Para Criolo, ainda há tempo

Fotos: Anselmo Cunha

Na salinha escura que antecede o camarim do bar Opinião, aguardamos, repórter e fotógrafo, junto com duas outras jornalistas. O fato de cada veículo ter apenas dez minutos é uma preocupação que todos compartilhamos. Afinal, o entrevistado é nada menos que Criolo. Lembro da famosa entrevista que ele concedeu ao ator Lázaro Ramos no Canal Brasil e, confesso, bate um pouco de nervosismo. Conseguirei acompanhar o raciocínio rápido, porém nada óbvio do rapper paulistano? Fora que dez minutos são insuficientes para tudo o que eu gostaria de perguntar.

A espera não chega a ser longa, mas já causa apreensão. Será que o cara vai mudar de ideia e desistir de dar entrevista? Sabe como é, vai que role algum ritual pré-show, e falta mais ou menos uma hora… De repente, de camiseta, calça de moletom e sapatos, Criolo entra na sala e cumprimenta os repórteres, um por um. ”Tudo certo, irmão?”, me pergunta, com voz tranquila e, ao mesmo tempo, incisiva.

Enquanto as meninas fazem a entrevista, testo o gravador e meu colega, Anselmo, realiza os devidos ajustes na iluminação da câmera para fotografar naquele ambiente de penumbra. Quando chega a nossa vez, tiro um papel amassado do bolso, uma espécie de roteiro criado para otimizar o pouco tempo que temos. O cara percebe e, sem graça, digo que não sou muito bom com as palavras, por isso a “cola”. “Todos nós temos dificuldades com as palavras”, rebate ele. Criolo, em dificuldades com as palavras? Impossível imaginar.

Rap old school

criolo-13
Show tem formato mais cru, com apenas DanDan e Marco no apoio (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Da comunidade do Grajaú para o mundo, já faz tempo que Kleber Cavalcante Gomes deixou de ser “apenas” um grande nome do rap nacional. Transcendeu rótulos musicais, gravou samba, bolero, MPB, conquistou a admiração e o respeito de muita gente graúda, de Chico Buarque a Ney Matogrosso, passando por Milton Nascimento e Gal Costa. Agora, aos 40 anos, mergulha em suas raízes e relança o primeiro disco, dos tempos em que era conhecido como Criolo Doido. Dez anos depois, Ainda Há Tempo ressurge repaginado, enxuto e melhor produzido.

Foi para divulgar esse novo/velho trabalho que ele veio a Porto Alegre no dia 4 de agosto. Com os quatro lotes de ingressos esgotados com antecedência, Criolo se apresentou para um público predominantemente jovem, branco e de classe média, o que não é surpresa nenhuma. Mas não vou me alongar nessa questão, que já foi abordada com propriedade pelo colega Airan Albino em sua resenha do show de Marcelo D2.

criolo-19
Criolo se apresentou para um Opinião completamente lotado (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Relançar um disco pode parecer oportunismo ou falta de inspiração para novos trabalhos. Porém, ao ver o show, percebe-se que a ideia faz todo sentido: enquanto as músicas de Nó na Orelha (2011) e Convoque seu Buda (2014) são cantadas a plenos pulmões, o repertório do primeiro álbum é recebido com interrogações por parte do público. Para muita gente, Ainda Há Tempo é, sim, uma novidade.

Ao contrário dos shows anteriores de Criolo (resenhas aqui e aqui), a apresentação é bem old school. Além do rapper, há somente dois DJs no palco, Marco, nos beats e scratches, e o velho parceiro DanDan, dobrando as vozes. Até mesmo as músicas selecionadas dos discos mais pop, por assim dizer, são as de batida tradicional, como “Duas de Cinco”, “Sucrilhos” e “Lion Man”. Projeções e animações produzidas pelo grafiteiro Alexandre Orion completam a produção.

Como sempre, o rapper se mostra ligado na realidade dos lugares por onde passa. “Não à criminalização dos ocupantes da Sefaz”, brada, referindo-se ao episódio em que 33 estudantes que ocupavam a Secretaria Estadual da Fazenda foram levados ao Departamento da Criança e do Adolescente e dez adultos acabaram na cadeia. Nesse momento, penso: “poderia ter perguntado a ele sobre as ocupações”. Se bem que seria difícil ouvir uma resposta melhor do que essa.

