Novo Caça-Fantasmas: representatividade até certo ponto

Da esquerda para a direita: Patty, Abby, Erin e Holts combatem o sobrenatural em Nova Iorque
Da esquerda para a direita: Patty, Abby, Erin e Holts combatem o sobrenatural em Nova Iorque

Alvo de ferrenhas críticas e campanhas machistas na internet (que tentaram transformar o trailer no mais odiado do YouTube), o novo Caça-Fantasmas foi desaprovado pelos motivos errados. Enquanto milhares de usuários se mobilizaram para atacar o filme por ser protagonizado por mulheres (alegando que seria uma ofensa ao original, não seria engraçado e outra tonelada de comentários clichês), este acerta ao apresentar uma equipe de protagonistas cativante e com um timing incrível para comédia. Porém, a nova obra de Paul Feig erra em questões de representatividade no que diz respeito à única mulher negra entre as quatro protagonistas.

O longa é uma versão do original de 1984, protagonizado por Bill Murray, Dan Aykroyd, Ernie Hudson, Harold Ramis e Sigourney Weaver. Agora, Erin (Kirsten Wigg), Abby (Melissa McCarthy), Patty (Leslie Jones) e Holtz (Kate McKinnon) são o novo time que combate fantasmas na cidade de Nova Iorque. O filme segue bastante a estrutura do antigo: a partir do momento em que ficam desempregadas, três das protagonistas abrem a empresa. Patty se junta ao grupo após presenciar a aparição de um fantasma nos trilhos do trem, onde antes trabalhava. Já Kevin (Chris Hemsworth) é contratado como secretário apesar de sua burrice extrema, protagonizando vários dos momentos engraçadíssimos em tela.

Filme homenageia o original de 1984 de diversos modos
Filme homenageia o original de 1984 de diversos modos

Cheio de referências ao longa antigo, Caça-Fantasmas jamais soa repetitivo ou imitador. O novo filme homenageia o original de 1984 em diversas ocasiões, como, por exemplo, quando as novas caçadoras vão atrás de um local para o seu escritório, encontrando exatamente a locação da primeira obra. Mas, devido ao aumento dos preços, estão impossibilitadas de pagar e são realocadas em cima de um restaurante chinês. Suas armas, seus carros e uniformes também são bastante idênticos aos utilizados pela turma de três décadas atrás. Além disso, diversas aparições especiais causam uma comoção ao serem organicamente colocadas na narrativa, de modo que os fãs se sentem bastante contemplados. Já a clássica música composta por Elmer Bernstein ganha uma nova roupagem por Theodore Shapiro, sem desconectar-se da clássica versão de 1984.

As homenagens ao antigo filme são uma qualidade extra, já que o carisma e a química das novas protagonistas em tela sustentaria toda a projeção. Apesar dos problemas, ver quatro mulheres lutando contra fantasmas de forma totalmente independente de qualquer ajuda masculina é muito empoderador. Em diversas ocasiões, os homens surgem em tela apenas para atrapalhar a dinâmica das quatro amigas, que se entendem e se apoiam muito bem.

O longa também brinca consigo mesmo ao mencionar que não se deve perder tempo lendo comentários raivosos na internet quando o grupo posta um vídeo. A piada faz referência exatamente ao fato que toda a divulgação do filme sofreu com comentários e rejeições online.

Mas o filme peca. Há problemas no roteiro, especialmente no que diz respeito à única mulher negra entre as quatro protagonistas. Os méritos da representatividade feminina sem dúvida se aplicam à Patty: ela é divertida, cheia de referências e conhece a cidade como ninguém. Sua inteligência não precisa ser comprovada por diplomas ou pela repetição de frases como “somos cientistas” o tempo todo, como as outras mulheres fazem. E no último ato, seu protagonismo é essencial. Porém, ela é justamente a única das mulheres que não é cientista, além de reproduzir o estereótipo da sassy black woman. Segundo Kasiena Boom, no site Everyday Feminism, o estereótipo contribui para generificar as mulheres negras – mesmo que pareça inofensivo – não possibilitando a demonstração do quão multifacetada elas podem ser. A crítica de Janessa E. Robinson, no jornal The Guardian aponta bem que a questão não é que uma pessoa “normal” (no caso, não cientista) não possa ser uma Ghostbuster, mas por que a única pessoa não cientista precisa ser negra? O título da matéria, inclusive, é bastante problematizador: “Eles chamam essa versão de Caça-Fantasmas de feminista. Não para mulheres negras”.

patty
Patty (Leslie Jones) é a única das protagonistas que não é cientista

Representatividade importa. A última frase tem sido repetida nos últimos tempos pois percebeu-se o potencial de identificação que a cultura audiovisual possui. Sendo assim, é realmente uma pena que um filme com tanta ação e protagonizado apenas por mulheres cheias de qualidades maravilhosas (ou seja, tenha tanto potencial) erre tão feio nessa questão básica de representatividade. Como defende Marama Whyte, em artigo no site Hypable, não há razão para que a personagem de Leslie Jones não fosse uma cientista. Simplesmente não há. E segundo a autora, “clichês reducionistas, tipo ser a espertona da rua e a sassy black woman são contribuidores diretos para a opressão das mulheres negras na vida real”, o que corrobora para o desserviço prestado pelo novo Ghostbusters nesse sentido.

Logo, apesar do filme dar passos à frente em questões de sororidade e de colocar mulheres em situações de protagonismo, ele também dá passos para trás ao ignorar totalmente o potencial de Patty e perder a chance de ser muito mais significativo em questões de representatividade para as mulheres negras. É claro que trabalhadoras e trabalhadores merecem ter suas histórias contadas nos filmes, mas é bastante injusto que os papéis de cientistas e protagonistas acabem reservados sempre para mulheres brancas. Assim, Caça-Fantasmas destaca-se por ser engraçado e provar que mulheres podem e devem protagonizar filmes de ação e de comédia, mas decepciona quanto às questões de representatividade. O trailer e a existência do longa foram realmente criticados pelos motivos errados.

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