O Pará também tá aqui em Porto Alegre

Fotos: Carol Corso/Nonada

Égua! Que coisa difícil que é falar sobre a cultura do norte do país, mesmo para uma roraimense como esta que vos escreve. Como explicar, por exemplo, que no Amazonas os elementos culturais indígenas são tão fortes que deram origem ao boi-bumbá, expressão popular que consegue movimentar a economia do estado todos os anos em um grande festival de música e dança que celebra a Amazônia e os povos originários?

Aqui na província de São Pedro, no ponto cardeal oposto da bússola, a gente nem lembra mais que a erva-mate é herança guarani. Aqui na ponta mais fria do continente, a gente conhece basicamente o que as produtoras trazem ou o que os algoritmos indicam nas plataformas de streaming. Há muito mais riqueza musical entre o norte e o sul do que sonha a nossa vã filosofia.

A boa notícia é que cada vez mais esses Brasis têm chegado senão ao RS, pelo menos a Porto Alegre, graças a grupos de artistas que vêm de fora trazendo toda essa bagagem. É o caso do reconhecido Maracatu Truvão, que está completando 13 anos, e das mulheres incríveis da Três Marias, grupo que trouxe o jongo e também o ijexá e o coco de roda da cultura negra do sudeste e do nordeste, respectivamente. E não se espante se estiver caminhando e alguém lhe oferecer um pato no tucupi, porque o pessoal do Pará também chegou colorindo a cidade, com longas saias rodadas, cachaça de jambu e os ritmos musicais tradicionais (mas não tradicionalistas!) do estado – o carimbó e o tecnobrega.

Projeto O Pará Tá Aqui realiza apresentações de carimbó e tecnobrega em Porto Alegre (Foto: Carol Corso/Nonada)

Foi pela saudade de casa que os paraenses resolveram formar o projeto cultural O Pará Tá Aqui e promover encontros em espaços públicos de Porto Alegre. A ideia partiu da jornalista Maria Evana Ribeiro. “O projeto veio da saudade da minha terra. Aquela vontade que dá, 15 anos longe e sem voltar lá, sentia o cheiro das ervas, das mangueiras, do patchouli, escutava as músicas, sentia a vibração do carimbó em mim, mas o Pará estava a milhas de distância. Então me veio uma ideia: se não posso ir lá, VOU TRAZER UM POUCO DO PARÁ PARA CÁ”

O primeiro encontro foi num fim de semana quente de maio no térreo da Casa de Cultura Mario Quintana. Com cerca de 10 pessoas no planejamento e mais artistas, entre cantoras, instrumentistas e dançarinas, as boas-vindas dos paraenses aos gaúchos foi um sucesso. Filas se formaram para provar as comidas típicas e as apresentações musicais agradaram – embora poucos tenham se arriscado a dançar junto o contagiante carimbó. “Conseguimos movimentar Belém e Porto Alegre, pedi ajuda para todo mundo aqui e lá, quando vi tinha parcerias, para criação e divulgação, matérias em jornal e tal. Faltaram muitas coisas mas o objetivo do projeto piloto da feira, foi alcançado”, conta Maria, agradecendo a rede que se formou entre gaúchos e paraenses.

O trabalho é todo feito de forma voluntária, com apoio de uma marca de cachaça paraense. Como bons artistas de rua, eles também se apresentam na Redenção, entre o artesanato kaingang e o samba de roda, para angariar fundos para o próximo festival, que deve acontecer com mais oficinas, exposições de artesanato e moda e outros elementos culturais. Além do festival, já tem data marcada para outros eventos, como a Balada Tecnobrega.

Dona Maria, que dança é essa?

A banda Apoema (foto) e o grupo Chamegado iniciaram as atividades há poucos peses (Foto: Carol Corso/Nonada)

“Se você quiser saber o que jamburana faz, o tremor do jambú é gostoso demais”. Quem já ouviu Dona Onete sabe que o carimbó é muito quente. Décadas atrás, Mestre Verequete já avisava: “o carimbó é muito quente, da cintura pra baixo eu sou peixe, da cintura pra cima eu sou gente”. De fato, é difícil ficar parado com a cadência do curimbó, o instrumento de percussão homônimo que é a alma do gênero musical.

