Qual papel o Sesc e o Estado desempenham na cena artística?

por Cristiane Marçal*
Ilustração: Joana Lira

Assisti ao espetáculo “Preferiria não?”, da Denise Stoklos, em 2012, no Theatro São Pedro. Em dado momento, não me recordo com precisão em qual contexto, a performer solta um comentário que diz muito sobre o cenário artístico no Brasil. Foi algo como “eu não teria carreira se não existisse o Sesc”. A eloquência dessa fala não está apenas no fato de que ela escancara as diversas lacunas deixadas pelo estado na esfera da cultura, mas também na indicação do papel que o Sesc desempenha nesse vácuo. Há muito tempo, ele é um dos mantenedores mais expressivos da produção artística do país. Em muitas cidades do interior, essa lacuna na cena cultural é tão grande que ele se torna mais atuante que o próprio estado.

O peso dessa instituição e a função crucial que ela desempenha no meio artístico são alguns dos motivos pelos quais causou polêmica o resultado do edital FAC Movimento, da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac). Entre as várias propostas oriundas de diferentes membros da classe artística, um projeto de uma das unidades do Sesc do Rio Grande do Sul foi contemplado com uma verba de R$ 100 mil.

Aos que desconhecem a estrutura de funcionamento dos programas de fomento à cultura do Estado, explico. O sistema de fomento da Sedac, chamado Pró-cultura, possui dois mecanismos, a LIC (lei de incentivo à cultura, versão estadual daquela que até pouco tempo se chamava Lei Rouanet) e o FAC (Fundo de Apoio à Cultura). O funcionamento da LIC é baseado na oferta de isenção de impostos para empresas patrocinadoras de projetos culturais. Trata-se de uma via de fomento indireto, já que o valor financiado pertence e é repassado ao artista não pelo estado, mas pela empresa que, por sua vez, receberá benefícios fiscais por isso. Já o FAC é um dispositivo de incentivo direto, ou seja, o estado repassa a verba diretamente para o artista.

Há uma diferença bastante evidente entre os perfis dos proponentes dos dois mecanismos. A LIC costuma ser utilizada por produtoras maiores ou com uma rede de contatos que inclui grandes empresas, o que lhe confere maior potencial de conseguir um patrocinador. No caso do FAC, o fato de o projeto não precisar da aprovação da iniciativa privada torna o recurso mais acessível aos artistas e grupos com projetos culturais de menor porte, pouco atraentes para o marketing de grandes empresas e que tem dificuldade em capitalizar seu trabalho. Ou seja, o lado mais fraco da cadeia de produção artística, que representa a maior parte dela.

Nos gráficos abaixo, é possível visualizar melhor a distribuição dos recursos entre os dois mecanismos.

Fonte: Secretaria Estadual de Cultura, Pró-cultura RR e Conselho Estadual de Cultura do RS
Fonte: Secretaria Estadual de Cultura, Pró-cultura RR e Conselho Estadual de Cultura do RS

A seleção do projeto de uma unidade do Sesc em um edital disputado por artistas e projetos que normalmente tem pouco poder de capitalização foi considerada uma disparidade pela classe. Posso apontar dois motivos. O primeiro é que, nessa situação, o Sesc deixa de ser um mantenedor para ser um concorrente de uma verba curta e muito disputada por um volume grande de projetos de menor porte. A segunda é que essa instituição possui algo raríssimo entre os agentes que atuam no campo da cultura (incluindo alguns eventos e instituições grandes) – ela tem uma receita fixa mensal. Os artistas e projetos culturais de menor porte que concorrem nesse tipo de edital, frequentemente, estão muito longe dessa realidade.

O mantenedor e o precariado

Para ficar mais claro o que essa instituição representa no meio artístico, basta ler uma entrevista com Danilo Miranda, diretor do Sesc-SP, publicada no El País em 2015. Naquele momento, pelo trabalho que realizava e orçamento que administrava, o Sesc-SP, sozinho, era maior que o Ministério da Cultura. A matéria, aliás, afirma que Danilo era considerado um “ministro informal da Cultura”. O comentário elogioso é, ao mesmo tempo, um indício do problema estrutural das políticas culturais no país. “Não somos modelo único, mas o fato de uma instituição como a nossa ressaltar nesse sentido significa que o lado público não está funcionando bem”, disse na entrevista. É claro que existem muitos Sescs dentro do Sesc e provavelmente a receita do Sesc-SP é uma das maiores entre as outras unidades regionais do país. Mas o apontamento aqui é o papel atribuído a ela a partir do que a instituição faz com essa receita.

