Animais Fantásticos e Onde Habitam reinventa o universo de Harry Potter

Harry Potter e a Pedra Filosofal foi o primeiro livro com mais de cem páginas que li na primeira década de vida. Ao longo dos anos, as obras seguintes foram sendo lançadas e à medida em que eu amadurecia, Harry, Rony e Hermione amadureciam comigo. Crescemos juntos. Devido a essa identificação, foi com alegria que soube da produção de Animais Fantásticos e Onde Habitam. Era a chance de novas gerações se apaixonarem pelo universo de Harry Potter e começarem a integrar a legião de fãs.

O longa é uma bela apresentação do universo, ainda que não faça jus à originalidade do mundo mágico. Ambientado em 1926, a temporalidade mostra diferenças no filme. Os humanos não são muito adaptados aos animais mágicos que os rodeiam – estando alguns quase extintos – e o pesquisador Newt Scamander (Eddie Redmayne) chega a Nova Iorque portando uma mala cheia das encantadoras criaturas que ele estuda e preserva. Algumas feras acabam se perdendo e as vidas de Newt, do trouxa Kowalski (Dan Fogler), da aurora Tina (Katherine Waterston) e de sua irmã Queenie (Alison Sudol) acabam se cruzando.

Eddie Redmayne é Newt Scamander, um pesquisador de criaturas mágicas. (Crédito: Reprodução)
Eddie Redmayne é Newt Scamander, um pesquisador de criaturas mágicas. (Crédito: Reprodução)

É interessante poder ver o ponto de vista norte-americano do mundo mágico, já que sempre estivemos tão adaptados à versão inglesa da magia. Em Nova Iorque, as regras são diferentes, inclusive as nomenclaturas (não-maj ao invés de trouxas) e as leis relacionadas à ligação dos bruxos com os não bruxos (não pode haver casamentos entre os dois). O longa se apropria da realidade de Nova Iorque e do mundo no período – as dificuldades pós-guerra para os trabalhadores, os bares de jazz e as sociedades intolerantes ao redor do globo. Além disso, os figurinos são fantásticos por saírem do tom clássico e mais formal que estamos acostumados a ver no mundo bruxo. Nos Estados Unidos, os terninhos e calças de Tina seriam comuns a qualquer funcionária pública, bruxa ou não-maj.

A química de Newt e Tina é genuína, ainda que ela reproduza alguns estereótipos sexistas relacionados à mocinha clássica.
A química de Newt e Tina é genuína, ainda que ela reproduza alguns estereótipos sexistas relacionados à mocinha clássica.

Ainda assim, as ameaças são globais. Ao invés do temível Voldemort, é Grindelwald quem aterroriza os humanos com seus planos maléficos de dominação (e uma das coisas mais interessantes é que, quem acompanhou os livros originais, sabe qual destino o bruxo terá). E em tempos de crescente intolerância mundial (xenofobia na Europa, eleição de Trump, Bolsonaro, etc), o filme desempenha um papel importante ao abordar uma espécie de culto caçador de bruxas (remetendo também à caçada cristã ao longo da Idade Média) que usa da intolerância e do ódio como forma de causar medo na população não-maj.

Sobre o elenco, vale apena marcar como a escalação de Eddie Redmayne foi certa para o papel. O ator encarna o ex-aluno da Lufa-Lufa com carisma e segurança. Em situações sociais, ele fica nervoso, gagueja e comete gafes sociais. Porém, no trato com os animais mágicos que carrega, o personagem demonstra a segurança que os anos de teoria e prática lhe deram. A própria paleta demonstra isso: é mais cinza e fria nas cenas em Nova Iorque enquanto, dentro da sua maleta (isso mesmo!), o tom alaranjado demonstra o calor e o conforto do ambiente em questão. Sua dinâmica com Tina é meiga e ambos os atores possuem uma química doce.

