O negro se enxerga no palco em O Topo da Montanha


“Eu estive no topo da montanha” é o nome popular do último discurso de Martin Luther King Jr. (1929-1968). Nele, o pastor parecia estar ciente de que a sua morte estaria próxima. Era como se ele já aceitasse o final de sua trajetória em solo e, dali em diante, seguiria para o plano espiritual. As palavras ditas por Martin naquele 3 de abril de 1968 mexem com praticamente todos que conhecem essa história. Tanto que, em 2009, a jovem escritora Katori Hall resolveu recriar essa noite, desde a sua chegada ao quarto 306 do Lorraine Motel até a hora de sua morte.

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A peça O Topo da Montanha começa com o Sr. King exausto, após ter feito o seu grande discurso sobre ter visto a terra prometida e, por isso, não ter mais medo da morte. O cansaço se transforma em frustração ao perceber que sua esposa, Coretta Scott King (1927-2006), esqueceu de colocar a escova de dentes em sua mala. Somado ao odor dos pés do reverendo e sua impaciência por um cigarro, ele liga para Coretta e reclama com a mulher. No fim, aproveita a ligação e mata a saudade de seus filhos. Como já estava ao telefone, solicita o serviço de quarto, a fim de café. Prontamente, uma camareira bate sua porta, seu nome é Camae.

Camae está no seu primeiro dia trabalhando no hotel. Ela tem um jeito único, um comportamento que destoa da época retratada. É questionadora e também desbocada. E sua beleza intriga Martin. Além disso, a personagem faz com que tenhamos uma perspectiva nova do reverendo King: a de um homem. Aquele que flerta, que é arrogante, um típico machista. Por alguns minutos, o humor do texto nos faz esquecer a importância daquele momento para a humanidade, e nos amarramos a um instante de comédia romântica, mas não por completo. Mesmo com passagens leves, a conversa entre o reverendo e a camareira sempre nos lembra de que estamos em um período crítico para a população negra.

Eis que chega a hora em que o diálogo entre Martin Luther King e Camae se transforma, assim como as risadas da plateia. Exatamente como um passe de mágica. O sentimento de quem assiste à peça é de como estivesse levitando. A respiração fica mais profunda, a cabeça inclinada e as sobrancelhas franzidas. E nesse momento que nós (negros) nos apaixonamos e nos enxergamos no palco.

 

Muitos rostos conhecidos

O Theatro São Pedro estava tomado de pessoas negras (Crédito: O Topo da Montanha/Divulgação)

Por motivos óbvios, não escrevi para contar o que se passa na peça. As pessoas precisam vê-la, principalmente, os negros. Um dos motivos pelo qual essa ida ao teatro é extremamente importante se chama ocupação. O teatro é uma representação de tradicionalismo e da cultura clássica, logo, branca. Muitos desses estabelecimentos reproduzem o sentimento de “pedaço da Europa”. Porém, essa sensação de nobreza é vista como o não-pertencimento a quem é negro. O teatro intimida. Então, o fato de negros irem a esses espaços é, sim, uma quebra de protocolo.

Imagino que essa história deva se repetir em todas as apresentações de O Topo da Montanha. A família (negra) ou o grupo de amigos (negros) compra os ingressos na primeira oportunidade que sua escala de trabalho permite. Já existe uma primeira barreira e esforço antes mesmo da peça chegar à cidade. Quando chega o dia do espetáculo, a preparação para ir ao teatro é bem antecipada, a melhor roupa é a única opção possível e é obrigação chegar cedo.

Aqui em Porto Alegre foi assim. Ao chegar cedo no Theatro São Pedro, vi uma fila muito grande na porta de entrada. Mas ela não te confrontava, e, sim, abraçava. Diversos rostos familiares. Apesar de só nos darmos conta do movimento no meio da peça, reproduzimos aquela mesma sensação de elevação e busca por compreender o que está se passando. Ao mesmo tempo, nos sentimos felizes, notamos como é bom se enxergar. Ver um semelhante naquele mesmo lugar que nos intimida e saber que não somos os únicos.

Assim como outras cidades, a Capital gaúcha consegue esconder a população negra de ambientes históricos. E, por isso, torna-se especial ver um local como o São Pedro lotado com mais da metade de suas cadeiras sendo ocupadas por conhecidos, amigos, parentes negros. Esse fenômeno de reconhecimento e senso de representatividade dentro da comunidade negra brasileira se deve a duas pessoas: Taís Araújo e Lázaro Ramos.

 

O maior casal brasileiro da atualidade

Os personagens do reverendo e da camareira talvez sejam os melhores já interpretados por Lázaro e Taís (Crédito: Juliana Hilal/Divulgação)

Taís Araújo e Lázaro Ramos formam o casal mais representativo do Brasil. Sem dúvida pela trajetória televisiva dos dois, mas, se olharmos com atenção, veremos duas histórias icônicas. Taís é espelho para uma geração de mulheres. Quantas gurias se viram pela primeira vez bonitas por causa dela? E Lázaro carrega bem o estandarte da Bahia por onde vai, além de se mostrar capaz de representar outros sotaques e estilos brasileiros em suas atuações, até mesmo o gaúcho. Taís e Lázaro criaram ao longo de anos uma base de seguidores muito fiéis e devotos. Porém, é frustrante ter apenas dois negros como representantes relevantes dentro da dramaturgia brasileira. Hoje, eles são líderes de causas que tocam as ditas minorias, sabem do valor que suas opiniões têm para a sociedade e usam isso muito bem.

