Dá licença, meu branco, por obséquio: reflexão sobre os dialetos branco e negro em “Escritor branco”, de Porta dos Fundos

Miguel Ângelo Andriolo Mangini
Victor Rafael Gonçalves Bento*

Foto: O escritor James Baldwin (crédito reprodução)

“Dá licença, meu branco!” é o título de um dos ensaios mais argutos do poeta e crítico Ronald Augusto, incluído na sua obra ensaística Decupagens assim (2012). Seguindo a lógica machadiana de “pegar o leitor no contrapé”, isto é, ir contra as convencionalidades até então constitutivas da formação do leitor, nesse ensaio, Augusto desdobra a obra infantil de Monteiro Lobato para lê-la principalmente em sua perpetuação do racismo-amigo brasileiro que ele denomina como “preconceito civilizado” (p. 28). Num outro ensaio do mesmo título, chamado “Peixes comem olhos azuis”, o crítico interpõe uma desconfiança a todo elogio do branco ao fazer artístico do negro. Diz Ronald: “As louvações, neste caso, têm fundo culposo; se efetivam sem que possamos lhes prever as consequências. Desvelam a imprudente face do preconceito” (p. 22).

Enquanto que muitos veem nos personagens negros de Lobato não a explícita marca do racismo brasileiro, mas sim uma referência inocente do autor à sua época “tal como era”, de modo que o racismo ali fosse absolutamente escusado, percebe-se que sua obra e leituras dela contribuíram para manter as estruturas do racismo brasileiro em plena funcionalidade. Fechar os olhos para o racismo em Monteiro Lobato como uma questão marginal em relação ao suposto imenso valor estético da sua obra é, bem, fechar os olhos para o racismo. Como lembra Augusto, os significados dos nomes “Tia Nastácia” e “Tio Barnabé” têm acepções que remontam aos estereótipos ou de imbecilidade do negro, ou de ocupação de baixo cargo[1].

A resistência crítica em relação à obra de Lobato, muitas vezes tornada secundária por ser considerada como uma redução de um autor “primoroso”, revelaria, na verdade, a desconstrução da cordialidade daquele público brasileiro que recebe obras tematicamente racistas. Essa resistência e desconstrução só podem se dar com o espaço do negro na literatura ou, mais objetivamente, com uma literatura negra.

A problemática que se delineia com o simples “representar o negro” na literatura se dá porque, embora se tente abordar o negro no espaço da literatura, sua função última será tomada pelo viés da branquitude, tratando-o em relação de diferença e como um outro, e dessa forma criando um “problema negro” não resolvido e disponível para a ficção do branco, “que à força de tanta reiteração (ardis de séculos e simbologias duvidosas) nos faz ratificar sua existência: aprendemos a temer infantilmente a África-tipo, feérica, selvagem e bela, bárbara e canibal […]” (AUGUSTO, 2012, p. 31). Ou seja, que essa iterabilidade, segundo a lógica de Jacques Derrida, opera no sentido de reproduzir ideologicamente um discurso branco-ocidental já muito saturado do signo “África”. Portanto, se entendemos que “o negro” como “representação” na literatura branca é tido sempre nesse limite da diferença em relação ao branco, isto é, como essa ideia sempre adiável e nunca de fato presente, citando o conceito différance derridiano, podemos chegar a uma reflexão sobre a recepção do negro enquanto escritor.

Nesse sentido, é exemplar pensarmos o vídeo “Escritor branco” (2019) do canal do YouTube Porta dos Fundos. Na simples inversão da corrente abordagem branca frente a uma literatura produzida por pessoas negras, o vídeo em questão nos revela uma série de códigos raciais que estão em jogo na recepção da obra do negro. Destacamos que, para a branquitude, a obra do negro nunca é incluída na esteira das “grandes obras”; mas, quando excepcionalmente o é, seu autor é embranquecido (vide a imagem de Machado de Assis).

Tal é o fato que faz, por exemplo, Ronald Augusto se esquivar do elogio do branco, pois para o crítico isso se configura como “apologia purgativa sobre aqueles que parecem ter vivido vidas que poderiam ter sido, mas não foram” (p. 22), ou seja, que mesmo o reconhecimento da obra do negro que vem sempre tardiamente é diminuído numa comparação rápida e pouco analítica. É como quando classificam Cruz e Sousa como o “Dante negro”, na busca de alguma brancura ocidental que neutralizaria os efeitos e a originalidade de sua poesia. Esse complexo de inferioridade que se implanta colonialmente na pele negra também pode ser entendido segundo as considerações de Frantz Fanon a respeito da linguagem do negro antilhano, que após uma visita à metrópole, volta falando o sotaque dos brancos, convencido de que este é mais prestigioso do que o seu.

