A trajetória ascendente de Gautier Lee, cineasta e racializadora audiovisual

Ester Caetano

Tomada pelo encanto dos desenhos animados, desde criança Gautier Lee era fascinada pela televisão. Cineasta, roteirista, diretora e crítica de cinema apaixonada pelo audiovisual primeiramente no cinema e no videoclipe, hoje até o tik tok carrega narrativas que a fascinam. Assistindo a todos os mesclar de cenas e os embrulhos dos frames das animações, ela se interessou pela atuação e com 17 anos começou a estudar teatro em sua cidade natal, Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. 

No curso, levava a câmera da mãe e gravava sem pretensão os ensaios. “No final do curso, eu peguei esse material, joguei ele no windows movie maker e comecei a editar, daí percebi que gostava muito. Eu me sentia muito bem ficando acordada até às três da manhã editando vídeo e eu nem sabia que aquilo era cinema.” Por diversos motivos, Gautier se mudou para Porto Alegre e se interessou pela grade curricular de um curso que se aproximava com o cinema na PUCRS. Começou então a cursar Produção Audiovisual com bolsa integral pelo Prouni. “A partir disso, eu fui tentando me encontrar, tentando ver que narrativas eram mais interessantes, o que me atraía mais e fiz um pouco de tudo” conta. 

Entrou na faculdade com foco em estudar montagem, edição e se especializar em roteiro. Dentro desse espaço, Gautier relata que foi muito difícil de se encontrar enquanto artista e criadora. Já que a maioria de seus trabalhos eram em grupo, era complexo fazer um projeto que contemplasse a visão de todos os integrantes “Meio que abri um pouco mão da minha individualidade como artista para contemplar essa coletividade do grupo”, diz. A jovem estudante passou por diversas áreas dentro da produção de curtas nos semestres e se afastou do que queria de fato, até decidir que era hora de focar em escrever roteiros. Com essa postura co-escreveu o curta-metragem de horror de seu Trabalho de Conclusão de Curso, Vinil (2017), do qual fala e exalta com maior orgulho. 

Formada, Gautier tomou por consciência o quanto o mercado audiovisual gaúcho era fechado, mesmo sendo considerado o terceiro polo audiovisual do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro e São Paulo. A cineasta encontrou diversas barreiras e dificuldades de se inserir, o que a levou a aceitar todos os convites de assistência: “fiz assistência de produção, assistência de áudio, assistência de edição. Basicamente qualquer assistência que me pedissem para fazer eu estava fazendo”, relembra.

Gautier é uma artista múltipla, desenvolve no campo artístico gaúcho um trabalho que engloba muita diversidade. É também fundadora do Coletivo Macumba Lab, grupo que reúne profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul. O coletivo, que tinha por princípio o estudo de roteiros, hoje ampliou suas atividades e soma quase 50 pessoas,  entre atores e atrizes, produtores, diretores, técnicos de som e fotógrafos.“ O coletivo hoje em dia se tornou uma instituição que é reconhecida e respeitada no meio do audiovisual gaúcho e eu gosto de pensar que a gente tem contribuído para que essas artes audiovisuais sejam mais discursivas.” E não só para ampliar as narrativas. Gautier conta que o coletivo tem grande importância na luta antirracista no estado, “porque é nossa existencia, tudo aquilo que a gente acredita. Quando pessoas negras se unem em prol de algo, já é um grande passo na luta antirracista.” 

Foto – arquivo pessoal

Integrante do Black Femme Supremacy, festival de cinema que tem por base toda a diáspora africana, e também da Organization of Black, relata que especialmente este enriquece sua forma de trabalhar e fazer arte já que existe dentro da organização uma política de feedbacks que ajuda a enxergar, através do olhar do outro, o que poderia mudar em seus roteiros. “Ter essas opiniões diferentes é muito enriquecedor para mim e agora eu conheço bem o que escrevo, conheço bem o meu estilo de escrita”, frisou. 

