A chuva passou e os Tribalistas brilharam numa ode à canção brasileira

Por Ananda Zambi
Fotos: Anselmo Cunha

Até o meio da tarde, ainda não se sabia se o show iria mesmo ocorrer, pois caía uma forte chuva em Porto Alegre e quem mora aqui sabe: quando chove, o estrago causado é grande. Mas como já havia mostrado a previsão do tempo, pouco antes das 21h o céu clareou e não houve maiores problemas durante o evento que reuniu três dos compositores mais consagrados do país em um projeto divisor de águas na história da música brasileira do século 21: os Tribalistas.

Para um dia cinza, o show começou com o susto de uma explosão de cores, tanto nos telões – que exibiam imagens dinâmicas dos artistas – quanto nas vestimentas. Com direção de arte de Batman Zavareze, Marisa Monte parecia uma rainha, com um vestido rosa, vermelho e azul estrelado e um acessório brilhoso na cabeça; Carlinhos Brown combinou várias estampas, como de costume; e Arnaldo Antunes entrou no palco com uma roupa pesada toda vermelha (é marca do artista ser monocromático), mas que, com o desenrolar do espetáculo, seria tirada e revelada uma bela bata verde com flores por baixo. A primeira música foi a de mesmo nome da banda (Pé em Deus/E fé na taba/Um dia já fui Chimpanzé/Agora eu ando só com o pé/Dois homens e uma mulher/Arnaldo, Carlinhos e Zé), que fez a plateia extravasar a ansiedade de vê-los juntos e ao vivo depois de 16 anos do primeiro álbum, chegando a ponto de eu não conseguir ouvir direito a voz de Marisa num primeiro momento, de tanta que era a gritaria (e a alegria).   

Foto: Anselmo Cunha/ Nonada

Acompanhados por Pedro Baby, Dadi, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa, a segunda música foi Carnavália, também do primeiro disco, lançado em 2002. Quando olhei para trás, toda a arquibancada do anfiteatro Beira-Rio já estava de pé, quando, geralmente, isso acontece do meio pro final dos shows. Eu ainda não estava ouvindo a voz de Marisa Monte como gostaria, mas era certo que a responsável pelos agudos do trio não desafinava uma nota.

Em “Um só”, música do último álbum (lançado em 2017) cuja letra preza pela igualdade dos seres humanos independente de nível social ou ideologia (Somos democratas/Somos os primatas/Somos vira-latas/Temos pedigree/Somos da sucata/E você aí/Somos os piratas/Guarani-tupis), foram mostrados nos telões vários retratos antigos e, ao final, uma fotopintura feita pelo artista plástico cearense Mestre Júlio.

Em “Vilarejo” – gravada no disco Infinito Particular (2006), da Marisa – e “Anjo da Guarda”, comecei a prestar mais atenção em Brown. O baiano estava acompanhado de uma espécie de parque de diversões da percussão: havia pratos, caixas, bumbo, xequerê, agogô, campana, pandeiro, enfim, mais de dez instrumentos – sem contar outros objetos sonoros, como apitos e sinos – , e ele tocava vários deles ao mesmo tempo e dançava com uma naturalidade invejável. Claro, são anos de carreira como percussionista, mas essa presença é bacana de se ver, além de dar um charme a mais no trio. Carlinhos Brown toca, canta, dança e agita (sim, ele fez o “ajayô” que sempre faz no The Voice Brasil).

Foto: Anselmo Cunha/Nonada

Depois das novas “Fora da memória” e “Diáspora” – esta com um tema super atual, a crise dos refugiados -, os artistas contaram que a primeira música dos três foi feita dez anos antes do lançamento do primeiro disco, ou seja, em 1992. Era a “Água também é mar”, também gravada por Marisa. Após “Um a um” – cuja escaleta e gaita de boca foram elementos interessantes na execução da música – e “Ânima”, os Tribalistas tocaram o maior sucesso da banda: “Velha infância”. O hit chiclete que fez parte da novela da Globo Mulheres Apaixonadas (2003) conquistou multidões pelo Brasil inteiro. O coro no estádio era fortíssimo. Nos telões, imagens de casais e de famílias.

Na bela e um pouco mais complexa “É você” (É você/Só você/Que na vida vai comigo agora/Nós dois na floresta e no salão/Nada mais/Deita no meu peito e me devora/Na vida só resta seguir/Um risco, um passo, um gesto rio afora), Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown finalmente se movimentam pelo palco, trocando de lugares e fazendo sons com objetos inusitados. Já Marisa Monte demorou um pouco mais para se soltar no palco.

Depois de “Carnalismo” e do novo hit “Aliança” (esta em parceria com o guitarrista da banda Pedro Baby), houve mais conversa com o público: os artistas comentaram que já foram gravadas 56 músicas do trio. E foi então que tocaram canções gravadas nas carreiras solo de Marisa, como “Até parece”, “Não é fácil”, “Universo ao meu redor”, “Infinito particular” e “Amor I love you”, e nos discos solo de Arnaldo, como “Sem você” e um mashup (mistura de músicas) de “Paradeiro” com “Consumado”. Essas gravadas pelo cantor e compositor paulistano eram as menos conhecidas do público do local.

Foto: Anselmo Cunha/ Nonada

Enquanto Marisa ficava mais à vontade para performar, Arnaldo também começava a dançar daquele jeito único dele: dando mini-socos no peito e chutando o ar. Depois de “Lá de longe”, do primeiro disco, e “Lutar e vencer”, do novo, rolou um dos pontos altos da noite: a música “Depois”, sob mãos ao alto e lanternas de celular.

Ao som de um berimbau, Arnaldo, com sua voz marcante e potente, começou a cantar “Trabalivre”, que possui uma sonoridade um pouco diferente das demais do disco novo, com elementos lembram ritmos nordestinos. Antes do bis, o estádio veio à loucura com os mega-sucessos “Passe em casa” e “Já sei namorar”. Na volta ao palco, o trio cantou de novo “Velha infância” e “Tribalistas”, encerrando o grande espetáculo de muitos sons, cores e luzes com uma ciranda junto com os demais músicos, tal qual uma tribo, tal qual um ritual de celebração a algo, finalizando definitivamente o show com rosas brancas e vermelhas jogadas para a platéia.

Foto: Anselmo Cunha/Nonada

Senti falta de “Baião do mundo”, “Feliz e saudável” e “Pecado é lhe deixar de molho”, mas certamente não deixou de ser um grande espetáculo que vale a pena ser visto. Você pode até não gostar do grupo formado por Arnaldo, Carlinhos e “Zé”, mas há de se reconhecer que eles marcaram uma geração, reuniram vários nichos e o mais importante: fizeram voltar novamente os olhos do Brasil para a canção popular brasileira.

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