Caminhos cruzados: trajetórias dos trabalhadores da colheita da maçã em Vacaria

por Tiago Fedrizzi

Há aproximadamente três meses, desembarquei em Vacaria, município do Rio Grande do Sul, para dar início ao trabalho de campo do projeto de pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Entre outros fatos, o trabalho pretende compreender e analisar o fenômeno de migração temporária de trabalhadores para a colheita da maçã na região. Quem são, de onde vêm e para onde vão estes viventes, que cortam estados na busca de um trabalho temporário? “Quem muito viaja tem muito que contar” coloca Walter Benjamin e portanto muitas histórias poderiam ser contadas pelos narradores-trabalhadores nos quais pude conversar, cabendo aqui trazer uma pitada das realidades vividas e observadas a campo.

Na companhia da minha bicicleta – mesmo às vezes causando certo estranhamento e desconfiança por parte dos trabalhadores e proprietários dos pomares – pude permear e circular entre ambientes-chave como rodoviária, pomares de maçã e alojamentos de três diferentes empresas, conversando e entrevistando alguns destes sujeitos, traçando suas trajetórias, dificuldades e aspirações futuras, sentindo na pele o trabalho árduo do dia-a-dia na colheita. As entrevistas foram realizadas no próprio pomar, durante a colheita, bem como nos momentos de descanso e lazer nos alojamentos.

No entanto, os momentos mais ricos se deram em conversas informais enquanto, abaixo de chuva, abaixo de sol, enchíamos os “bocós” (assim chamada as sacolas de fundo falso usadas para a colheita com capacidade de até 20 kg da fruta) de maçã para cumprir as metas, onde ao mesmo entrevistava e era entrevistado. Em tempos de disparidade e de retrocessos em relação aos direitos dos trabalhadores, valorizar o trabalho braçal sem o qual a engrenagem do desenvolvimento se trava, dando visibilidade aos que estão à margem da sociedade, me parece um pontapé na busca de melhorias para as condições de trabalho.

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A fruta que leva cerca de 10 mil pessoas a Vacaria (Foto Tiago Fedrizzi)

Vacaria, conhecida como terra da maçã, é um município que se assemelha muito às cidades do interior do Rio Grande do Sul no que diz respeito às estruturas de comércio e produção agrícola. O que modifica as tradicionais disposições deste cenário é encontrar, em determinados períodos do ano, pessoas pelas ruas e esquinas, que se movem com parte de seus pertences pelo espaço, na busca de empregos.

Entre os meses de janeiro a maio, a cidade assume características peculiares, com a chegada de trabalhadores de todo o Brasil para a colheita da fruta. O processo é envolvido por uma diversidade de grupos sociais. Agricultores familiares, imigrantes, indígenas, trabalhadores da cidade, e principalmente trabalhadores do interior do Rio Grande do Sul que, por questões que permeiam estratégias de reprodução social e econômica, migram temporariamente para Vacaria. O município de aproximadamente 65.000 habitantes tem na atividade agropecuária uma das principais bases econômicas. Entre 10 mil e 15 mil safristas chegam à cidade na época da colheita.

José Carlos Raffo, que em Santana do Livramento trabalha como pedreiro, atravessa o estado há 15 anos para trabalhar na maçã. “Na verdade é o meu sustento, lá na minha cidade não tem serviço e sem trabalho a gente não faz nada né?” respondeu quando questionei se este tempo trabalhando no pomar seria um “extra.”

Parte dos trabalhadores são recrutados em seus locais de origem diretamente pela empresa ou por empreiteiros, que são os agenciadores que estabelecem a ponte entre os trabalhadores e a empresa. Uma grande parte dos trabalhadores vem por conta, sendo a rodoviária o principal ponto de referência. O piso salarial atual da categoria é de R$ 1227 por mês, havendo a possibilidade de estabelecer um acordo entre o trabalhador e a empresa por rendimento, ou seja, após alcançar a cota estabelecida, o trabalhador pode ganhar um “extra” pelo colhido.

Zé, de Vacaria, é um dos habitantes da cidade que se juntam aos safristas (Foto Tiago Fedrizzi)

O processo de modernização da agricultura iniciada no princípio dos anos 60  – através da mecanização agrícola, pelo uso intensivo de fertilizantes de base sintética e agrotóxicos sobretudo estruturados na tecnologia da engenharia genética – substituiu, de fato, grande parte da mão de obra humana pelo maquinário. No entanto, nos pomares de maçã este trabalho manual é (ainda) indispensável nos diversos manejos envolvidos como a poda, arqueamento dos ramos para melhor produção, raleio de frutos para conseguir frutos maiores e sadios e na colheita propriamente dita da fruta.