Tal exatidão nas decisões é vista na peça. Mesmo com o apoio de amigos, Lázaro não queria fazer O Topo da Montanha no Brasil, por achar que o texto era americano demais. Não era possível fazer um recorte brasileiro com o conteúdo. Até que, em 2013, Silvio Albuquerque e Silva fez uma tradução para o português e o entregou nas mãos de Lázaro. Silvio era assessor de Presidente do STF da época, Joaquim Barbosa, e o ministro foi entrevistado por Lázaro no programa “Espelho”em abril daquele ano. Mesmo assim, o texto de Silvio foi deixado de lado pelo ator. Foi Taís quem leu primeiro, riu, chorou, se emocionou e insistiu para que Lázaro também lesse.

Taís insistiu novamente para que Lázaro dirigisse a peça, em um primeiro momento, João Falcão seria o diretor, mas com a impossibilidade dele comandar, coube a Lázaro o cargo. Embora tenha mais de 20 espetáculos em sua carreira, até então, ele não tinha assumido essa duas funções em uma mesma produção, dirigir e atuar. O desafio foi aceito e, em outubro de 2015, O Topo da Montanha estreou em São Paulo. Desde lá, foram 15 cidades, mais de 70 mil espectadores e todas as apresentações com ingressos esgotados.

O texto que era muito fechado à cultura estadunidense caiu no gosto dos atores e do público. Apesar de falar de Movimento Civis Norte Americanos, de cidades como Memphis, Detroit, Atlanta e de personagens como Malcom X (1925-1965), Ralph Abernathy (1952-1990) e Jesse Jackson, é possível fazer um link com o que acontece aqui no Brasil. Isso deve-se, claro, à tradução de Silvio Albuquerque, mas é preciso falar de Katori Hall.

 

O poder de uma mulher negra

Katori escreveu mais peças que retratam a vida de pessoas negras, como Hurt Village (Crédito: Xanthe Elbric/Divulgação)

Hoje Katori Hall é uma jovem, de 36 anos, e ela estreou com O Topo da Montanha aos 28. Formada em Estudos Afro-Americanos e em Escrita Criativa, pela Universidade de Columbia, também se formou em Teatro Avançado, por Harvard, Katori não teve espaço nos Estados Unidos para apresentar sua peça. Em 2009, ela teve de ir a Londres para encontrar um teatro, conseguiu o Theatre 503 que tinha 65 lugares para estrear O Topo da Montanha. Depois da aclamada crítica e pelas boas atuações de David Harewood (como Martin Luther King Jr.) e Lorraine Burroughs (como Camae) a peça foi para o Trafalgar Studios, que tem capacidade para 2 mil pessoas.

Em 2010, Hall ganhou o prêmio de Melhor Peça no Laurence Oliver Awards, que gratifica a excelência no teatro londrino, tornando-se a primeira pessoa não-branca a realizar esse feito. Em 2011, O Topo da Montanha foi para a Broadway, nos Estados Unidos. Dessa vez, Angela Bassett fez o papel da camareira e Samuel L. Jackson foi o reverendo King. E, desde 2012, a peça roda o país com novos atores e diretores em cada região. Ela passou pelas cidades de Milwaukee, Boston, Houston, Memphis, Baltimore, Philadelphia, Portland, Chicago, New Orleans, Atlanta e também foi a Joanesburgo, na África do Sul.

A exemplo de Fences, O Topo da Montanha é uma produção que enaltece o negro. Assim como August Wilson (1945-2005), Katori Hall procura humanizar a imagem que temos de figuras negras. Entretanto, Hall fala do maior símbolo da comunidade negra dos Estados Unidos. Ela consegue tirar a imagem de ícone de Martin Luther King Jr e mostrar que por trás de toda aquele louvor havia um homem. Sim, sonhador, mas uma pessoa.

O texto de O Topo da Montanha é uma obra-prima. Ele nos provoca no que tange a participação da mulher negra na formação de uma sociedade, nos mostra o quanto ela teve de aprender a ser sábia por ser alvo de duas opressões: o machismo e o racismo. Ele nos entristece ao falar da violência contra o povo negro. Ele expõe a causa do racismo: a branquitude. Ele nos faz refletir sobre questões que negros são obrigados a encarar dia após dia. Ele é leve e pesado. Mas ele nos mostra, assim como o último discurso do reverendo King, que é possível seguir em frente. Podemos dar continuidade a luta pelos direitos das pessoas negras, cada um do seu jeito. A liderança dessa caminhada, dessa corrida não precisa partir de apenas uma pessoa, podemos fazer isso juntos, dividindo o bastão.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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