Novo filme de Lúcia Murat investiga o passado de artistas vítimas das ditaduras na América Latina

Logo no início de Ana. Sem Título, novo filme de Lúcia Murat, a protagonista Stela pesca uma frase de Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf, para explicar seu mais novo projeto aos colegas de teatro: “é provável que a ficção contenha aqui mais verdade que os fatos.” Quando falamos em uma verdade que se quer aniquilar ou, mais precisamente, quando o próprio governo nega os horrores da ditadura cívico-militar que assolou o país, a frase ganha um sentido de urgência. 

Murat, presa e torturada pelo Estado durante a ditadura militar, é autora de outras obras densas sobre o período. A mais conhecida talvez seja Que bom te ver viva (1989), no qual ela ouve histórias de mulheres que lutaram contra o regime no Brasil e pelo qual sofreu ameaças de morte na época do lançamento. 

Acho que muito do que se passa no Brasil hoje se deve a que não houve essa preocupação, ou não se conseguiu trabalhar com nossa memória. A Comissão da Verdade foi um avanço, mas nada depois foi feito. A ficção tem sim um papel importante, mas nada substitui a existência de Museus, da História que deve ser contada”,  comentou a diretora em entrevista por email.

Neste sentido, motivada por cartas trocadas entre artistas latinoamericanas, Stela vai em busca das histórias das artistas invisibilizadas e das mulheres vítimas dos regimes ditatoriais que ocorrem na América Latina entre os anos 1970 e 1980. E é Ana, artista negra, brasileira e lésbica, nascida em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, quem melhor exemplifica essa necessidade por contar a história escondida debaixo dos porões. Afinal, quem é Ana, uma artista talentosa com um futuro promissor pela frente, citada em várias destas cartas? O que aconteceu com ela?

É esta travessia de investigação e descoberta que acompanhamos no filme, cujo roteiro, escrito em conjunto por Lúcia Murat e Tatiana Salem, é livremente inspirado no espetáculo “Há mais futuro que passado”. A motivação das roteiristas foi realizar um road movie pela América Latina, revisitando os locais por onde essas artistas teriam passado. 

Desta forma, à medida que conhecemos mais da vida de Ana, vamos conhecendo também histórias de violência e resistência vividas na Argentina, no México, no Chile e, por fim, no Brasil. “O filme é interessante também porque mostra que, diferentemente do Brasil, outros países latino-americanos se preocuparam em trabalhar com a memória e denunciar as atrocidades cometidas pelas ditaduras”, explica a diretora.

Como avisa Stela ao parafrasear Woolf, em certos casos é preciso contar com a força da ficção para desenterrar os fatos. Ainda em Um Teto Todo Seu, a escritora diz: “De qualquer forma, quando o assunto é controverso – e qualquer questão que envolve sexo é -, não se pode esperar a verdade. (…) Só se pode dar ao público a oportunidade de tirar as próprias conclusões ao observar as limitações, os preconceitos, as idiossincrasias do palestrante”.

É por isso que Ana. Sem Título é, na verdade uma mistura de documentário e ficção, fazendo uso de entrevistas, de reconstruções de cenas e de intervenções artísticas que desafiam o espectador a nunca assistir ao filme de forma passiva. Investigar a realidade foi, aliás, o artifício da equipe (formada quase toda por mulheres) para dar um sentido a este jogo de cena. 

Na era da pós-verdade, pautada pelo negacionismo do próprio governo brasileiro, não deixa de ser alarmante que tenhamos que olhar para os lados a fim de reconhecer nossas próprias feridas. Murat volta-se para a América Latina para nos fazer refletir também sobre como lidamos com a memória – e com o presente. E, a julgar pela filmografia da diretora, que a cada novo lançamento (a exemplo de Praça Paris) se torna ainda mais complexa, nos resta torcer para que a arte continue a encontrar ossos para desenterrar.

Ana. Sem Título está disponível até 4 de novembro na plataforma da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Entrevista com Lúcia Murat (contém spoilers)

Nonada – Além da ficção, há muito de documentário no filme, com as personagens revisitando locais de violência e de resistência na América Latina. Por que a escolha por usar as duas linguagens para contar esta história? 

Lúcia Murat – O filme é livremente inspirado numa peça (Há mais futuro que passado) que já trabalhava com uma mistura de ficção e documentário. Quando eu e a Tatiana Salem Levy escrevemos o roteiro, nós radicalizamos essa ideia pois queríamos  fazer um road movie visitando todos esses lugares da América Latina onde essas artistas tinham vivido . E isso nos fez olhar a realidade política dessa época. 

Nonada – A ideia foi se aproximar do chamado “falso documentário”, um gênero ainda pouco aproveitado no Brasil?

Lúcia Murat – Pesquisei os falsos documentários que já foram feitos (de Woody Allen, de Herzog entre outros) mas em geral eles trabalham sobre comédias , sobre farsas, e o nosso desafio era fazer o híbrido num drama. Sabíamos que o desafio era fazer com que o espectador acreditasse que tudo fosse verdade. A opção foi pesquisar a realidade e com isso passou a não interessar ao espectador o que era elenco, o que era entrevistado, pois tudo no fundo era a “verdade” pesquisada. 

Nonada – Logo no início do filme, a protagonista avisa: “é provável que a ficção contenha aqui mais verdade que os fatos”. No caso da ditadura, essa verdade continua silenciada e debaixo dos porões, mesmo com iniciativas como a Comissão Nacional da Verdade. A ficção tem de fato contribuído para essa visibilidade dos fatos? O que falta em termos de políticas públicas para avançarmos nesta questão? 

Lúcia Murat – O filme é interessante também porque mostra que diferentemente do Brasil outros países latino-americanos se preocuparam em trabalhar com a memória e denunciar as atrocidades cometidas pelas ditaduras.  No Chile por exemplo o filme mostra um Estádio Nacional, que serviu de prisão para quase 20 mil pessoas logo depois do golpe  e que hoje tem uma parte preservada para que todos saibam o que se passou. Museus da Memória foram criados tanto no Chile quanto na Argentina. Acho que muito do que se passa no Brasil hoje se deve a que não houve essa preocupação, ou não se conseguiu trabalhar com nossa memória. A Comissão da Verdade foi um avanço, mas nada depois foi feito. Acho que a ficção tem sim um papel importante, mas nada substitui a existência de Museus, da História que deve ser contada. 

Nonada – Nos últimos anos, a censura à arte se intensificou no Brasil. Nós idealizamos o Observatório de Censura à Arte, que mapeou mais de 50 casos desde o fechamento da mostra Queermuseu. Qual é tua avaliação sobre esse cenário, principalmente com diversos casos acontecendo a partir de 2019?

Lúcia Murat – Acho que além da censura direta a gente deve se preocupar também com a censura econômica que está impedido diversos setores artísticos de se manifestarem. No cinema por exemplo a completa paralisação da Ancine desde que o Governo Bolsonaro assumiu está impedindo a realização de filmes. Como os filmes demoram cerca de quatro anos para serem feitos, nós só vamos perceber essa tragédia daqui a algum tempo. Mas é preciso prestar atenção nela desde agora!

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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