Em “Escritor branco”, um entrevistador negro questiona um homem branco que acabou de lançar um livro. As perguntas feitas ao escritor, com uma insistência irritante e por isso cômica, tocam na questão da branquitude do branco. O entrevistador deseja saber, por exemplo, como foi que o branco se interessou por literatura, mesmo sendo branco; como o público de brancos recebeu o livro; como o branco aprendeu esse jeito branco de escrever.

Há um efeito cômico na esquete porque o status quo da produção literária é composto, historicamente, pelos homens brancos, de modo que normalmente não interessa a ninguém o fato de que são brancos – já era, em certo sentido, esperado que assim fosse qualquer artista renomado; já com os negros, como vimos acima, são na realidade sempre referidos à cor da sua pele, por não pertencerem ao status quo do ambiente literário. É “surpreendente” que um negro esteja no meio artístico, logo se crê necessário ressaltar sua negritude, toda vez que um negro é entrevistado sobre um livro que escreveu.

O humor está na lógica contrária do vídeo: o negro refere o branco à sua branquitude. No final, o entrevistador aproveita para dizer: “O lugar do branco é onde ele quiser!”, como se, sob qualquer aspecto, os brancos já tivessem sido perigosamente ameaçados de qualquer coisa em razão da cor da sua pele. A crítica do vídeo está em que, se os negros são sempre lembrados de que são negros, os brancos também devem ser lembrados de que são brancos, pois essa é uma condição que lhes confere privilégios.

A certa altura, o entrevistador negro, operando nessa lógica contrária, questiona o entrevistado sobre o seu “dialeto branco”. Diz: “Quando eu te leio, a gente consegue ouvir a voz dos brancos, sabe? É um mergulho mesmo na cultura branca, na coisa do dialeto, das gírias ali, um ‘por obséquio’ e ‘não obstante’ que você põe. Onde você aprendeu o dialeto branco?” A isso o entrevistado responde que foi “na vida mesmo”.

Antes de mais nada, convém ressaltar que esse “dialeto branco” não é mais do que uma maneira tradicional de falar, segundo a crítica que o vídeo produz; “por obséquio” e “não obstante”, hoje em dia, são formas em desuso na fala, exceto por uma população muito restrita de pessoas com alto nível de educação formal, e essas formas também só são aprendidas, pelo menos hoje, por meio da educação formal. Como são os brancos que, via de regra, obtêm acesso a esse tipo de educação (e foram eles também que o produziram), o entrevistador associa essa forma tradicional e arcaica de falar à figura do branco, como se fosse um real “dialeto”, composto inclusive por “gírias”.

É de se observar que esse dialeto é “estranho” para o negro, pois o entrevistador pergunta sobre ele com muita curiosidade, com uma ironia que costura toda a esquete. O negro está dizendo, inversamente, que ele mesmo não pertence ao meio racial e social prestigiado que tem acesso a essa forma prestigiada de falar. Além disso, ligar o branco à fala prestigiosa é uma atitude evidentemente política, pois essa ligação é existente, é um fato de status quo que, por isso, corre o risco de passar despercebido, mas que do ponto de vista racial deve ser revisitado, para que se entenda a razão pela qual é o branco que possui o prestígio. Ocorre que historicamente essa fala só é prestigiosa não por um valor intrínseco, mas por ser produzida pelos brancos de classe social elevada. Nesta parte do vídeo, pretende-se chamar a atenção para o fato. Entramos em uma discussão sociolinguística.

Fernando Tarallo, em “A pesquisa sociolinguística” (1990), oferece alguns conceitos básicos sobre os estudos sociolinguísticos que podem ajudar esta reflexão. Saussureanamente, a langue é, grosso modo, um sistema absoluto, pois a comunicação verbal humana é dotada de estruturas universais, aplicadas a qualquer idioma e contexto: sempre há um falante que emite sons, recebidos por um receptor como imagens acústicas que são decodificadas em significados. Mas a sociolinguística, a partir de William Labov, procura resgatar o que Saussure não vê como objeto de uma ciência: a parole, coisa altamente inconstante em muitos aspectos, variável de falante para falante.

Se Saussure considerava a fala um objeto caótico e, assim, cientificamente ininteligível, procura-se dar uma sistematicidade a ela. Mesmo se houvesse uma estrutura perfeita, cada falante, como humano, faria um uso idiossincrático e, portanto, não absoluto ou perfeito dela. Há muitas formas de falar uma mesma coisa. Tarallo mostra que cada forma linguística diferente para gerar um mesmo significado é uma variante. Voltando à discussão, entendendo variante em sentido amplo, inclusive no sentido de registros e estilos: existem variantes prestigiadas e estigmatizadas, segundo o sociolinguista.

