O retorno de Otto reforça ponte entre o Nordeste e o Sul

Resenha: Ananda Zambi
Fotos: Raphael Carrozzo

Com a minha ponte aérea Porto Alegre-Maceió, percebo que a relação entre as regiões Nordeste e Sul, apesar de estar melhorando cada vez mais, ainda possui suas diferenças; uma espécie de estranheza causada pela distância, que pode gerar um certo desconhecimento de ambas as partes.  Mas quando o assunto é música, os extremos se unem, se admiram e se identificam a ponto de serem aplaudidos de pé durante longos minutos. E foi isso que aconteceu com o show do cantor e compositor pernambucano Otto na noite de sábado (24/3), no tradicional bar Opinião. Após cinco anos sem vir a Porto Alegre, o “galego” matou a saudade de um público razoável, mas sedento.

Foto: Raphael Carrozzo/Nonada

Lançando o disco Ottomatopeia (2017) – brincadeira com a palavra “onomatopeia” (figura de linguagem na qual se reproduz um som com um fonema ou palavra), o álbum é influenciado por ritmos populares, como carimbó, brega e lambada, e também possui traços de rock -, Otto subiu ao palco com a balada “Bala”, seguida de “Caminho do Sol” e “Atrás de você”, agitando o público com interpretação intensa e presença de palco despretensiosa, porém marcante: rebolando, girando, correndo, sentindo.

Rompendo com a sequência de músicas novas, veio o jazz melancólico “Dias de Janeiro”, do álbum Condom Black (2003), sendo um dos pontos altos do show, visto que é um grande sucesso e que Otto consegue colocar sedução e drama suficiente em uma música como essa (Dias de janeiro/ olha como faz/ esquentam/ é tão bom estar no mar/ amo você, amo você/ talvez não seja o certo). Para continuar com o típico drama do pernambucano, veio a recente, intimista e minimalista “Carinhosa” (Me traz de volta/ Pra viajar na alegria/ Nessa noite passada eu sonhei/ Com você e adorei), uma das mais intensas do Ottomatopeia. Quem acompanha sua trajetória, e até mesmo seu Instagram, sabe que Otto é um excelente poeta.

De volta às “músicas alegres”, Otto cantou, depois de um gole de whisky e brincar um pouco com teclado e percussão, a dançante “Janaína”, do CD Certa manhã acordei de sonhos intranquilos (2009), que reverencia a Yemanjá e as religiões de matriz africana. Com percussão e guitarra singulares, é impossível ficar parado ao escutar essa música, sendo assim essa um dos maiores sucessos e uma das melhores músicas da carreira do cantor.

Foto: Raphael Carrozzo/Nonada

Após a insossa “Meu Dengo” (música de Roberta Miranda regravada por Otto com participação da própria e da cantora Céu), o cantor falou que “somos todos um país só”, se referindo à importância de ritmos nordestinos e nortistas, como o baião e o carimbó, e citou nomes como o do cantor e compositor paraense Felipe Cordeiro. Então, chamou ao palco o cantor, compositor e produtor gaúcho Guri Assis Brasil, que tocou seu maior sucesso “Vou me mudar pro Uruguai”, música que, para minha surpresa, apresenta elementos desses ritmos populares. De volta ao palco, o pernambucano falou de amigos gaúchos, como Frank Jorge, Júpiter Maçã, Wander Wildner e Carlos Eduardo Miranda, este que faleceu no dia 22 de março e para quem o show foi dedicado. Assim, Otto lembrou, mais uma vez, que o Brasil, mesmo que plural, é uma coisa só.

Depois de “Saudade” e da emblemática “Crua” (E ter que acreditar num caso sério/ E na melancolia que dizia/ Mas naquela noite em que eu chamei você/ Fodia, fodia), veio a lúdica “É certo o amor imaginar?”, uma das baladas mais divertidas do disco novo. Após alegar que “gosta dos deuses que dançam”, entoou o frevo-brega-reggae “Quem sabe Deus”, de 2003. Outros destaques são a densa e profunda “6 Minutos”(Não precisa falar/ Nem saber de mim/ E até pra morrer você tem que existir), “Dúvida” (outro destaque de Ottomatopeia) e o drum and bass “Bob” – maior sucesso da carreira -, quando Otto volta a performar de forma mais expressiva.

Após a ode a seu estado “Ciranda de Maluco” e “Exu Parade” – única do The Moon 1111 (2012) no setlist -, Otto tocou no assunto da democracia no nosso país e declarou que “a onipresença da arte é muito bonita”. Antes do bis, tocou a parceria com Chorão “Cuba” e emendou com os sucessos de Chico Science e Nação Zumbi – banda da qual o artista já fez parte – “Da Lama aos Caos” e “A Praieira”, essa interpretada por André Malê, percussionista da banda de Otto. A apresentação acabou com o pop rock “Pelo Engarrafamento”, com o brega “Pra Ser Só Minha Mulher” e com a mistureba em francês “Low”.

Foto: Raphael Carrozzo/Nonada

Ottomatopeia é um disco relativamente simples se comparado a outros da carreira do cantor – melodias fáceis, elementos sonoros simples, um ou dois ritmos característicos predominantes -, apesar de o talento de falar sobre temas cotidianos com uma criatividade singular continuar presente. Mas o fato é que Otto tem a capacidade de se reinventar quando ele quiser. Cada disco seu tem uma identidade diferente, e talvez por isso ele conquiste pessoas em cada canto do Brasil. Intenso, sedutor e verdadeiro, Otto faz um show que vale a pena ver.

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Editora, nordestina, nômade e entusiasta de produções autorais. Gosta de escrever sobre música e qualquer coisa que seja cultura.
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