Mãe Só Há Uma discute identidades e desmistifica questões relacionadas à família tradicional

Em Que Horas Ela Volta, a cineasta Anna Muylaert já havia mostrado o seu talento em abalar certas estruturas estabelecidas no status quo da sociedade. Ao demonstrar as entranhas da relação de poder entre os empregados domésticos e seus patrões, ela toma como estudo de caso a elite paulista e debate sobre o conflito entre classes sociais dentro de uma casa. Agora, em Mãe Só Há Uma, a cineasta continua com sua tradição de mexer no normativo ao tirar do lugar comum duas questões relevantes: a família tradicional e a normatividade de gênero.

Pierre não segue os padrões normativos de gênero, um dos geradores de conflito com a (nova) família
Pierre não segue os padrões normativos de gênero, um dos geradores de conflito com a (nova) família

Pierre (Naomi Nero) é um adolescente que vive com a mãe, Aracy (Daniele Nefussi), e a irmã, Jaqueline (Lara Dias). Na casa, o jovem é bastante mimado, ainda que não seja abastado financeiramente. Ele é bissexual e também fluído com determinações de gênero: gosta de algumas peças de roupa femininas, pinta as unhas e usa maquiagem em alguns contextos. Sua vida é bastante tranquila: escola, festas e uma banda. Porém, no segundo ano do ensino médio, Pierre descobre que ele e Jaqueline foram roubados da maternidade e, aparentemente, a mulher que conhecia como mãe é a principal suspeita.

A vida dos dois jovens se desestabiliza. Separados, cada um é obrigado a conviver com suas novas – ou antigas – famílias. Um dos pontos mais brutais e tristes é, certamente, a diferença entre a reação dos pais biológicos – felizes, radiantes com a possibilidade de voltar a estar em contato com o filho, sequestrado há anos – e a reação dos adolescentes que, abismados, perderam as referências familiares que conheciam. Pierre (agora também já chamado ocasionalmente de Felipe, seu nome de nascença) vai morar com Glória (também Daniele Nefussi, em um trabalho excelente de direção de arte, pois apenas notei que era a mesma atriz nos créditos finais da projeção), Matheus (Matheus Nachtergaele) e seu irmão, Joca (Daniel Botelho), uma família de classe média alta bastante tradicional.

A nova família de Pierre, que também passa a ser chamado de Felipe quando se muda para a casa dos pais biológicos
A nova família de Pierre, que também passa a ser chamado de Felipe quando se muda para a casa dos pais biológicos

O amor que tentam demonstrar por Pierre chega a ser sufocante. Mais do que saudade do jovem, que não veem desde que era um bebê, tais ações também são uma tentativa desesperada de adaptá-lo àquele modo de vida que a família levava. Inclusive, quando Matheus descobre o gosto de Pierre por roupas femininas, inicialmente gargalha não levando a sério. O jovem está experimentando um vestido, e o pai diz que podem comprar aquele modelito no Carnaval, reproduzindo um velho estereótipo machista de se vestir de mulher no feriado, mas de forma jocosa. Quando o filho mantém-se firme sobre o seu gosto pela vestimenta, o pai adota uma postura agressiva e o ameaça. É mais uma reprodução da clássica violência parental por simplesmente não aceitarem Pierre como era.

Enquanto Joca representa muito mais o estereótipo de filho ideal para esta família – provavelmente heterossexual, se veste normativamente, parece apreciar os momentos com o grupo familiar – Pierre sempre parece deslocado pois não consegue adaptar-se ao código tão rígido daquela família tradicional. E por mais bem-humorados que – inicialmente – sejam, eles parecem não conseguir compreender o trauma do jovem, que perdeu não só a mulher que amou como mãe ao longo da sua vida, mas também o modelo de vida. Sua identidade se fragiliza – perde o nome, a mãe, a irmã, a casa, muda de escola – e por isso, parece ser justamente com os “novos” pais que ele se abre mais à identidade que se sente mais seguro e confortável: a de gênero, mesmo que essa não seja declarada. Pierre, que antes usava roupas menos generificadas, que poderiam ser lidas como masculinas, agora adota vestidos e maquiagem em algumas ocasiões. Ele encontra espaço e também um modo de resistir àquela vida que lhe foi imposta de forma tão brutal.

Joca, o irmão mais novo, é o filho que segue os padrões normativos seguidos pelas famílias tradicionais de classe média
Joca, o irmão mais novo, é o filho que segue os padrões normativos seguidos pelas famílias tradicionais de classe média

E se o modelo de família atual soa tão natural para alguns, é no mínimo interessante questionar a autoridade parental quanto ao que nós somos, tão naturalmente instituída. Glória, mesmo desconfortável, aceita Pierre, mas Matheus parece claramente incomodado. Em um diálogo no boliche, ele questiona o adolescente o quanto mais eles precisam aceitar por medo de perder o filho. Parece que o pai lança esse questionamento por saber que, para aquele filho, não pode enfiar tão verticalmente um estilo de vida, como faria em qualquer outro filho biológico e de forma mais orgânica ao longo dos anos. Tal situação é um demonstrativo do desespero de Matheus, mas mais que isso, da necessidade dos pais em impor um modelo socialmente aceitável aos filhos, mesmo que esse seja uma semente para discurso de ódio e preconceito em seus mais variados níveis de intolerância. E na mesma cena, Matheus, que vinha chamando o adolescente de “Felipe”, refere-se a ele novamente como Pierre, quase que negando-lhe a paternidade quando o jovem o decepciona.

Mãe Só Há Uma é uma remexida incômoda nas questões tão socialmente difundidas pelo padrão de vida da classe média, e Muylaert acerta novamente ao desmistificar o modelo de amor pregado pelas famílias tradicionais. Porém, a diretora (e roteirista) é também delicada ao jamais perder a ternura: o afeto também está sempre presente, especialmente no que diz respeito à mãe e ao irmão de Pierre. E é essa multimensionalidade dos personagens que transforma o filme em uma experiência tão gratificante ao jogar na cara do espectador aquelas situações tão contraditórias, como são as próprias famílias.

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