Para boa parte da classe artística, nada disso é novidade. Trabalhei com produção artística local em Porto Alegre e posso dizer com uma boa margem de segurança que o Sesc é uma das nossas poucas vias para receber um valor minimamente justo por um trabalho artístico. E essa observação é válida para vários setores do campo, das artes cênicas às artes visuais, passando por música e literatura. Nesse ponto, cabe observar que este texto se refere ao status da cena artística antes da pandemia. Neste momento, com a crise da covid-19, a situação está muito mais grave. Mas vou me ater à descrição do cenário que tínhamos quando foi tomada a decisão de participação na concorrência.

Quem não trabalha na área da cultura, talvez tenha dificuldade de compreender a precariedade com que a maioria dos profissionais atua e como é importante receber, em algum momento, um pagamento justo pelo seu trabalho. Percebi isso na primeira vez em que produzi um espetáculo independente. A montagem começou sem nenhum tipo de financiamento, contando apenas com a bilheteria de estreia para pagar todas as contas (atores, diretores, dramaturgia, cenário, cenógrafo, figurino, figurinista, técnicos, produtores…). Porém, o grupo conseguiu encaixar a primeira temporada na programação do Festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc. Isso foi um alento porque sabíamos que o pagamento do cachê pelas apresentações seria determinante para conseguirmos pagar os custos da montagem. Ou seja, tínhamos que fazer um cachê de quatro apresentações, somado à bilheteria desses dias, bancar a criação de um espetáculo inteiro. Quando fechamos as contas, conseguimos pagar tudo e recebemos um cachê de aproximadamente R$ 500 por função e sobrou mais uns R$ 200 para cada um. Foram R$ 700 por três meses de ensaio e quatro dias de apresentações. R$ 700. E saber que conseguiríamos nos remunerar de alguma forma foi motivo de comemoração.

Em outra ocasião, trabalhei na montagem de um espetáculo financiado por um fundo público. Foram seis meses de ensaio e uma temporada de estreia de 10 dias. Por esse tempo de trabalho, os atores receberam o valor de R$ 1750. Por mês de ensaio? Não, por todos os meses mais apresentações da temporada de estreia. Destaco que estamos falando de um projeto bancado por um fundo municipal. Mamata, não é mesmo? Um tempo depois da estreia, essa peça foi contratada pelo Sesc e circulou pelo interior do estado, o que ajudou a compensar um pouco o escasso pagamento inicial.

Essas duas histórias não envolvem artistas iniciantes ou pouco conhecidos no seu meio. Estou falando de pessoas que tem reconhecimento de seus pares, anos de estrada, formação acadêmica e prêmios nas costas.

Citei aqui exemplos do teatro. Mas essa vulnerabilidade financeira se estende para outras produções artísticas. Uma vez, ouvi de uma artista visual a seguinte frase: “às vezes a gente tira do bolso R$ 1500 para uma exposição e não recebe um centavo de volta”. Como boa parte das exposições não cobram ingresso e uma venda significativa de obras não é realidade para todos os artistas, as possibilidades de receita junto ao público num evento como esse ficam restritas, fazendo com que a situação descrita pela artista se repita com alguma frequência. E assim poderíamos discorrer sobre muitos casos semelhantes na música, na literatura, no circo e outras manifestações artísticas.

Como disse uma amiga recentemente, referindo-se às discussões públicas sobre  trabalhadores de serviço de aplicativo, como uber e ifood, “essa história de precariado está presente há muito tempo no setor cultural”.