Verequete, um senhor negro de 90 anos que fez sua primeira composição a partir de sua vivência nos terreiros de religião matriz africana, é um exemplo do que representa o carimbó: o cotidiano dos ribeirinhos, dos roceiros, dos pescadores, das pessoas simples que vivem principalmente no litoral norte do Pará. Nas letras, há muitas referências aos bichos (recomendo ouvir o Carimbó do Macaco), à pesca (Pescador)  e ao próprio carimbó (Dança do Carimbó)

Quem quiser dançar um bom carimbó aqui na capital da província tem duas opções: a banda Apoema, com a vocalista Maí Yandara, e o Chamegado, grupo formado por iniciativa da cantora e compositora Raquel Leão, que já vem há algum tempo apresentando as influências da Amazônia na sua obra, como a gente mostrou nesta entrevista. E, se nas apresentações diurnas na Redenção os espectadores estavam bastante tímidos, de noite a coisa tem sido diferente. Em meados de julho, o Chamegado se encarregou de introduzir o carimbó na noite de Porto Alegre. Muita gente se aconchegou no bar do Paulista, já bastante conhecido na cena pelas apresentações do grupo de artes cênicas Pretagô, e topou dançar as coreografias e fazer coro com a banda.

O gênero, que vive uma de suas fases mais populares em termos nacionais, existe desde o século XVII, originalmente uma importante expressão cultural da população negra do Pará. Maí Yandara conta que não existe consenso sobre a origem do carimbó, embora existam algumas teses mais fortes. “Há pesquisadores que dizem que ele surgiu a partir de uma dança indígena chamada gambá e há outros que dizem que surgiu do batuque africano”, relata Maí, que também se apresenta cantando outros ritmos, como o forró. “O que se sabe é que é um ritmo originário de três matrizes culturais: a africana (a percussão), a indígena (com a dança de roda) e a portuguesa (palmas)”, completa.

Registrado patrimônio imaterial do Brasil no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o carimbó é constituído pela música, pelas danças, pelas festas e dá nome ao seu principal instrumento, também chamado de curimbó – em suma, uma espécie de tambor próprio do Pará, como o sopapo aqui no Rio Grande do Sul. Segundo dossiê publicado pelo Iphan, “o termo vem do Tupi Korimbó, originalmente nomeando. Junção de curi (pau oco) e m’bó (furado, escavado), traduzido por ‘pau que produz som’”. Maí conta que só o curimbó e um vocalista já constituem o carimbó, mas alguns instrumentos são bastante incorporados, como o banjo, as maracas (outra possível influência indígena), a flauta e o saxofone.

Além de uma expressão genuinamente popular, o gênero é também resistência cultural. Vale lembrar que, em tempos de retorno da censura a mostras artísticas e espetáculos teatrais no Brasil, o carimbó chegou a ser proibido pelos governantes de Belém durante o século XVII por sua forte ligação com o povo negro. Atualmente, ele renega o tradicionalismo (ainda que sob alguns protestos, como conta Maí) ao agregar novos instrumentos a partir dos anos 1970, como a guitarra e a bateria´no pioneirismo de Pinduca, e ao trazer mais mulheres à frente dos vocais e nas bandas – de Fafá de Belém a Joelma e Lia Sophia. Dona Maria, essa dança tem na sua essência o gingado e a resiliência das comunidades tradicionais do Brasil e talvez por isso seja tão aberto a transformações, mas sem abandonar as raízes.

Próximo festival do projeto terá oficinas de carimbó (Foto: Carol Corso/Nonada)
Compartilhe
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Culturas populares Reportagem

Pensando perspectivas decoloniais sobre o folclore brasileiro

Processos artísticos Reportagem

Corpo tem sotaque: como mestra Iara Deodoro abriu caminhos para a dança afro-gaúcha

Culturas populares Memória e patrimônio Reportagem

Sem apoio contínuo do Estado, mestres da cultura popular morrem de covid-19