No RS e no Brasil, culturas indígenas vivem processo ainda tímido de valorização pública

Reportagem: Thaís Seganfredo
Foto de capa:Fernando Silva/prefeitura de Maricá-RJ

Tarde quente de abril. Na rua dos Andradas, uma das principais do centro de Porto Alegre, artesãos indígenas formavam uma fila de cestos de diversos tamanhos e cores, que anunciavam a chegada da Páscoa, período em que a cestaria indígena é bastante procurada. A alguns metros dali, uma onça talhada em madeira, vasos de cerâmica, cestos e outros objetos Mbyá Guarani e Kaingang – etnias indígenas presentes do estado – se destacavam no saguão do histórico prédio do Memorial do RS, enquanto a  kujá (xamã) Kaingang Iracema Nascimento dispunha seus artesanatos em um mesa.

Um pouco mais tarde, no auditório do Memorial, Iracema deu início à mesa de abertura do Abril Indígena 2019: conhecimentos e territórios tradicionais, que contou com uma inédita presença de lideranças e jovens Kaingang e Mbyá Guarani em um evento promovido por instituições estaduais de cultura. Aberto para visitação até 31 de maio, o Abril Indígena é realizado em conjunto pelo Museu Antropológico do RS, Arquivo Histórico do RS, Memorial do RS e Museu Arqueológico do RS. Peças arqueológicas milenares e contemporâneas e itens documentos e imagens integram a mostra, além de debates e exibição de filmes.

Iracema Nascimento em filme da mostra Tela indígena (foto – divulgação)

Com uma reza Kaingang, Iracema pediu que “nosso criador nos abrace, abra um bom caminho e perdoe os erros que nós, humanos, cometemos”.  O cacique Mbyá Guarani da aldeia do Cantagalo, Jaime Vherá Guyrá, Viviane Kaingang, estudante de Direito da UFRGS, o branco Rodrigo Venzon, coordenador do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, e a também branca Cida Bergamaschi, mediadora e professora da FACED/UFRGS, completaram a mesa, que teve como foco o conhecimento e os saberes indígenas.

Com exemplos, Jaime explicou que a ancestralidade e a espiritualidade são os dois eixos do conhecimento indígena. “é através da reza dos mais velhos que nós temos esse conhecimento, de medicina tradicional, dos territórios também”, disse o cacique, questionando a apropriação superficial dos saberes, principalmente da medicina tradicional, pelos brancos. “Os juruás não sentem a medicina tradicional, porque ela sempre está acompanhada da espiritualidade”.

Artesã Guarani na Aldeia do Cantagalo (Anselmo Cunha/Nonada)

A kujá Kaingang resumiu, ao narrar alguns casos em que não-indígenas a procuraram e mudaram por conta própria as doses de medicina receitadas por ela: “é preciso ter fé”. Em consenso, tanto os Kaingang quanto os Mbyá Guarani entendem que os brancos, muitas vezes, acabam desrespeitando os saberes ancestrais por não os compreenderam em sua totalidade.

Esses saberes, ressaltou Venzon, são fruto da interação durante milênios desse povos com determinados ambientes e das próprias pesquisas dos povos com relação à fauna e a flora, contribuindo, dessa forma, para a biodiversidade. Quando incluídas no âmbito acadêmica, é necessário que sejam preservados os direitos autorais tanto do sábio indígena que detém o conhecimento em questão quanto os saberes compartilhados pelo povo, resguardado os usos indevidos”.

Ausência é a marca das políticas culturais indígenas no RS

No Rio Grande do Sul, eventos como o Abril Indígena resgatam, em um movimento institucional ainda incipiente, esse protagonismo dos Kaingang e Mbyá Guaranis na cultura gaúcha. No mesmo período, a Fundação Ecarta, um dos centros culturais da capital, também promoveu um debate com a temática. No Memorial, as lideranças da mesa contestaram o “Dia do Índio”, alegando que a data é, geralmente, o único período do ano em que as questões são visibilizadas por instituições e órgãos do poder público. Para Jaime, “a data deve ser relativa aos massacres”, criticou. A kujá Kaingang também pediu aos museus gaúchos uma maior abertura para que os jovens indígenas possam realizar suas próprias pesquisas em âmbito acadêmico. 

Cerâmica guarani no acervo do Museu Arqueológico do RS (Foto divulgação)

Apesar de iniciativas de realizadores e coletivos culturais, como a mostra de cinema Tela Indígena, que já teve três edições com financiamento do extinto Ministério da Cultura, são raros os incentivos e políticas estaduais voltadas às culturas indígenas, bem como às expressões artísticas desses povos, como o artesanato e a música. O Fundo de Apoio à Cultura, mecanismo de fomento direto do Estado, por exemplo, não contemplou nenhum projeto com esta temática nos últimos cinco anos, conforme levantamento da reportagem.

No Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Estadual (Iphae-RS), nenhum dos bens tombados tem relação com a cultura indígena. O Iphae afirmou à reportagem que “Objetivamente, não existe nenhum registro de patrimônio imaterial, tanto de povo indígena como de povos não indígenas,  até o momento no RS pelo IPHAE”, uma vez que a regulamentação do decreto 13.678, sobre o patrimônio cultural imaterial, ainda está sendo planejada. A preservação de objetos milenares e contemporâneas das etnias indígenas que viveram e vivem no estado está à cargo do Museu Antropológico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, e do Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, em Taquara.

Preservação de territórios é prioridade

Foto Mídia Ninja

A questão dos territórios é tida como fundamental para a preservação das culturas e dos saberes dos 305 povos indígenas do país, falantes de 274 línguas, segundo o IBGE. Como destaca a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “quando se fala do valor da sociodiversidade, não se está falando de traços culturais e sim de processos. Para mantê-los em andamento, o que se tem de garantir é a sobrevivência das sociedades que os produzem.”

Nesse sentido, a Constituição de 1988 é considerada um marco na questão territorial e da diversidade cultural, conquistado após mobilização dos indígenas. O artigo 231 institui as Terras Indígenas (TIs), garantindo a posse dos territórios e o uso exclusivo de áreas em que possam exercer seus “usos, costumes e tradições.” Conforme o dispositivo, cabe à União o dever de demarcar as terras e protegê-las, de modo que os indígenas possam manter “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”.  

Ainda que a questão não tenha sido superada nos anos anteriores, principalmente devido à pressão da bancada ruralista, o acirramento se agravou com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), que vem adotando medidas anti-indigenistas. As ideias de “integração” que o presidente tem pregado também têm sido contestadas, uma vez que vão contra a Constituição. O Acampamento Terra Livre, realizado há 15 anos no mês de abril, deve levar nesta semana mais de 3 mil indígenas de diversas etnias a Brasília, encontro que foi criticado por Bolsonaro.

Quando se fala especificamente em políticas públicas de cultura, avanços foram conquistados com a criação da Secretaria da Diversidade Cultural, no extinto Ministério da Cultura, na esteira do conceito antropológico de cultura adotado pelo então ministro Gilberto Gil, que passou a considerar como cultura também os elementos, costumes e tradições de um povo, para além das expressões artísticas.

Kuarup na Aldeia Ipatse, da etnia Kuikuro, no Parque Indígena do Xingu (MT). Fotos Janine Moraes/MinC

O Ministério promoveu editais como que promoveu editais como os Pontos de Cultura Indígena e criou, em 2010, um Plano Setorial Para as Culturas Indígenas. Nos últimos anos do governo Dilma, no entanto, essas políticas já estavam praticamente abandonadas devido à crise econômica. Agora, com o decreto de Bolsonaro que acaba com os colegiados, o Conselho Nacional de Políticas Culturais, responsável pela formulação e deliberação de políticas da área, tem futuro incerto e, consequentemente, o colegiado indígena do Conselho. 

Para o escritor Daniel Munduruku, nos últimos 15 anos, com uma maior valorização e a entrada de indígenas nas universidades, “os indígenas capturaram a essência de uma política cultural que possibilitou que eles se percebessem capazes de usar esses instrumentos para difundir suas ideias”.  O escritor ressalta que os estadistas não estão preocupadas em desenvolver políticas públicas que sejam dignas das populações indígenas ou menos favorecidas de uma maneira geral. “ O brasileiro nunca está aqui, está sempre querendo ser alguém que ele não é e que nunca vai ser, porque a vocação do Brasil é ser ele mesmo. Se nós tivéssemos uma sociedade mais consciente da sua identidade, nós certamente teríamos espaço para uma educação digna, uma saúde digna, a demarcação dos territórios.

Tava Guarani (Daniele Pires/Iphan)

Entre as políticas de reconhecimento das culturas indígenas, o trabalho do Iphan vem no sentido de garantir a salvaguarda de bens, expressões e saberes brasileiros, no âmbito da “identificação, documentação, investigação, proteção, valorização, promoção, transmissão e revitalização desse patrimônio”, segundo o Iphan.  Seis de todos os bens registrados pelo Iphan são indígenas, entre eles a Tava, Lugar de Referência para o Povo Guarani, registrado em 2014 em São Miguel das Missões, além da Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, Cachoeira de Iauaretê – Lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri, Ritual Yaokwa do Povo Indígena Enawene Nawe e da Ritxòkò – Expressão Artística e Cosmológica do Povo Karajá & Saberes e práticas associados aos Modos de Fazer Bonecas Karajá.

 

Compartilhe
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Comunidades tradicionais Processos artísticos Reportagem

Primeira rede de cineastas indígenas reúne produções de mulheres nos diferentes biomas do Brasil

Direitos humanos Reportagem

Em ano eleitoral, cerceamento à liberdade artística segue no Brasil

Políticas culturais Reportagem

Primeiro Plano Nacional de Cultura chega ao fim com dados inconsistentes e 3 metas cumpridas