Pensando perspectivas decoloniais sobre o folclore brasileiro

Foto: Representação da Caipora (Crédito: Wikimedia Commons)

De histórias em quadrinho à arte das drag queens, o folclore brasileiro e, mais especificamente, as lendas, marcam cada vez mais presença nas produções artísticas do país. Agora, com a estreia da série “Cidade Invisível”, de Carlos Saldanha, que aborda várias dessas lendas para a Netflix, a arena pública das redes sociais tem ecoado questionamentos de indígenas de diversas etnias sobre como as culturas indígenas aparecem representadas.

A jornalista Alice Pataxó criticou a série no twitter. “Até quando se trata de nós, somos os últimos a sermos lembrados e procurados, essa poderia ter sido uma oportunidade incrível de indígenas nas telinhas, mas a apropriação virou primeira opção”, escreveu. Outras questões levantadas nas redes foram a presença de figuras indígenas de forma miscigenada nas lendas reproduzidas, de modo que a abordagem das questões teriam sido realizadas de forma plana e leviana, sem conhecimento de causa, além de o fato de a série ter sido gravada no Rio de Janeiro.

Já o escritor e doutor em Educação pela USP Daniel Munduruku (que entrevistamos em 2017), também entrou no debate através do twitter, mas apresentou outra visão. “Comecei a assistir ‘Cidade Invisível’ para me certificar da narrativa usada. Até agora estou ADORANDO. Uma trama fantástica. Acho que eu poderia escrever um roteiro com a mesma toada. Esta é uma opinião preliminar. Até agora, nada anormal para a linguagem audiovisual”, ponderou. Segundo o autor, é preciso equilíbrio na hora de pensar sobre a introdução de elementos indígenas em produções culturais.

Muitos ativistas indígenas, no entanto, classificam como etnocídio a inserção de elementos das culturas indígenas, em especial a religiosidade, em lendas brasileiras. “Folclore é esvaziamento das espiritualidades indígenas; Seria o mesmo q dizer, Ave Maria faz parte do folclore, mas ninguém fala pq temos a religião de colonização no poder diminuindo as nossas”, afirma a escritora descendente de macuxi Julie Dorrico nas redes. 

Mas o que seria exatamente folclore? De acordo com o folclorista e doutor em Comunicação pela Ufrgs Andriolli Costa, a palavra é um neologismo que engloba um grande guarda-chuva relativo à cultura popular e significa exatamente “cultura ou saber do povo”, em inglês. “Quando esse neologismo é criado, o William John Thoms, que foi o bibliófilo que cunhou esse termo, não se preocupou em conceituar, porque ele tinha essa impressão de que as pessoas teriam facilmente do que é folclore, simplesmente pela palavra, porque ele estava ali pensando numa grande amplitude. Ele estava falando sobre medicina popular, contos populares, danças, cantigas, todo esse grande apanhado”, explica o jornalista, idealizador do Poranduba, podcast especializado em folclore (que também abordou de forma crítica a série de Saldanha no episódio mais recente).


As lendas e mitos seriam, então, uma parte da literatura oral, um dos elementos que integram o folclore. A maioria dessas histórias foram propagadas por séculos em todos os cantos do país primeiramente de forma oral, até serem mapeadas por intelectuais como Câmara Cascudo e, depois, registradas também em livros. Embora muitas lendas conhecidas no país tenham origem na região norte, como a lenda do boto cor-de-rosa, por exemplo, é verdade que elas existem, com suas particularidades, em todo o país. No Rio Grande do Sul, é famosa a lenda do Negrinho do Pastoreio, que fala de um menino escravizado e se tornou bastante popular na era abolicionista. Ao mesmo tempo, também existem lendas urbanas contemporâneas, como a história da loira do banheiro.

Como explica Costa, a formação do imaginário popular brasileiro vem do encontro entre o indígena, o negro e o branco, que, marcado pela violência e pela subjugação na história, foi de certa forma sintetizado nessas representações simbólicas. “Só que, ao longo dos séculos, essa lenda já foi tão transformada que é muito difícil falar que elas são só pertencentes a um povo”, avalia Costa.