Por razões históricas, a população negra ficou, de modo geral, condicionada às classes sociais mais baixas, em que se encontram variantes linguísticas específicas. O preconceito contra o pobre e contra o negro se estende para a forma como o negro, nesse caso, fala. Por essas razões, no leque das suas variantes, não constam as formas “não obstante” ou “por obséquio”. Haveria aí outras variantes para essa conjunção adversativa e para esse adjunto adverbial, mas as produzidas pelo “dialeto negro” são estigmatizadas.

Já as prestigiadas são aquelas faladas pelos brancos em contexto formal – Porta dos Fundos até mesmo exagera comicamente o entendimento desse prestígio, pois aquelas formas citadas são altamente incomuns na fala. Os brancos tiveram a oportunidade de aprendê-las, porque sua condição racial e socioeconômica os permitiu; e o escritor, com uma inocência roteirizada estrategicamente, diz que as aprendeu “na vida mesmo”, como se não se desse conta do seu prestígio e, por consequência, do prestígio das variantes que utiliza. Mas a verdade é que, para o branco, a vida muitas vezes é realmente essa possibilidade privilegiada de aprender tais variantes prestigiosas. É também isto que o vídeo acaba por expressar.

Para concluir, Magda Soares (2001), relendo a decisiva contribuição de Labov para os estudos linguísticos, mostra que as pesquisas do linguista Bernstein por muito tempo careceram de uma resposta mais adequada à realidade do que a “privação linguística” para explicar o fracasso escolar de pessoas de baixa condição econômica, moradoras de guetos e, em sua maioria, negras. Para Bernstein, o fracasso escolar estava ligado ao fato de os falantes não terem tido contato com o “dialeto padrão”.

Labov, por outro lado, contraria-o argumentando que o fracasso ocorre desde a organização da escola à organização da sociedade, e que o dialeto não padrão falado pela comunidade não diz respeito a uma “privação linguística”, o que corresponderia dizer que tal dialeto é precário e mal estruturado, inferior; antes, é um dialeto rico em variedade e deve ser analisado como tal, consistente e perfeitamente funcional no meio social em que existe. Contra o estigma que tem sua raiz na condição social e racial, Labov ainda leva essa proposição adiante a ponto de afirmar que advém do padrão linguístico uma má estruturação e a pouca contribuição para a linguagem, isto porque pessoas de classe média tendem a simplificar construções gramaticais e privilegiar a comunicação escrita em detrimento da oral. É nesse sentido que Soares, ressaltando o conceito de diferença, conclui que para Labov pessoas que estão na base da hierarquia social “narram, raciocinam e discutem com muito mais eficiência que os pertencentes às classes favorecidas, que contemporizam, qualificam, perdem-se num excesso de detalhes irrelevantes” (p. 47).

Apesar do estigma que recai sobre pessoas negras e de baixa renda, o dialeto e as variantes não padrão, tal como utilizados pelos antilhanos referidos por Fanon (2008), possuem uma riqueza gramatical e expressiva tal qual a do dialeto padrão e suas variantes que se impuseram como prestigiosas. Ou, na mesma linha de Magda Soares, a variante não padrão é até mais rica que o próprio padrão, pois a variedade no uso da fala é composta de uma complexidade da própria vivência dos falantes, e o padrão, no caso da norma culta, não corresponde à oralidade real, de modo que está condenado à artificialidade.

Referências

AUGUSTO, Ronald. Decupagens assim. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012.

ESCRITOR branco. [S. l.: s. n.], 2019. 1 vídeo. (ca. 3 min). Publicado pelo canal Porta dos Fundos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2s7WTh3IzBQ. Acesso em: 24 out. 2019.

FANON, Frantz. Pele negras, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 194.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 17. ed. São Paulo: Ática, 2001.

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1990.

* Graduandos de Letras-Português da Universidade Federal de Santa Catarina.

[1] “[…] registro aqui a existência do substantivo ‘anastácio’, de onde deriva o nome da personagem, e cuja acepção indica os significados de ‘simples e ingênuo: tolo, palerma’. Também o Tio Barnabé […] recebe um nome-condenação: ‘barnabé’, substantivo masculino que designa ‘funcionário público, especialmente o de baixo nível hierárquico’” (AUGUSTO, 2012, p. 27).

 

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