Cidinha da Silva e a crônica sobre o peso dos dias

Foto: Daisy Serena

É provável que a leitura das crônicas de Cidinha da Silva transmita ao leitor o tom de uma conversa despretensiosa numa varanda qualquer do imaginário. Ela fala a respeito do tempo, do amor, de uma canção ou de uma saudade. Contudo, seus textos podem nos levar, também, a uma mesa de bar, fazendo palavra por palavra descer como aguardente pela garganta. É o sabor marcante do olhar crítico de Cidinha que suscita em seus leitores a reflexão sobre as contradições, hipocrisias e complexidades do mundo.

Cidinha não recorda quando exatamente começou a escrever. Mas suas publicações tiveram início em 2005, no boletim eletrônico do Instituto Kuanza, uma organização que criou junto com outras mulheres negras em São Paulo. No ano seguinte, lançou o livro Cada tridente em seu lugar e outras crônicas, pela Mazza Edições, que foi responsável por publicar também Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! (2008) e a novela juvenil Os nove pentes d’África (2009).

O número de obras produzidas pela autora, no entanto, não para por aqui. Além desses e outros livros (onze ao todo), a historiadora dedica-se a escrever artigos e ensaios sobre relações raciais e de gênero, publicados no Brasil e no Exterior. Poucos sabem que sua escrita profícua se estende, ainda, à dramaturgia.

Diante de tamanha produção, como se definir? A mineira nascida em Belo Horizonte se autodenomina prosadora. “Escrevo prosa. Por exercício diário, cotidiano, sou cronista. É o gênero ao qual me dedico de maneira intensa”, conta Cidinha, que também trabalha com contos, como os que integram a obra Baú de miudezas, sol e chuva (Mazza Edições, 2014).

Formada em História (UFMG), a escritora já iniciou três mestrados, e não concluiu nenhum deles. Decidiu, então, encurtar o caminho e fazer logo a prova para o doutorado, ingressando assim no Programa Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Como doutoranda, ela pesquisa as “Políticas públicas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil, de 2003 a 2016, na perspectiva de africanidades”.

No momento, Cidinha colabora com textos para o Geledés, Revista Fórum, Diário do Centro do Mundo e também para o site Jornalistas Livres.

E foi em meio a uma rotina bastante agitada, como escritora e pesquisadora, que a escritora, ou melhor, prosadora, respondeu às perguntas do Veredas – que não foram poucas – a respeito da crônica, o espaço dedicado ao gênero nos veículos de comunicação, entre outros assuntos que você pode conferir a partir de agora.

Veredas – De que forma teve início a sua relação com a crônica durante sua formação como leitora e escritora?

Cidinha da Silva – Foi o primeiro gênero com o qual me deparei depois das revistas em quadrinhos. Costumo dizer que conheci o Drummond cronista antes de conhecer o poeta. Foi um encontro muito prazeroso, libertador. Os cronistas mineiros, Drummond, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos foram minhas primeiras referências. Como escritora persigo os textos curtos, a concisão. Intento dizer muito ou o tudo que quero em poucas palavras. Dialogo muito com as crônicas que são assim.

Veredas – Quais cronistas você tem como referência? Por quê?

Cidinha – Bem, os mineiros citados acima porque me despertaram para o gênero. Outras referências de cronistas são Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, Machado de Assis e João do Rio. Gosto muito da Rachel de Queiroz cronista, também. Além de Luís Fernando Veríssimo.

Do Paulo M. Campos que conheci quando criança ficava encantada com prosa poética. Drummond me pegava pelo sarcasmo, pela ironia e pela poesia também. Fernando Sabino e Rachel de Queiroz são extremamente hábeis em escrever crônicas longas, longuíssimas, que não perdem o ritmo e mantêm um nível alto de interesse pela leitura. Em Luís Fernando Veríssimo me interessa a temática variada, o posicionamento político explícito, mas diluído na linguagem ferina e no humor que enganam o leitor, e este acha que está diante de algo leve.