A prerrogativa da receita fixa

O Sesc pertence ao Sistema S, como é chamado um conjunto de entidades sociais administradas por federações e confederações patronais. O Sesc é o Serviço Social do Comércio, mas existem também outras categorias, como a da Indústria (Serviço Social da Indústria – Sesi) e do Transporte (Serviço Social de Transporte – Sest). Cada um dos serviços é financiado pela categoria que representa. No caso do Sesc, sua receita vem de um pagamento feito pelas empresas enquadradas como comércio que representa 1,5% sobre a folha de pagamento das mesmas. Em contrapartida, esse valores são devolvidos à comunidade em forma de serviço social. Ou seja, a existência da instituição está diretamente ligada à verba recolhida. Se toda a verba do Sistema S fosse cortada, a probabilidade maior é que esse conjunto de entidades deixe de existir.

Não podemos desconsiderar neste texto, é claro, que as ameaças ao Sistema S não são hipotéticas. Essa instituição vem sofrendo consecutivas ameaças do poder público. Recentemente, o governo publicou uma Medida Provisória que reduz pela metade as contribuições para o Sistema S por três meses, alegando que isso ajudaria os empresários durante a crise do covid-19. A MP chegou a ser derrubada, mas o STF restabeleceu o efeito da mesma logo depois. Por isso, a briga pela manutenção do Sistema S é também uma briga do setor cultural. Muitas carreiras como a de Denise Stoklos vão deixar de existir se perdermos esse apoio.

Mesmo com essa redução de verba, o Sesc tem algo que dificilmente um artista tem, principalmente os que concorrem ao FAC – receita fixa. Em Porto Alegre e no interior do RS temos um mercado de cultura muito limitado, o que faz com que sejam muito raros os casos de artistas assalariados. Qualquer pessoa que não possui uma renda mensal (seja para viabilizar o trabalho ou a vida mesmo) e depende inteiramente da volatilidade do mercado para se manter, sabe as dificuldades que esse contexto nos impõe e o quão privilegiado é aquele que possui no horizonte um valor com o qual pode contar. É principalmente com esses profissionais autônomos que o Sesc concorreu. Na lista de contemplados há vários CNPJs MEI, cuja receita anual não pode passar de R$ 81.000.

E a Sedac?

A Sedac tem ciência da situação desde muito cedo. No Fórum dos Colegiados Setoriais ocorrido em dezembro de 2019, antes mesmo do término do período de inscrições do FAC Movimento, a secretária Beatriz Araújo foi informada diretamente pelos presentes que o Sesc pretendia concorrer ao edital. A instituição se inscreveu (com seu CNPJ, ou seja, não havia como qualquer pessoa que passou os olhos pelo projeto não saber quem era o proponente), passou pela fase de habilitação e foi contemplada.

Em entrevista à equipe do Nonada, Rafael Balle, diretor do Departamento de Fomento da secretaria, trouxe alguns dados para expor a qualidade do projeto apresentado pelo Sesc. “Ele prevê uma grande aplicação de recursos para artistas, 60% do valor era só para artistas direto, mais uns 20% para técnicos, mais uma parte de estrutura e divulgação”. Porém, mesmo considerando que a verba recebida irá voltar para o meio artístico na forma de contratação para prestação de serviços, o fato de ela ser usada pelo Sesc se torna uma possibilidade a menos de captação para os artistas. Antes, a classe tinha essa verba mais a do Sesc. Nessa situação, as duas verbas se tornam uma só.
Rafael destaca ainda que “cada edital tem um objeto diferente, critérios de avaliação diferentes, então naturalmente isso vai mudar no próximo”. É o que esperamos.

De qualquer forma, não é proposta deste artigo discutir as questões jurídicas que envolvem o processo (se o projeto passou pelo Jurídico do Sesc e pela fase de habilitação do edital, creio eu que a lei permite essa participação). A ideia é refletir sobre o que esse episódio simboliza.

Não houve um impedimento efetivo da Sedac para que essa situação não acontecesse. Passados vários dias do anúncio de contemplados e mesmo com o pedido de resposta por parte do Nonada, não houve nenhuma declaração oficial pública da Sedac. Assim como a frase de Denise Stoklos, essa postura também é muito eloquente.

Qual papel o Sesc e o Estado desempenham na cena artística?