Há também importantes méritos em questão de representatividade. A presidenta Seraphina Picquery (Carmen Ejogo) é uma mulher negra (e aqui é interessante perceber como o mundo bruxo e o mundo trouxa seguem os mesmos padrões nas relações políticas- enquanto na Inglaterra há o primeiro-ministro da magia, nos Estados Unidos, há a presidenta do Congresso Mágico dos Estados Unidos da América, o MACUSA).

As mulheres da projeção conversam, interagem e o longa passa no teste de Bechdel. Porém, ainda há certos pontos que me incomodam. Tina é a clássica protagonista durona que precisou conhecer o amor para amolecer e zzzzzzz… Porém sua irmã, Queenie é uma figura interessante já que subverte o papel da mocinha frágil. Mas também reproduz o estereótipo da moça linda que se interessa pelo homem feio porque ele tem um bom coração. Aqui deixo marcado: é óbvio que é maravilhoso quando as pessoas se interessam pelas outras apenas pelo bom coração e não pela aparência, mas quantas vezes vimos isso acontecer de forma oposta? Quantas mulheres não-padrão foram agraciadas com um homem lindo por terem um ótimo coração? Às mulheres, essa representatividade nunca é concedida. Sendo assim, a indústria reproduz novamente essa noção sexista.

Seraphina Picquery é a presidenta do Congresso Mágico dos Estados Unidos da América (MACUSA). (Foto: Reprodução)
Seraphina Picquery é a presidenta do Congresso Mágico dos Estados Unidos da América (MACUSA). (Foto: Reprodução)

O filme também demora muito para chegar a algum clímax. E qual o motivo de apresentar a sociedade de Salem logo de cara se eles acabam não desempenhando nenhum grande papel no filme além de nos apresentar Creedence? E o que Colin Farrel faz durante os dois primeiros atos além de andar de um lado para o outro com cara de suspense? O próprio nome do personagem já é um clichê tenebroso. Graves (=sepultura). Faltou apenas uma placa de neon apontando para Farrel com os dizeres “Estamos tentando disfarçar, mas ele é o vilão”.

O filme também peca por infantilizar sequências desnecessariamente (como a busca pelos animais na cidade, que se torna uma sequência longa e um tanto fácil) e por tornar difícil a compreensão daquilo que parece ser a grande ameaça – os obscuros. E quanto a David Yates na direção, é uma opção segura. Por já ter dirigido outros filmes da série, o diretor está ambientado com o universo. Mas dessa vez, ele não repete o clima de tensão que vemos, por exemplo, em Harry Potter e As Relíquias da Morte (tanto a parte 1 quanto a 2), os melhores dos que Yates dirigiu da franquia.

E sim, precisamos falar sobre Johnny Deep. O papel no qual ele aparece (e pouco) poderia ser facilmente substituído por um ator com histórico mais decente e que atuaria muito melhor. O ator está apenas reproduzindo mais um de seus personagens caricatos, não dando a Grindelwald um tom ameaçador mínimo que fizesse o público entender o tamanho de sua ameaça ao mundo bruxo. E é claro, os produtores decepcionam as fãs ao empregarem o ator após as últimas notícias (agrediu a ex-esposa, Amber Heard). É uma pena que, mesmo cometendo um crime, a carreira dos homens parece não ser afetada no cinema, já que produtores de um filme tão empoderador para muitas meninas aceitam que o ator continue desempenhando o papel nos próximos filmes.

Apesar de seu histórico de violência, Johnny Deep continuará nos próximos filmes. Foto: Reprodução
Apesar de seu histórico de violência, Johnny Deep continuará nos próximos filmes. Foto: Reprodução

Apesar disso, Animais Fantásticos e Onde Habitam tem méritos, mas acaba sendo uma versão mais leve das obras relacionadas. É um spin-off interessante, mas ainda não parece fazer justiça à mágica (perdoem o trocadilho) do universo de Harry Potter. E a promessa de mais quatro filmes do mesmo assunto é sempre assustadora. Especialmente se Johnny Deep está neles. Mas vamos ser otimistas.

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