Segundo o presidente da Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã (AGAPOMI), José Sozo, mil hectares de maçã empregam, em média, 550 trabalhadores por ano envolvendo os mais diversos trabalhos. Porém, mesmo que indispensável, a mão de obra é tida atualmente como grande limitante, sendo necessário ir cada vez mais longe para encontrar a demanda necessária para a colheita. Dados referentes ao Censo Agropecuário de 2006 demonstram que dos 184 estabelecimentos agropecuários que contrataram trabalhadores temporários durante o ano de 2006 em Vacaria, 118 destes contrataram para a tarefa da colheita.

Entre outras consequências, cria-se uma força de trabalho circulante. Os trabalhadores residem em muitos lugares e vencem longas distâncias geográficas e culturais. Lauro, 42 anos, é de Minas Gerais, mas sua família reside na Bahia. Ele trabalhou a vida toda como armador de ferragem e pela primeira vez resolveu vir a Vacaria, empolgado pela propaganda feita da possibilidade de arrecadar dez mil reais em três meses de trabalho. “O que a gente ouve da colheita da maçã é que se ganha muito dinheiro em pouco tempo, mas chegando aqui eu não acho que ganha esse dinheiro todo. Pra trabalhar na maçã, como diz a música aquela, “é preciso saber viver”, não é fácil, mas tá sendo uma experiência boa”, comenta.

(Foto Tiago Fedrizzi)

A qualidade e a quantidade da fruta está diretamente ligada às condições climáticas como temperatura, umidade e ocorrência ou não de granizo, causando variações que refletem no rendimento e consequente renda na colheita. A viagem até o sul é colocada por ele como uma “aventura”, pois o dinheiro não foi suficiente até chegar o destino. Lauro ficou hospedado em albergues e fez alguns “bicos” para dar continuidade na viagem. Sobre as adversidades enfrentadas, o trabalhador comenta que o que mais dói é saudade longe dos filhos e o frio: “ cê é doido, de manhãzinha na hora de levantar, o peão toma café, volta pra cama, fica mais um minutinho e só vai pro ônibus na hora de ir pro pomar”.

Desde o início dos anos 90, a utilização de mão de obra indígena nos pomares tem aumentado de forma crescente, pelo fato do indígena possuir identidade coletiva. A baixa rotatividade e a permanência durante os meses da safra, mesmo que muitas vezes contrariado, é uma das características colocadas pelos patrões como de interesse por contratar estes trabalhadores. Para a safra 2019, aproximadamente 3500 indígenas, entre eles Guarani-kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul, vieram para a colheita da maçã no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, resultado de uma parceria estabelecida entre órgãos públicos e entidades indígenas.

A responsável pelas contratações é a Fundação do Trabalho de Mato Grosso do Sul (Funtrab) fazendo a intermediação com as empresas. A organização social é, de fato, central na busca e manutenção dos direitos trabalhistas, entretanto a questão é muito mais complexa, pois a formação deste “exército de reserva” de mão de obra é consequência de uma luta muito mais antiga pela reivindicação de acesso aos territórios tradicionais, ficando cada vez mais restrito o acesso à terra, ocasionando o processo de “enxameamento”, ou seja, a dispersão das famílias que antes habitavam um território comum maior para pequenas áreas dispersas.

Acidentes de trabalho são comuns na colheita (Foto Tiago Fedrizzi)

Diante desta realidade, os trabalhadores que migram para Vacaria, enxergando na maçã uma oportunidade de impulsionar em direção a uma melhor qualidade de vida, já se deslocam em contextos economicamente instáveis e do ponto de vista social e cultural conturbadas. Na realidade aqui colocada, esta mobilidade temporária de trabalhadores produz uma sociedade cuja construção dos territórios se dá a partir do movimento onde os pomares são reflexo deste mosaico de encontros e desencontros de distintas realidades.