Tenho um respeito imenso pelo Sesc e o que ele representa para nós, que trabalhamos com cultura. Frequentei seus espaços, trabalhei como produtora e, sem dúvida, se temos ou tivemos um mercado de cultura, o Sesc exerceu um papel fundamental. Posso arriscar e dizer a classe artística de forma geral tem esse carinho e gratidão pela instituição. E foi exatamente essa imagem construída ao longo de muitos anos o motor da polêmica.

A principal argumentação do Sesc, divulgada em nota que segue na íntegra abaixo, é a licitude da participação, afirmando que ela “se dá sempre observando as determinações legais e o enquadramento correto da sua natureza”.

Não sei se é justo que a legalidade do ato seja o principal critério para decidir se a instituição participará ou não de uma concorrência. A lei permite muitas ações que ajudam a manter a desigualdade social, cabe a nós decidir usar esse direito ou não. Além disso, lembro que, embora a decisão de participação na concorrência tenha sido tomada no cenário antes da pandemia, a decisão de assinar ou não o contrato se dá no momento em que vivemos uma crise sem precedentes na história e que atinge em cheio o meio artístico. Claro, não podemos desconsiderar nessa análise o corte drástico pelo qual o Sistema S está passando e sua necessidade de buscar novos parceiros e fontes de receita. Mas também não podemos desconsiderar que a maior parte da classe artística (em especial a que concorre ao FAC) não tem uma verba desse tipo para ser cortada e, no momento, o desespero é tão grande que ela busca no congresso uma fonte mínima de receita. (Leia matéria do Nonada explicando o Projeto de Lei)

Entendo que qualquer ação de instituições que zelam pela cultura, principalmente em um país tão hostil com seus artistas, deveria ser precedida da pergunta “qual papel desempenhamos nesse cenário?”. Toda ação dos agentes de cultura é importante nesse ambiente que sempre foi de extrema fragilidade e que agora, com a crise do covid-19, ficou ainda mais grave. Não sabemos se esse questionamento permeou as decisões que nos levaram a esse momento. Mas, se permeou, certamente a resposta não é a que muitos esperavam.

Nota Sesc/RS:

Movimentar a produção cultural do Rio Grande do Sul é, há mais de sete décadas, um dos objetivos da atuação do Serviço Social do Comércio (Sesc/RS). Sobre a participação em editais como o FAC Movimento, a instituição declara que sua presença se dá sempre observando as determinações legais e o enquadramento correto da sua natureza.

O Sesc/RS incentiva o desenvolvimento da produção cultural gaúcha e fomenta o intercâmbio e o desfrute de bens culturais, acolhendo artistas de todos os lugares do Estado em sua programação, que em grande parte é oferecida às comunidades de forma gratuita, como o próprio Aldeia Sesc Caxias do Sul, contemplado neste edital. Iniciativas como a deste edital público ajudam a reforçar a capilaridade do Sesc/RS em acolher artistas para circularem e subirem aos palcos do Brasil afora. Milhares de grupos circulam pelo País com investimento e realização de projetos da instituição, todos obedecendo editais rígidos com transparência em seus critérios de seleção.

A instituição criada e administrada por empresários do comércio de bens, serviços e turismo, tem caráter privado, não possui fins lucrativos e constitui-se como pessoa jurídica, modalidade na qual foi inscrita no FAC Movimento, que tem ainda o espaço de Pessoa Física reservado para Microprojetos Culturais.

Criada por lei federal, a instituição é intensamente fiscalizada pelos órgãos brasileiros e em seu planejamento anual considera incentivos públicos e privados disponíveis como fundamentais para conseguir manter sua intensa programação. Mesmo neste momento de pandemia, com o rápido avanço das dificuldades em manter sua atividade, o Sesc/RS tem buscado alternativas para manter o apoio à classe artística. Com a ajuda de parceiros, tem sido possível continuar promovendo o fazer artístico, incentivando a preservação do patrimônio cultural do Estado.

 

*Cristiane Marçal é produtora cultural e mestra em História, Teoria e Crítica da Arte. Facebook. Medium

Compartilhe
Ler mais sobre
Comunidades tradicionais Processos artísticos Resenha

Do ventre da árvore do mundo vem “O som do rugido da onça”

Políticas culturais Reportagem

Primeiro Plano Nacional de Cultura chega ao fim com dados inconsistentes e 3 metas cumpridas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *