Ciência, pioneirismo e luta em Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures)

Normalmente, nossas experiências baseiam a forma como encaramos os eventos ao nosso redor. As vivências são essenciais para a nossa própria formação e visão de mundo. Mas o problema é que, em certos casos, tendemos a deixar de lado uma parte importante para a compreensão da realidade na qual estamos incluídos: as experiências pelas quais não passamos.

Por exemplo, por mais que eu tema o abuso de poder policial, eu nunca vou temer ser presa (ou até mesmo morrer) simplesmente por estar em algum lugar considerado inadequado pois sou branca. Eu nunca vou receber olhares desconfiados dentro de um ambiente empresarial pois sou branca. E entender e admitir isso não é fortalecer a desigualdade, mas compreender que a nossa sociedade é desigual e que existem privilégios dos quais eu me beneficio e outras pessoas não. E que isso não é uma coisa boa. A compreensão que a cor da minha pele me proporciona benefícios que outras pessoas não possuem me ajuda a participar desse debate potencializador de mudanças que caminham em direção a uma sociedade mais igualitária.

E Hidden Figures (ou Estrelas Além do Tempo) é um desses veículos que possibilitam debates revolucionários. Assisti ao filme dirigido por Theodore Melfi, em uma sessão destinada exclusivamente para mulheres (mas alguns homens acabaram participando – não sei a razão) convidadas pela organizadora.

O longa retrata a história real de três mulheres negras que trabalharam na NASA e tiveram papéis fundamentais na exploração espacial estadunidense. O longa é baseado no livro de mesmo nome da autora norte-americana Margot Lee Shetterly. Ela morava na Virgínia e seu pai, que trabalhava na NASA, relatou a história das mulheres que a motivaram para escrever Hidden Figures (3).

As mulheres do West Area Computers, lideradas por Dorothy Vaughan (Octavia Spencer). Crédito: Divulgação
As mulheres do West Area Computers, lideradas por Dorothy Vaughan (Octavia Spencer). Crédito: Divulgação

Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe) são matemáticas que trabalham na West Area Computers, um setor de cálculo da agência. O longa acompanha um recorte da carreira das três amigas, todas trabalhando no projeto da NASA que colaborou diretamente para levar os Estados Unidos ao espaço e para o desenvolvimento da tecnologia espacial do último século. Dentro da própria agência, há diversas mulheres ocupando espaços relevantes dentro de um espaço normalmente ilustrado por homens, a ciência. Mas por mais que elas fossem muitas e estivessem em cargos relevantes, eram os homens brancos que participavam de reuniões decisivas e determinavam os rumos das políticas internas e externas relacionadas à NASA.

O filme é delicado ao mostrar vários recortes possíveis de opressão. Constantemente Vivian Mitchell (Kirsten Dunst) é abertamente racista com Katherine, Dorothy e Mary, mesmo sendo mulher. Assim como Jim Johnson é machista em certa ocasião com Katherine, mesmo sendo negro. Com isso, mostra-se a dupla opressão passada por mulheres negras. Segundo Djamila Ribeiro, é importante focar no conceito de interseccionalidade para entender a dupla opressão sofrida. Segundo a autora, “Esse conceito vem sendo desenvolvido por mulheres negras há mais de um século e recebeu maior atenção quando a crítica e teórica Kimberlé Crenshaw o utilizou como centro de uma tese, em 1989, para analisar como raça, gênero e classe se interseccionam e geram diferentes formas de opressão”(1). Porém, vale a pena marcar a diferença entre ambas as situações passadas pelas protagonistas. Enquanto a situação com Jim Johnson é plenamente resolvida por Katherine (ele pede desculpas), o racismo é muito mais cruel e destruidor nos anos 60 nos Estados Unidos. Ele é demonstrado desde suas formas mais sutis até as mais institucionalizadas.

E é interessante que desde o início, a NASA se mostra como um ambiente progressista, mas que ainda reproduz o racismo da época. Em certo momento, um policial que aborda as três mulheres na estrada sem motivo dá a entender que não sabia que a NASA contratava mulheres negras. E para sair dessa situação amedrontadora, elas fingem que conhecem os astronautas de perto, impressionando o homem. A situação é engraçada e triste ao mesmo tempo, já que aquela artimanha só se faz necessária por culpa da abordagem gratuita. A NASA também possui banheiros segregados, ambientes de trabalhos segregados e (em uma das cenas mais cruéis) até uma cafeteira segregada. Quando Katherine, ao mudar de cargo, entra na sala e ocupa seu espaço de trabalho, dezenas de cabeças de homens brancos viram-se para ela, marcando o estranhamento daquela circunstância para eles. E mesmo a genialidade e rapidez na matemática da protagonista não é capaz de fazer com que ela ganhe a amizade dos colegas de trabalho até o final do longa, que só aí tenta ser otimista ao mostrar a melhora de sua relação com Paul Stafford (Jim Parsons).

Katherine enquanto parte da equipe de Al Harrison.
Katherine enquanto parte da equipe de Al Harrison. Crédito: Divulgação

O racismo na própria sociedade de Virgínia também aparece quando Mary tenta se tornar uma engenheira. O Estado ainda seguia a política de segregação racial em 1961, dificultando o acesso da população negra a direitos básicos. Mesmo sendo plenamente qualificada, ela precisaria de cursos adicionais em uma escola segregada para brancos. Indignando-se com a situação, ela fala “Toda vez em que temos uma chance de avançar, eles movem a linha de chegada. Toda vez”, marcando bem o racismo não apenas como um sistema de proibição, mas como uma força também de banimento de espaços arduamente conquistados. E esse debate encontra amparo em diversas situações atuais, já que a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH) foi uma demonstração do descaso da presidência de Michel Temer com os direitos básicos batalhados e conquistados.

DF-01466_R - Janelle Monáe stars as Mary Jackson in HIDDEN FIGURES. Photo Credit: Hopper Stone.
Mary Jackson e os filhos na ainda segregada cidade de Hampton, Virgínia, nos anos 60. Crédito: Hooper Stone

E apesar de ter feito um filme de heroínas negras que lutam contra as situações de violência explicitamente presentes em seu cotidiano, o diretor erra fortemente com o personagem Al Harrison (Kevin Costner). Inicialmente eu apenas havia achado que ele era um personagem contraditório pois, ao mesmo tempo que auxiliava no processo de dessegregalização dos banheiros das mulheres na NASA, não se opunha a nenhum absurdo que acontecia diante de seus olhos com Katherine. Porém, o personagem nem existe! O diretor colocou um homem branco como salvador apenas para que ele agisse corretamente. Segundo Melfi “Quem se importa com quem faz a coisa certa desde que seja a coisa certa?”. Aparentemente o diretor não entende o peso da representatividade no cinema apesar de estar dirigindo um filme do porte de Hidden Figures. Colocar a figura de um homem branco salvador é problemático em muitos níveis. Tira o protagonismo das mulheres e assume que o racismo não era algo institucionalizado e que deveria ser debatido amplamente, mas apenas mau caratismo de alguns indivíduos. Na cena do banheiro, a real Katherine Johnson começou a frequentar o banheiro das mulheres brancas sem que ninguém precisasse intervir em seu nome (4).

Um outro tópico abordado pelo filme que é sempre interessante nas obras dos anos 50 e 60 é o constante medo dos soviéticos no cenário da Guerra Fria. A conquista do espaço pelos russos apavora e apressa a NASA. As pessoas constantemente expressam preocupação com os “comunistas”, como o policial que aborda as três protagonistas com medo da espionagem russa e as filhas de Mary, que fazem simulações anti-bombas na escola.

E sobre o título do longa, frequentemente percebe-se o descaso nas traduções brasileiras, que transformam nomes riquíssimos em exemplares genéricos. Porém, com Hidden Figures, o caso é mais sério. O título original (Figuras Escondidas, em tradução livre) passa toda a carga que do filme, ao retratar figuras desconsideradas no contar da história, que apenas deu destaque a homens brancos. Já Estrelas Além do Tempo é um título vazio e que reforça o racismo ao não ser tão direto sobre a real intenção do filme.

E que filme! A obra acerta em muitas questões, como o reforço do papel das mulheres na ciência e o debate sobre a corrida espacial. Mas é claro, o seu principal ponto é a forte amizade entre três mulheres negras extremamente talentosas que dentro de um sistema racista e excludente, abrem seu espaço dentro de um ambiente dominado de homens e mulheres brancos.

Dorothy, Katherine e Mary conquistam seus espaços na NASA a partir de lutas e resistências. Crédito: Divulgação
Dorothy, Katherine e Mary conquistam seus espaços na NASA a partir de lutas e resistências. Crédito: Divulgação

E percebe-se que a discussão está longe de acabar quando um certo site de cinema brasileiro, em um ato de pura falta de empatia, alega que o longa não apela para “vitimismo” para ser um bom filme, quando o próprio conceito de “vitimismo” já é extremamente hipócrita. Vitimismo não existe. O que existe (e não apenas nos anos 60, mas até os dias atuais) é uma sociedade extremamente excludente, racista, homofóbica, machista e elitista que oprime pessoas que não se encaixam nos padrões determinados por ela. Mas é claro que quando a pessoa não sente nenhuma dessas opressões e é privilegiada em muitos níveis, é fácil defender a existência de “vitimismo”.

Como diz Mary Jackson, em uma audiência tentando obter permissão para fazer um curso de engenharia na escola de brancos, ela queria ser a primeira. E não se pode desconsiderar o pioneirismo dessas mulheres como um combustível para provar que o mundo é mutável e mesmo que lentamente, as mudanças vêm de quem revoluciona e subverte o que é pré-estabelecido.

E aqui você pode conferir com mais detalhes a história das três protagonistas. O post é da Gleice Cardoso, colaboradora da Capitolina: http://www.revistacapitolina.com.br/hidden-figures-a-historia-nunca-contada-sobre-as-mulheres-negras-da-nasa/

  1. http://ponte.cartacapital.com.br/feminismo-negro-violencias-historicas-e-simbolicas/
  2. http://www.cutbrasilia.org.br/site/dia-da-consciencia-negra-reforca-uta-contra-retirada-de-direitos/
  3. https://news.virginia.edu/content/qa-alumna-lands-book-movie-deal-untold-story-nasa-mathematicians
  4. http://atlantablackstar.com/2017/02/01/hidden-figures-director-defends-decision-add-fictitious-white-savior-scenes-movie/
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