Papo zen

Se no palco Criolo é intenso, na entrevista, entendo o porquê de ele lançar um disco intitulado Convoque seu Buda. Tranquilo e atencioso, o rapper se mostra paciente mesmo quando a pergunta é sobre algo que possivelmente ele já tenha falado dezenas (ou centenas) de vezes. Discorre sobre tudo com seu jeito peculiar, e só perde um pouco o foco quando o celular vibra ou a porta se abre – aparentemente, está à espera de alguém. Percebo isso e decido não exceder o tempo que me foi concedido, embora a vontade seja de ficar, no mínimo, mais uma meia hora conversando.

Na despedida, um momento curioso. Anselmo deixa o lado fã falar mais alto e pede a Criolo para tirar uma foto com ele. Enquanto o fotógrafo ajeita a lente para registrar esse momento, o rapper diz: “aproveita e já faz uma posada”. Então, em um movimento rápido, faz a pose da imagem que abre esta entrevista.

criolo-18
Criolo no palco (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Nonada – Ainda Há Tempo está de volta de uma forma, digamos, repaginada. Gravar o teu primeiro disco dez anos depois… Além dos fatores que já mencionaste à exaustão – mudar letras que te incomodavam, disponibilizar o disco, ou parte dele, a um público que não teve oportunidade da época –, isso também significa uma retomada das tuas raízes, já que ele é 100% rap, ao contrário dos posteriores?   

Criolo – Não acredito que seja uma virada. Acho que tá tudo muito ligado, o som do Nó na Orelha, do Convoque seu Buda, ao caminho que me levou ao som do Ainda Há Tempo de 2016. Toda essa bagagem do rap, o boom bap… Esse rap dos anos 90 que me influenciou muito, do underground de São Paulo, de Nova York – de muitos lugares dos Estados Unidos, chegou esse som pra cá, mas foi com o de Nova York que mais me identifiquei –, acho que tá bem ligado. Não é um lance tipo “agora vou dividir um pouco a parada”. É legal mostrar pra essa molecada que tá aí a importância que o rap tradicional, cru, tem na minha construção musical, falar para eles: “ó, tinha uma parada que de repente você não conheceu, até pela sua idade”. Esse disco tem dez anos, mas só veio ao mundo depois de 18 anos de carreira. Muitos desses moleques não eram nem nascidos! Então, poder contar essa história, fazer uma apresentação que eu e o DanDan fazíamos 15 anos atrás, é mais um lance de falar: “olha como isso foi forte e como mudou nossas vidas, como foi e é importante pra gente”.

Nonada – Como é cantar letras como a de “Vasilhame” hoje? Era algo que tava te incomodando, né (A música teve sua letra modificada. O verso que continha uma menção pejorativa a travestis – “Os traveco tão ali/ Ah, alguém vai se iludir” – agora diz: “O universo tá aí, oh! Alguém vai se iludir”).

Criolo – É bem sereno, cara. Essa transformação, esse “sacar” o que cada palavra diz é um exercício para a vida, né.

Nonada – É por isso que falas que hoje, com 40 anos, tens muito mais a aprender do que quando tinhas 30?

Criolo – Claro! As pessoas perguntam pra mim: qual a diferença do Kleber que fez esse som e o de agora? Hoje percebo que tenho muito mais coisas para aprender… É um lance (a repercussão sobre a mudança na letra) que eu não imaginei que fosse acontecer, teve um retorno ultrapositivo. Foi uma parada de me ligar mesmo. Pô, é um jargão popular, uma gíria, uma coisa que tá ali, faz parte do seu dia a dia, e às vezes você nem tá ligado no que significa e reproduz…

Nonada – Uma percepção que talvez só seja mais clara hoje do que anos atrás.

Criolo – Mas não é só isso. Uma mágoa é pra sempre, irmão. É de se pensar: quantas pessoas essa música magoou? Quantas pessoas se sentiram magoadas com essa palavra em específico? Mas também quantas pessoas fazem isso (usam termos preconceituosos) e não estão com o mal no coração? Porque as vezes você erra, mas é uma questão de falta de conhecimento. E me faltou conhecimento. Uma vez, quando eu era muito jovem, eu e DanDan tínhamos a idade de 22 anos, ­e estávamos conversando em um grupo. Daí, eu falei um negócio e ele me corrigiu: “Kleber, você tá usando a palavra ‘denegrir’ do modo errado, do modo como uma pá de gente usa. Eles usam como se você estivesse diminuindo alguém, mas denegrir é tornar negro”. Então, ele me deu esse “salve”. Eu dei esse salve pro meu pai, que é um homem negro, não ia ter a maldade (racismo) na cabeça dele. É importante alguém chegar e te dar um salve, um axé, te passar o conhecimento e você estar aberto a isso.