Machado, Lima Barreto e João do Rio me interessam muito como tríade, como conjunto de escritores negros que compôs narrativas sobre o Brasil do final do século XIX, início do século XX. Como vozes negras que interpretaram o Brasil (como procuro fazer também).

Carolina me interessa como cronista a partir de um território, ou seja, uma mulher negra singular que inventou um lugar de existência para si a partir de sua experiência como migrante mineira em São Paulo, forçada a viver na favela.

Veredas –  Durante uma entrevista, Rubem Braga diz a Clarice Lispector que ele já havia escrito milhares de crônicas, e não acreditava que elas tivessem influência na vida política do país: “a gente escrever não adianta nada, Clarice”. E a escritora concorda: “no Brasil, o escritor escreve para os colegas”. Gostaria que você comentasse a respeito disso.

Cidinha – Menina, sou uma escritora negra e os colegas não dão muita bola para gente como eu, mesmo tendo sete livros de crônicas publicados, nos quais sem qualquer esforço de leitura ou de crítica, se encontra muita coisa boa. Falo dos colegas brancos e dos negros também.

Tenho uma obra singular entre meus contemporâneos de autoria negra, mas isso não me garante qualquer deferência ou mesmo lembrança em situações de pesquisa ou debate nas quais penso que minha obra deveria estar. Falo pela representatividade dela no recorte que vejo que alguns pesquisadores fazem por aí e numa série de debates para os quais não sou convidada.

Mas, tratarei de fazer um livrinho de contos, como já me aconselharam. Quem sabe assim, mudo de patamar e passo a ser encarada como prosadora séria. E, veja bem, isso que acabei de dizer não configura recalque, é, sim, crítica e autocrítica. É ter consciência de quem sou como escritora e do meu lugar no mundo, bem como dos estratagemas utilizados pelo cânone e também pelos pares para deixarem a mim e a mulheres como eu fora das raias centrais de disputa.

Penso que as crônicas devam ter alguma influência na vida política do país, sim, em algum nível, haja vista o monte de invenções textuais atribuídas a Luis Fernando Veríssimo.

No meu caso particular, recebo muitos pedidos para escrever sobre determinados temas, para me posicionar. É muito comum também que pessoas digam que quando determinados assuntos pipocam, elas correm a ver se escrevi sobre eles. Isso pode não ter relevância ou impacto nacional, mas me dá mostras do impacto sobre meus leitores e leitoras e isso me anima.

VeredasQual é papel (ele existe?) da crônica e do cronista no Brasil atualmente? Difere do que era décadas atrás?

Cidinha – Creio que pode existir um papel, desde que seja atribuído a si pelo próprio artista. O papel que atribuo a mim, e não o estendo a outros profissionais da crônica, é o de ler e narrar o tempo em que vivo de maneira crítica, sagaz, amorosa, humorada, sempre destacando o que me interessa e recriando aquilo que a criação me move a fazer. Me interessa muito empregar a lupa das africanidades e das relações de gênero para ampliar os sentidos do mundo.

Quanto à segunda parte da pergunta, não tenho ideia da recepção do trabalho dos cronistas que escreviam diariamente em jornais décadas atrás. Nem sei dizer se é um tema estudado na academia. Crônica é um gênero meio pária, não é? Outro dia alguém me felicitou por “resistir” como cronista, ao tempo em que me perguntou o que fazia com que eu me dedicasse a um gênero “morto”. Essas parecem ser as opiniões de muita gente. Por outro lado, há livros de crônicas da Marta Medeiros na 40º edição. Veríssimo é campeoníssimo em vendas. Isso me leva a crer que há cronistas que vendem muito, são lidos e influenciam milhares de pessoas.

Veredas – Qual é o papel da crônica na sua escrita?