No grupo de haitianos que está trabalhando em um dos pomares que visitei, está Júnior Chaves, refugiado que adentrou no Brasil pela fronteira amazônica no Acre, passou pelo Mato Grosso do Sul até chegar em Curitiba. Na cidade paranaense, trabalhando na construção civil, ficou sabendo através de amigos da possibilidade do trabalho na colheita. Juntamente com sua esposa, há três anos, encontraram em Vacaria uma possibilidade para ganhar a renda. Entre palavras em português e francês, comenta que “o futuro só deus que sabe” e com um sorriso de orelha a orelha, anuncia que em breve estará nascendo em Vacaria seu segundo filho, tendo neste emprego a possibilidade de ter as condições necessárias para dar a qualidade de vida esperada para a família.

A intersecção de distintas realidades, no entanto, cria assimetrias e conflitos entre os sujeitos. O psicológico é levado ao extremo, testando o limite de cada um e cada uma. Álcool e outras drogas são escapes facilmente acessados nos momentos de folga, com aumento intenso da prostituição. Tratando-se de um ambiente extremamente masculino, situações de brigas dentro e fora dos alojamentos ocorrem com certa frequência. Os corpos que carregam estas marcas de vida, violência e de trabalho, carregam também a resiliência de seguir com o objetivo inicial de quando chegados: levantar o dinheiro necessário, buscando melhorar a qualidade de vida e, preferivelmente encontrar melhores condições em seus locais de origem.

Manuel, de Pernambuco, Júnior Chaves, do Haiti e Léo, de Belém, integram o mosaico cultural que transforma a cidade (Foto Tiago Fedrizzi)

Outro fator extremamente delicado e questionado é o uso intensivo de agrotóxicos na cultura da maçã, chegando a ultrapassar 40 pulverizações durante o ano. Obviamente, devem (ou deveriam) ser respeitados os períodos de carência, que é o intervalo de tempo entre a última aplicação do agrotóxico e a comercialização ou consumo do produto. O período varia de acordo com o princípio ativo e regulamentado pela Lei 7.802/89, conhecida como Lei dos Agrotóxicos, de modo a garantir uma fruta segura e sem resíduos. Além do período de carência, distâncias mínimas entre a pulverização e o local onde há a presença de trabalhadores são estabelecidas para evitar contaminação.

Passa que nem sempre as condições de vento e temperatura são respeitadas para a pulverização, sendo possível sentir as gotículas da deriva atingindo a pele mesmo a quadras de distância, desencadeando alergias  e problemas respiratórios, conforme relatado por alguns trabalhadores.

Acompanhei uma turma de seis trabalhadores numa tarde de trabalho no pomar e, na espera da chegada do trator com as caixas vazias para retomar a colheita, o trabalhador que enrolava um cigarro de palha me chamou: “Tá vendo esse pozinho na fruta? É pra madurar a maçã, isso que dá dor de barriga. Mas tem mais uns 20 remédios que colocam na fruta”. Diversos estudos comprovam que a exposição contínua aos agrotóxicos pode acarretar em sérios problemas futuros de saúde.

Pulverização de agrotóxico é um dos grandes problemas do trabalho (Foto Tiago Fedrizzi)

O processo migratório de trabalhadores temporários é contínuo e cada vez mais constante devido, em parte, à expansão dos monocultivos de grãos tanto sobre as áreas antes cultivadas por agricultores familiares quanto em territórios indígenas, impactando nas formas tradicionais de práticas agrícolas e culturais. Além do mais, a baixa oferta de emprego nos locais de origem aliadas à baixa escolaridade e instrução dos trabalhadores – que, desde cedo, trabalham para ajudar nas despesas domésticas -, tendem a destinar a força de trabalho para serviços que não demandam alta qualificação como no caso da colheita da maçã. Embora muitos não tenham tido o privilégio de acesso ao ensino escolar, dizem ter estudado na “escola da vida” e carregar consigo conhecimentos únicos e trajetórias de vida que merecem ser valorizados.

O que está em jogo perpassa sim, questões econômicas e remunerações justas, mas muito mais do que isto envolve horizontes de reprodução cultural e social da vida humana. Relações de complementaridade são estabelecidas entre setores e grupos sociais colocados até então de forma dicotômica, por um lado a cadeia produtiva da maçã demandando mão de obra. Por outro, assalariados rurais, sejam eles frentes de trabalho do Movimento sem Terra (MST) ou trabalhadores urbanos, ofertando força de trabalho. O fato é que todo este fenômeno migratório e de mobilidade é resultado de um projeto muito maior de desenvolvimento encabeçado, em parte, pela modernização conservadora, que acabou gerando assimetrias, refletindo em desigualdades encontradas atualmente pelos encontros e desencontros de vários caminhos.

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