Em 2019, foi vencedora do Cabíria Prêmio de Roteiro, com o piloto da série “PMS: Post Motherhood Sisters”. O ano marcou o início de uma trajetória ascendente de sucesso, que a colocou também como semifinalista do FRAPA, além do convite para participar do Laboratório de Narrativas Negras da FLUP. Quando vencedora, se “adrenalizou”. Conta que não lembra de uma palavra de seu discurso, apenas dos abraços e de chorar de felicidade. Para ela, ganhar o Prêmio Cabíria foi uma virada de chave profissionalmente porque “foi a primeira grande validação do meu trabalho”, comemora. 

No ano da pandemia, em 2020, seu trabalho rompeu fronteiras e ultrapassou terras brasileiras. Gautier escreveu o longa Love 101, foi selecionada para o curso “Crafting Your Short Film” do Sundance Institute e desenvolveu, no curso TV Writing: Crafting Your Pilot, o projeto de sitcom Telas Pretas, que ficou em primeiro lugar na Gira de Projetos Zózimo Bulbul.  

Teve pela primeira vez a experiência de ser roteirista e, também  diretora do seu segundo curta, de início nomeado como “Um-Oito-Oito” agora como “Desvirtudes” que conta a história de uma estudante de jornalismo negra que, após ser vítima de injúria racial na universidade, precisa lidar com a repercussão do fato. O curta tem inspiração em uma das músicas do Baco Exu do Blues. 

A ideia do filme surgiu depois que Gautier foi representar a colega cineasta Juh Balhego e o filme Quero ir para Los Angeles no Festival de Cinema de Três Passos/RS. Como ela diz, lá encontrou sua turma. Assim, superou uma das dificuldades no início da carreira: encontrar pessoas que embarcassem nas mesmas ideias e no mesmo propósito que ela. “O cinema é feito de forma coletiva e eu não acredito em fazer um filme sozinha, eu já fiz filmes e nunca fiz sozinha. Então encontrar pessoas que estivessem na mesma vibe.”

Gautier Lee é uma cineasta de afetos e sentimentos, transpassa de forma singela que seu modo de  fazer cinema é criando laços e dando as mãos. Ela avalia que sua área de atuação é racista, elitista e misógina. Por isso, tem a necessidade de racializar tudo que a envolve, inclusive sua arte, o que a levou a se identificar como racializadora audiovisual. A cineasta ressignifica a palavra networking e engloba tudo aquilo que é parte da construção de relações. “O meu cinema é um cinema de afeto”. 

Ela consegue trazer essa visão quando conversa sobre filmes e séries, o que traduz na palavra “tom”.  “O tom eu acho que é aquele sentimento que a série/filme te passa. Que você sente que pode ser uma coisa emocionante, tipo This is us, do Dan Fogelman, pode ser uma coisa mais de terror porém com uma pitada de comédia, como Corra, do Jordan Peele, pode ser mais dramática em relações interpessoais como Grey’s Anatomy’s da Shonda Rhimes, pode ser mais voltado a uma (re)lembrança histórica como o documentário Amarelo do Emicida. Então todos esses produtos são diferentes, eles trazem coisas diferentes que são esse tom, o tom que te faz sentir.”  

Nesse ano que se inicia, a cineasta já tem vários projetos em andamento, como a produção de Festival de Cinema: Black Festival. “Não sei se posso falar das atividades que a gente está desenvolvendo, não sei se a minha produtora vai me dar um puxão de orelha depois. Mas a gente está desenvolvendo atividades muito legais, atividade de formação, atividade de premiação”, comenta. Novos filmes também estão em andamento. Em breve, ela  vai dirigir, junto com Kaya Rodrigues, um curta documental sobre o Odilon Lopes, pioneiro do cinema negro. E também já está desenvolvendo um projeto de websérie de comédia. 

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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