Cidinha – Dos onze livros autorais que publiquei de 2006 a 2016, sete são de crônicas. Por esse número se percebe que ela tem um papel importante. Como já disse, gosto muito do formato da crônica, da concisão do texto. Numa Bienal do Livro em São Paulo, certa feita, perguntei a Ruth Rocha o seguinte: se era verdade que o romance fisgava o leitor por pontos e o conto por nocaute, como a crônica pegava o leitor? Ela pensou uns segundos e depois respondeu num riso muito aberto: “por W.O. A crônica deve ganhar o leitor por W.O”. Gosto muito dessa ideia. Por outro lado, mais pragmático, escrevo crônicas também porque é o que o meu parco tempo me permite escrever.

VeredasO olhar da “historiadora Cidinha” contribui de alguma forma para as crônicas que você escreve?

Cidinha – Sim, talvez no sentido de lembrar a sociedade aquilo que não pode ser esquecido, como o genocídio da população negra brasileira, o racismo e seu ardis, sobre os quais tratei exaustivamente nos livros Racismo no Brasil e afetos correlatos (2013); Sobre-viventes! (2016) e #Parem de nos matar! (2016). Entretanto, não creio que contribua mais do que o olhar da “Cidinha amante de esportes coletivos”, por exemplo. Minha alta frequência de criticidade para ler o mundo e uma capacidade acurada de observação e estabelecimento de sinapses entre múltiplos aspectos do mundo são as ferramentas que mais contribuem para caracterizar as crônicas que escrevo.

Foto: Elaine Campos

Veredas – A impressão que eu tenho, posso estar equivocada, é de que o texto opinativo (que você também escreve) está assumindo o lugar da crônica. Você percebe isso? Como você diferencia estes dois formatos?

Cidinha – Sim, para as duas coisas. Você tem razão em sua percepção e tenho consciência disso.

A crônica tem menos compromisso com o real, por exemplo, numa manifestação pública contra Temer e sua camarilha. A polícia desce o sarrafo, dezenas de pessoas são presas, outras dezenas feridas e, ao invés de me deter nessa brutalidade toda, de discutir a criminalização dos movimentos sociais aprovada no Congresso ainda no período de trama do golpe, eu opto por escrever sobre um garotinho negro, sem camisa, de 4 ou 5 anos que arrasta um saco de lixo enorme, no qual deposita as latinhas encontradas durante a manifestação. Ele está aparentemente sozinho, não tem um adulto que cuide dele, afinal, meninos como ele viram gente grande muito cedo… e eu posso inventar uma história para esse menino e ligá-la ao contexto do evento público ou não. A crônica me permite isso.

No texto opinativo, pelo menos no tipo de texto opinativo que eu escrevo, há um compromisso grande com o vivido, uma fidedignidade aos fatos, uma interpretação do real que eu não me permito deturpar em favor das minhas ideias. É um texto que costuma exigir de mim certa pesquisa, checagem de informações, robustez de argumentos, preocupação com uma linguagem mais objetiva, sem firulas.

Digo isso, porque textos opinativos como os do Reinaldo Azevedo, por exemplo, não têm qualquer compromisso com a veracidade dos fatos. Ele inventa uma realidade e a analisa, emite opinião sobre ela (a invenção).

Veredas – Seus textos (crônicas e contos) são trabalhados na academia?

Cidinha – Chegam até mim essas notícias. Professoras e professores de graduação utilizam textos e livros. Trabalhos de conclusão de curso, especializações e dissertações também têm se debruçado sobre minha obra. Frequentemente sou entrevistada pelos estudantes que conduzem esses trabalhos. Muita gente do ensino fundamental e médio também me procura.  Não tive ainda notícia de alguma tese.

Nos eventos acadêmicos sobre literatura negra e/ou escrita por mulheres (em menor proporção) cresce o número de comunicações sobre meus livros, contudo, esse não tem sido braço fundamental de consolidação do meu trabalho. Aliás, não só eu, tenho pares. Pertenço a uma geração editorial negra que não deve sua existência (e sobrevivência literária) aos estudos acadêmicos sobre literatura negra. O mais importante, no meu caso, tem sido a circulação da obra via internet, é o que me faz ser uma escritora lida. Muito lida, graças a Zambi.

