Paula Anacaona, a francesa que encontrou-se com Dandara

Reportagem e entrevista: Thaís Seganfredo
Fotos: Pedro Heinrich/CRL

Paula Anacaona encontrou seu lugar nesse mundo. Ou melhor, seus lugares, porque são muitos: São Paulo, Rio de Janeiro, todos os estados do nordeste e – por que não? – Porto Alegre. Escritora e tradutora, ela fundou a Anacaona, editora parisiense especializada em literatura brasileira. “Eu tenho esse sotaque francês que tento apagar”, brincou Paula, fluente em português (que aprendeu sozinha), na sua fala na 64ª Feira do Livro de Porto Alegre. A conversa, mediada por Fernanda Bastos, da editora Figuras de Linguagem, foi nesse sábado (17).

Foi aos 24 anos que ela veio para cá conhecer o Brasil. Desde lá, já pegou o avião mais de 20 vezes para essas terras. “Ao lado da minha paixão pelo país, tem a minha paixão pela literatura”, conta. Sua editora, na qual traduz títulos brasileiros para o francês, tem uma atenção especial para a literatura de autoria negra e a literatura marginal. “Eu li Ferréz um dia e me apaixonei, porque apesar de não ter sido criada na periferia, a literatura marginal tem uma revolta que me chamou a atenção”, diz. Filha de uma mãe francesa branca e de um pai negro ausente que veio da Venezuela, ela não se sentia completamente pertencente ao país francês.

Além dos regionalistas como José Lins do Rego, Paula publica muitos autores contemporâneos. Um dos nomes mais recentes é Jarid Arraes, autora de “As lendas de Dandara”.  “Apesar de Dandara não ser uma história francesa, a resistência dela no quilombo foi universal, então os franceses se interessaram bastante”, relata a autora que também conta como os franceses têm uma visão exótica acerca das favelas brasileiras, que Paula tenta, “em um trabalho de formiguinha”, desconstruir. (Na conversa que tivemos no dia anterior à sua fala e que está publicada abaixo, Paula detalhou esse aspecto do mercado).

Foto: Pedro Heinrich/CRL

Recentemente, ela lançou seu primeiro romance, “Tatou”, também publicado no Brasil, que fala sobre “uma mulher negra na França que tem dificuldades em encontrar sua negritude”.  A identidade é um tema que lhe é caro, na medida em que, pelo fato de ser negra, era obrigada a ouvir seguidamente os europeus lhe perguntarem de onde ela vinha. “Essa é uma maneira de dizer ‘eu sou daqui e você é do além’”, conta a escritora, que não entendia a pergunta, porque, afinal, ela era francesa. Era, pois agora já é muito mais brasileira. Aqui, encontrou-se com Dandara, com Maria Firmina dos Reis. Aqui, fez as pazes com o pertencimento.

Sua vivência enquanto mulher negra está na sua obra e em todo o seu trabalho, mas, como fez questão de frisar, essa é uma escolha sua. Como destacou durante a conferência, quando um escritor negro escreve, sempre há a pressão para que ele escreva sobre assuntos negros, sempre há uma caixinha para escanteá-lo. “Temos que prestar atenção para não ficarmos nesse cantinho que os editores e a grande mídia nos dá, senão vamos ficar presos”, defendeu.

***

Foto: Pedro Heinrich/CRL

A escritora conversou com a gente rapidamente na sexta-feira, enquanto passeava pela Feira do Livro. Na entrevista, falamos sobre a inexistência da literatura periférica na França, a visão dos leitores franceses sobre o Brasil e ainda sobre arte engajada. Confira na íntegra:

Aqui no Brasil temos a literatura marginal, que é um dos teus temas de interesse. Mas e na França, existe uma literatura periférica? E se existe, ela é valorizada?

Não, na verdade não tem muita literatura marginal na França. Eu acho que começou um pouco a literatura marginal no final dos anos 1990, mais ou menos ao mesmo tempo em que no Brasil. Mas, depois, eles recusaram esse rótulo de escritores marginais, não quiseram se identificar assim, então o movimento não continuou. Esses escritores continuaram escrevendo, mas cada um em uma editora diferente e sobretudo recusando esse rótulo do marginal. O que eu gosto na literatura do Brasil é esse orgulho pela periferia, que na França não existe muito. Acho também que a população que mora nas periferias da França foi mais para o lado do hip-hop. Tem alguns artistas que escrevem muito bem, são poetas, mas eles fazem hip-hop e não literatura.

O que te levou a descobrir  o Brasil?

Na verdade foi um pouco por acaso. Às vezes, as pessoas dizem que tinha que acontecer e outras pessoas dizem que eu fui brasileira em uma vida passada. Eu acho que eu estava procurando o meu lugar, que na França eu não achava. Viajei de mochilão para a América do Sul toda e eu gostei muito do México, fui para a Venezuela, mas não me identifiquei. Quando eu cheguei ao Brasil, eu me senti em casa. Então eu acredito que fui brasileira em uma vida passada.

Foto: Pedro Heinrich/CRL

Que autores tu destacaria na tua editora e o que está buscando publicar em um futuro próximo?

