lo pensar que são manifestações de Deus irado por ter seus planos interrompidos.

Suprimido pela ortodoxia em sua religião, Haim-Aron entra em um mundo considerado perigoso por sua comunidade, ao passo que a sonoplastia (o tempo todo desacompanhada de trilha-sonora) ganha tons mais altos e o cinza rouba mais espaço nas cores altamente contrastadas. Ou seja, a nebulosidade mostra que Haim fica mais confuso pela pressão imposta a ele. Não por acaso a fotografia recebeu menção especial no Festival de Locarno de 2015, onde entrou na disputa de Melhor Filme. Levou este prêmio no Festival de Cinema de Jerusalém, quando saiu vitorioso por Melhor Roteiro (Avishai Sivan), Melhor Filme Israelense e Melhor Ator (Khalifa Natour).

Talvez não ganhe do grande público a mesma recepção que recebeu dos críticos, até por ter em seus méritos o que não aparece diante das câmeras: embora se passe em Jerusalém, as gravações aconteceram em uma pequena comunidade onde quase todos os moradores são judeus ultra-ortodoxos e que, em certa parte, nem tomaram conhecimento das filmagens. Além de ter entre seus pontos mais interessantes o protagonista interpretado por um ex-hassídico que continua judeu após ter deixado a tradição ultra-ortodoxa e que não é ator profissional – escolhido para o elenco pela experiência de vida, o que lhe permitiu expressões tão convincentes ao longo do filme -, resultando no prêmio de Melhor Ator no Fantaspoa 2016.

Tikkun pode ser visto como um pretensioso drama exagerado em seu suspense ao não revelar com facilidade o íntimo de seus personagens. No entanto, pode – e deve – ser encarado pela curiosidade que desperta ao se propor como retrato tão fiel e não-moralista de uma das diversas facetas da religiosidade.

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