Entretanto, tenho consciência de que não é um volume de leitura literária comparável ao de autores tais como Ana Maria Gonçalves, Elisa Lucinda, Salgado Maranhão, Nei Lopes, Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Paulo Lins, entre outros, que são muito lidos (infinitamente mais do que eu) à revelia da academia. Ou seja, não foi a legitimação da academia que os consagrou no mundo literário.

Veredas Como você enxerga o espaço da mulher na crônica no Brasil? E da mulher negra?

Cidinha – Posso citar alguns nomes: Tereza Cruvinel, Mirian Leitão. Colunistas de política e economia, entre elas, Flávia Oliveira, jornalista negra, especializada em economia, mas que escreve com propriedade sobre diversos temas ligados à cultura, à saúde, à arte em O Globo. Ana Paula Lisboa, jovem negra, também em o Globo. Lia Luft, que escrevia na Veja.

Marta Medeiros publica aí no sul e também em O Globo e é campeã de leitores e vendas. É lida, de verdade. A gente dá cursos por aí e vê que todo mundo a conhece. A Yasmin Tayná, cineasta negra, escreve no Nexo. A Ana Maria Gonçalves, no The Intercept Brasil. Tem muitas mulheres menos ou mais conhecidas que publicam no Blogueiras Negras, em blogues individuais ou de coletivos de mulheres negras.

Veredas – Percebo que, historicamente, não contamos com um número significativo de cronistas negras (os) na imprensa tradicional ou nos espaços alternativos de massa na internet. Este olhar que é universal, mas que também é muito próprio, em funções de sua vivência como homem e mulher negra, deixa de alcançar muitos leitores. Qual o reflexo disso?

Cidinha – Parte substancial da resposta já foi dada no enunciado da pergunta. Diferentes olhares, vozes, lugares de fala alcançam públicos diversos. Se não temos mulheres, variadas perfis de mulheres negras, opinando, escrevendo, criando e fazendo sua criação circular, perdemos a oportunidade de conhecer muito do mundo e de aprender a interpretá-lo. A Ana Maria Gonçalves tem um texto de 2016, me parece, no qual quantifica a participação de mulheres negras na imprensa nacional daquele período.

Veredas – Dos seus livros de crônicas, considero Cada tridente em seu lugar (2006) e Baú de miudezas, sol e chuva (2014) os mais poéticos. Você consegue fazer esta distinção? Quando lança um livro, você faz a distinção por temas ou estilos de crônicas?

Cidinha – Sobre a primeira pergunta, concordo parcialmente com o enunciado. O Tridente (2006) é meu primeiro livro e os primeiros seis textos, os mais fortes do livro, são sim, mais líricos, Mas depois ele tem umas confusões, era um tempo em que eu ainda me definia como artivista e colocava meu texto a serviço da política.

Quanto à sua avaliação sobre o Baú, concordo plenamente. Acrescento que é meu melhor livro até hoje, ali temos prosa poética de boa qualidade. O Oh… margem! Reinventa os rios! (Selo Povo, 2011) também tem muito lirismo e é um bom livro.

Quanto à segunda pergunta, sim, distingo bem os meus livros, sei o que tem mais poesia e o que não tem. O que trata de temas mais duros e o que trata de temas mais frugais. Diria que o Tridente e o Você me deixeviueu vou bater meu tambor! (Mazza Edições, 2008), os dois primeiros livros, são experimentações para ver por onde eu poderia ir.  O Oh, margem! Reinventa os rios! (Selo Povo, 2011) já é a decisão pela prosa poética.

O Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê Edições, 2013) é um livro opinativo sobre racismo nos meios de comunicação brasileiros. Além do título que é muito bom, um achado mesmo, preciso para exprimir a peculiaridade do racismo brasileiro antes da discussão dos afetos ter tomado as universidades do país. O conteúdo ajuda a explicar as assimetrias das relações raciais no Brasil contemporâneo.