Eu gostei muito, durante um período, dos escritores regionalistas. Porque apesar de ser uma realidade muito diferente da minha – eu moro em Paris, nunca fui morar no campo –  se tinha uma poesia nos campos de cana-de-açúcar. Publiquei alguns desses autores, como Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, mas hoje em dia me interesso mais pela literatura contemporânea, acho muito interessantes os escritores afrobrasileiros. Publiquei a Conceição Evaristo, que pessoal e profissionalmente foi um encontro muito bom, eu aprendi muito com ela e eu acho que sua obra tem um lado poético muito forte e também um engajamento político. Quando um livro pode combinar engajamento político e qualidade literária, é um livro perfeito. Eu publiquei três livros dela e estou à espera do próximo romance. Provavelmente vou lançar uma coleção de ensaios e provavelmente também vou publicar a Djamila Ribeiro. Ela tem um posicionamento, um ativismo que eu acho interessante, sobretudo nessa perspectiva de cada um se conhecer mais.

Estamos vivendo um momento de valorização da autoria negra brasileira, mas com a ressalva de que é preciso dar continuidade, para que não seja passageiro. Como tu avalia esta questão?

Espero que não seja só uma moda. Por exemplo, quando você vê a literatura marginal na França, foi um pouco uma moda, mas no Brasil não, estão escrevendo há 15 anos e acho que não vão parar. Então espero que, para a literatura afrobrasileira, vai ser igual. Aqui também há a “sorte” entre aspas de ser uma maioridade, os negros são 50% da população, sendo que na França, os negros são mais ou menos uns 10% da população, então é claramente uma minoridade. Mas eu acho, hoje em dia, que a geração Y não aguenta mais ficar sem ser ouvida, então tenho certeza que o movimento não vai parar, apesar do Bolsonaro falar que não acredita em minoria. Vamos ver o que vai dar, mas tenho muita fé nesses movimentos.

No teu romance, “Tatou”, tu coloca tua vivência enquanto mulher negra. Tu acredita que todo artista deve ser político?

Acredito que sim. Acho que talvez seja uma questão de gosto, mas eu estava com a Conceição Evaristo na França, a gente fazia uma turnê e foram dez dias muito intensos. Quando a gente foi voltar para Paris, tínhamos quatro horas de trem, e eu fui ler um livro sem o tema da escravidão, da desigualdade. Fui até a estação e comprei o livro da Elena Ferrante, que fez um sucesso extraordinário, eu quis ler o que escreveu uma mulher que vendeu dois milhões de livros. Li e achei sem nenhum interesse. Bem escrito, a história de duas meninas, tudo bem, mas achei que, por exemplo, a autora poderia ter falado do papel da mulher na Itália dos anos 1950, ela não fala.

Acho que “Tatou”, na verdade, fala de uma mulher negra na França, mas com toda a dificuldade que ela tem, sobretudo, de achar a sua negritude. É um livro sobre o caminho até a negritude. Porque essa mulher é miscigenada e criada por uma mãe branca, então a negritude não veio pela família, pelo carinho do pai, foi mais pelo olhar do outro. O outro sempre colocava ela no papel de mulher negra e ela, criada por uma mãe branca, não entendia muito bem o que era isso. Então, no começo do livro, ela tem muita raiva justamente e vai ser seu caminho pessoal e ela vai achar o caminho da negritude indo para o Brasil e descobrindo o movimento do sarau. Tem muita coisa de mim dentro dele, no sentido de que eu também descobri o movimento do sarau, que me comoveu muito. Mas é ficção total, a mulher é riquíssima e eu não sou rica.

Como o mercado editorial vê os autores brasileiros e como os franceses estão recebendo esses autores?

O problema é essa política de exportação que o Brasil fez nos últimos 40 anos, o mito do paraíso racial, da democracia racial, um povo cordial e festivo. O Jorge Amado, que é um escritor que eu gosto, muito fez muito mal para a literatura brasileira. Como ele é quase um dos únicos clássicos que os franceses conhecem,, eles pensam que a literatura brasileira é desse tipo. Então muitas vezes, antes das férias do verão, as pessoas vêm me procurar na feira e elas me pedem um livro para ler na praia. Ou estamos em pleno inverno e elas pedem “me dá um pouco de sol”. Então ainda tem essa impressão da literatura brasileira, que ela vai ser calorosa, exótica, vai ser uma leitura fácil. Se o escritor fosse super intelectual e  falasse de uma família de São Paulo, não é a imagem que o francês tem do Brasil.

Realmente, eu tenho que batalhar muito contra essas imagens, contra esses estereótipos. Os livros que eu vendo muito são os livros sobre favela, porque eu sei, de um ponto-de-vista comercial, que o título é bom, que o francês gosta da favela… assim meio exótico. Eu espero atrair ele com esse título mas eu acredito que, depois, o que tem dentro vai desfazer um pouco esse preconceito e ele vai ter mais a imagem da favela e menos a imagem da Globo. O meu trabalho realmente é um pouco pisar em ovos, no sentido de que os franceses têm uma expectativa, e eu não posso decepcionar. A ideia é equilibrar essa expectativa com uma ética profissional, que é mostrar o Brasil como eu conheço e como eu amo.  

 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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