Nonada – Desde o Nó na Orelha, a tua popularidade só aumentou. Recebeste elogios de gente como Caetano Veloso, Chico Buarque, tiveste música regravada pelo Ney Matogrosso. Mas o sucesso também vem acompanhado de críticas, como no caso do disco que fizeste com a Ivete Sangalo (Junto com a cantora baiana, Criolo gravou o disco Viva Tim Maia! (2015), em tributo ao Síndico). Como lidas com isso?

Criolo – Ah, tranquilo, tudo bem! (risos)

criolo-1
Nos bastidores, um cara tranquilo (Foto: Anselmo Cunha/Nonada)

Nonada – E o público mais das antigas, que te conhece da época da Rinha dos MCs (evento clássico da cena hip hop paulista, idealizado por Criolo e DanDan)? Reclama? Alguma coisa do tipo: “pô, o Criolo não é mais doido!”?

Criolo – (pensativo) O negócio é o seguinte… Eu tô escrevendo, tô tentando escrever um rap há 28 anos. Então, é muito de coração. Eu acho importante a gente aceitar o que as pessoas têm a oferecer, também. Se o que elas têm a oferecer é isso…

Nonada – Críticas?

Criolo – Eu posso crescer com isso também! Mas quem me conhece, tá no “baguio” e colava na Rinha pode falar pra você no que eu mudei pontualmente. De como eu cantava aos 17 ou 18 anos, a correria toda… Acho que a grande parada é celebrar a música. E quem iria perder a oportunidade de cantar Tim Maia? A gente, que vem do rap, ama Tim Maia!

Nonada – Foi uma influência grande pra ti, não?

Criolo – Claro! Na verdade, para todos nós que somos do rap. O Tim é celebrado nos bailes black desde que eu me entendo por gente, é o nosso pai do soul. Ter essa oportunidade de celebração foi algo maravilhoso.

Nonada – E músicas novas, já estás compondo?

Criolo – Tem uma coisa que não é tão nova assim, mas que pra mim é muito jovem ainda, que é uma música que compus com o Milton nascimento para o mais recente disco da Gal Costa, chamada “Dez Anjos” (faixa do disco Estratosférica, que saiu no ano passado). Eu ainda tô vivendo a emoção desse momento especial. Recentemente, fiz uma música para um baterista maravilhoso que se chama Sérgio Machado (que trabalha com o próprio Criolo e com a banda Metá Metá, entre outros artistas), no disco dele, chamado Plim. Ele me mostrou o instrumental e eu fiz a letra (da música “O Homem e o Rato”). E aí eu vou indo, devagarinho… (risos)

Nonada – O Brasil vem passando por momentos de turbulência política e isso está afetando diretamente a classe cultural, que teme retrocessos em uma área que nunca foi das mais valorizadas. O que pode fazer o artista numa hora dessas? Tem que se posicionar?

Criolo – Acho que é uma parada natural de todos. Só de o cara fazer rap ele já está tendo um posicionamento, isso tá no DNA dele. Mas dizer que tem (que se posicionar)… A gente fala tanto em democracia e, de repente, já tá cobrando do outro, né, meu… É louco esse bagulho! Tudo deve ser natural, aquilo que vem de modo natural não é ignorado.

Nonada – Na letra da música “Ainda Há Tempo”, tem um verso que diz que “as pessoas não são más, elas só estão perdidas”. Hoje a intolerância parece bem maior do que dez anos atrás. O que te faz continuar acreditando que ainda há tempo?

Criolo – Olha… Eu não posso perder a esperança no ser humano. Porque é uma questão global, não é mais uma questão pontual, de dentro da sua casa, do seu bairro, da sua cidade, do seu estado ou do seu país. É uma questão de sobrevivência da espécie. Se nós perdermos a confiança em nós mesmos, se nos desligarmos dessa fé, de que realmente somos capazes de produzir coisas positivas que superem as coisas negativas… É o início do fim, cara. É o início do fim.

Compartilhe
Ler mais sobre
Entrevista Processos artísticos Reportagem

Novelas gráficas brilham com temas como desigualdade urbana e orixás

Memória e patrimônio Reportagem

Centenário é importante para revisar mitos da Semana de Arte Moderna

Culturas populares Reportagem

A resistência do rap e do Hip-Hop no interior do Rio Grande do Sul