O Sobre-viventes! (Pallas, 2016) tem uma parte que é de prosa poética mais marcada pelo humor e/ou pela ironia e outra mais dura, de textos mais reflexivos que adiantam o que seria o #Parem de nos matar! (Editora Ijumaa, 2016). O livro de 2013 e esses dois de 2016 podem ser enfeixados num mesmo bloco.

Veredas – Novelas, séries televisivas, programas de entretenimento e telejornais: são temas abordados em seus textos, algo que pouquíssimos cronistas fazem, aliás. Essa leitura feita por você já foi encarada pelos leitores como algo fútil? Porque, na verdade, todo o conteúdo produzido na televisão adota um conteúdo ideológico, que propaga ou discute preconceitos, não é mesmo?

Cidinha – Sim, já encararam como algo fútil, já me desqualificaram como intelectual. Já houve ator negro que além de me desqualificar quis brigar comigo em rede social. Houve também atrizes que se sentiram tocadas com o que escrevi sobre elas e sobre sua atuação em novelas. Dira Paes foi uma delas e me escreveu um bilhetinho muito gentil. Escrevi umas duas crônicas sobre essa desqualificação no livro “Racismo no Brasil e afetos correlatos”.

Eu faço uma leitura contemporânea dos meios de comunicação que será valorizada daqui a uns 10 anos. Talvez menos. Não demora muito, meus livros de crônicas serão estudados como uma das fontes para saber como foi esse tempo que estamos vivendo hoje. Eles têm essa vocação.

Veredas – Você também é dramaturga. Encenou “Sangoma” e “Engravidei, pari cavalos e aprendi a voar sem asas”. Como está sua produção neste momento?

Cidinha – Os Crespos, companhia de teatro negro de São Paulo encenou também “Os coloridos”, um espetáculo de rua, sobre pernas-de-pau para crianças, além dos espetáculos mencionados. “Sangoma – saúde às mulheres negras” foi escrito em co-autoria com a Cia Capulanas de Arte Negra.

No momento não tenho projetos novos de escrita para teatro, apenas desdobramentos desses trabalhos antigos. O ator Lúcio Ventania, de Belo Horizonte estuda a peça Pari cavalos para apresentar excertos na “segunda Preta”, um evento da cena dramatúrgica negra de BH. Essa mesma peça está sendo preparada para leituras por um grupo de atrizes brasileiras em Nova York, em outubro próximo.

Veredas – Sente (ou já sentiu) vontade em escrever para um veículo de massa?

Cidinha – Sim, sinto e seria muito bom. Mais ainda não surgiu uma oportunidade.

Veredas – Você acredita que atualmente esteja sendo construída/relatada uma nova experiência urbana, se levarmos em conta a inserção de narrativas de grupos tradicionalmente marginalizados?

Cidinha – Creio que sim, já há bastante tempo.  A novidade é que essas vozes têm promovido alguns canais de veiculação, por exemplo, as editoras estruturadas por coletivos negros; os recursos financeiros conquistados em editais para publicação de livros; os saraus, Slams de poesia, etc. E, atento a esse mundo paralelo, o mercado começa a abrir pequenos espaços para essas novas vozes, ainda de forma subordinada, mas existem alguns espaços.

Veredas – Os orixás e a religião de matriz africana estão presentes em suas crônicas. Chamam a atenção pois são temas que não costumam ser abordados na crônica com tanta propriedade e naturalidade. Como foi, e é, a recepção destes textos pelos leitores? Para você, qual a importância da inserção destas figuras míticas na narrativa literária?

Cidinha – Quanto à recepção, me parece ser boa. As pessoas se sentem “representadas”, como está na moda dizer. Gosto de abordá-los com propriedade (estudo muito para fazê-lo) e com naturalidade, como você detectou, porque partilho do princípio tradicional africano de que a vida espiritual faz parte do real, é o aqui, o agora e está no corpo da gente. O orixá vive em nós.

A importância de inserir essas figuras míticas e referenciais derivados delas na literatura é, em primeiro lugar, fazê-lo com dignidade, ética e conhecimento de causa, pois muito se fez e se faz como mais uma forma de deturpar as culturas de matrizes africanas e de estereotipar e estigmatizar os negros e suas reinvenções diaspóricas.

Depois disso, creio que o importância está em apresentar ao mundo leituras singulares das nossas possibilidades de existência no universo.

Veredas – Você recebe muitas críticas? De que forma elas te afetam?

Cidinha – Não recebo, não. Não porque meu trabalho seja perfeito, mas porque não se cultiva a crítica no Brasil, isso por um lado. Por outro, a literatura de autoria negra é pouco lida pela crítica, ou seja, essa crítica que não nos lê sequer tem matéria-prima para criticar. Ainda para engrossar o caldo, sou cronista e muita gente nem considera a crônica como literatura.

Afora tudo isso, agrupo a crítica que tem sido feita a mim em quatro blocos e assim me afetam: tem a crítica ignorante, de gente que não leu direito ou leu e não percebeu nada de essencial na leitura. Essa crítica, às vezes eu ignoro, noutras tiro sarro, porque a gente precisa rir do ridículo para manter o humor.

O segundo tipo de crítica é apressada, superficial e quer me enquadrar em caixinhas fechadas do que seria a literatura de autoria negra. A esse tipo de crítica costumo responder com argumentos. Não sou como colegas que dizem que não dialogam com a crítica porque isso seria determinar o que as pessoas podem ou não falar. Não determino o que as pessoas podem falar, digam o que quiserem, contudo, se falarem bobagens em relação àquilo que me exige tanto trabalho para produzir, me reservo o direito de contestar.

O terceiro tipo de crítica (muito comum para a literatura de autoria negra) é aquela que elogia muito e enfatiza mais a nossa biografia do que disseca nosso texto e suas qualidades e defeitos. Esta, simplesmente me entristece.

O quarto tipo, mais raro, é a crítica consubstanciada em argumentos, tanto para elogiar, quanto para apontar problemas. Esta me deixa feliz e me faz crescer como escritora. É verdade que quando as pessoas apontam comidas de bola textuais dá uma tristezazinha, mas logo passa e me empenho para não repetir os mesmos erros.

Veredas – Qual o lugar que o amor ocupa em suas crônicas?

Cidinha – Posso dizer que é meu tema mais caro e procuro destacá-lo, mesmo quando falo da morte, que é outro tema absolutamente presente em minha obra.  

Veredas – Em sua escrita, você lança mão do humor, além de dedicar um olhar carinhoso às coisas singelas da vida. Você acredita que o nosso olhar das pessoas é generoso com o cotidiano?  Como você o enxerga?

Cidinha – O olhar das pessoas para o cotidiano, de um modo geral é embaçado pelo peso dos dias. Uma cronista como eu, que também sente o peso dias, compartilha com as pessoas seu modo de sobreviver, ou seja, de estar atenta à poesia que insiste em manter vivas a simplicidade e a beleza de estar vivo, de amar, de criar, de inventar um lugar de existência para o que a gente acredita.

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Obras publicadas por Cidinha da Silva:

– Cada tridente em seu lugar e outras crônicas (Mazza Edições, 2006)

– Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! (Mazza Edições, 2008)

– Os nove pentes d’África (Mazza Edições, 2009) – infanto-juvenil

– Kuami (Nandyala, 2011) – infantojuvenil

– O mar de Manu (Kuanza, 2011) – infanto-juvenil

Oh… margem! Reinventa os rios! (Selo Povo, 2011)

– Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê Edições, 2013)

– Baú de miudezas, sol e chuva (Mazza Edições, 2014)

– Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (Fundação Cultural Palmares, 2014). Org.: Cidinha da Silva

– Sobre-viventes! (Pallas, 2016)

– #Parem de nos matar! (Editora Ijumaa, 2016)

[ín]contadas: aquelas que não podem falar dizendo o que não deve ser dito (Vira Letra, 2016). Antologia.

Canções de amor e dengo (Me Parió Revolução, 2016) – poemas

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