Para o pesquisador, as lendas continuam até hoje refletindo o panorama sociocultural do Brasil. “Quando vemos negros sendo espancados na rua, estamos vendo uma atualização no mito do Negrinho do Pastoreio. Quando falamos desta lenda, estamos falando de uma história sobre racismo e sobre violência”, observa.

Construindo processos artísticos decoloniais

“As Icamiabas na Cidade Amazônica” (Foto: reprodução)

Um dos exemplos mais criativos do uso das lendas no fazer artístico contemporâneo é a animação “As Icamiabas na Cidade Amazônia”, de Otoniel Oliveira e Petrus Medeiros. Uma produção paraense, “as Icamiabas” tem inspiração futurista, propondo a construção de uma sociedade indígena livre das feridas coloniais. E se os brancos nunca tivessem colonizado o país, como seria a sociedade brasileira? A pergunta guia o roteiro dos autores, que realizaram um imersivo processo de pesquisa em folclore brasileiro e em culturas indígenas.

Segundo a lenda, as icamiabas eram mulheres guerreiras que formaram uma sociedade matriarcal. Nos primeiros anos da invasão dos espanhóis à América Latina, um explorador teria avistado as icamiabas, chamando-as de “amazonas”, nome dado pelos gregos às mulheres guerreiras, como conta esta matéria do Instituto Socioambiental. Na série, elas comandam a Cidade Amazônica, que é em sua essência multicultural, mas nunca foi pautada por escravidão, extermínio e migração forçada. Lançada em 2016 em Belém do Pará, a série de 5 episódios de 11 minutos está em processo de distribuição.

Conversamos com os criadores da série sobre o processo de criação. “Uma sociedade indígena não são todas. Um livro não representa toda uma cosmologia. Temos que saber que tem diferentes entre cada uma dessas questões, e escolhas que temos que fazer”, frisa Otoniel. Para o roteirista e animador, “se a gente quer uma sociedade que seja respeitosa, que se coloca como algo que possa desconstruir a colonização do lugar, é essencial que a gente trabalhe com esse conceito de quem fala, com quais condições e possibilidade e de que lugar”, avalia o artista, que posteriormente trabalhou com a roteirista indígena Kudã Tembé-Tenetehara em outro filme.

Confira a entrevista na íntegra:

Nonada – Por que, entre todas as lendas, vocês escolheram especificamente a lenda das Icamiabas como inspiração? Já trabalhavam com folclore antes?

Otoniel Oliveira – As icamiabas vieram de um projeto que seria a continuação de um quadrinho que eu fiz em 2005, com uma parte da equipe que acabou trabalhando na série. A ideia do quadrinho era pegar narrativas orais indígenas e adaptar para os quadrinhos. Depois, a gente quis fazer uma continuação e começou a discutir qual seria. Isso coincidiu com o trabalho de mestrado que eu estava fazendo, que passava pelo estudo lírico dessa narrativa.

Essa narrativa tem muito a ver com a gente, uma perspectiva de uma Amazônia decolonial. Aqui na Amazônia, a gente tem uma relação com o matriarcado um pouco diferente do que a gente tem comumente nas sociedades brasileiras. Tem uma presença matriarcal herdada. Não é que não tenha machismo estrutural, mas para mim me marcava muito essa presença da força feminina. Então, fazer “as Icamiabas” era uma forma de discutir o que eu imagino que seja uma origem conceitual dessa presença matriarcal quanto tentar construir um produto pop que não fosse baseado numa relação já requentada do protagonista masculino resolvendo as coisas.

Nonada – Como foi o processo de transpor a cultura amazônica para a tela? Pode dar detalhes das referências?

Otoniel Oliveira – Um dos grandes desafios é conseguir entender quem nós somos nesses processo inteiro. Muito de representar a cultura é a gente entender que a dimensão cultural em que estamos inseridos tem características diferentes do que aquilo que a gente enxerga fora. Esse é um processo de decolonização que não é muito fácil de fazer quando a gente trabalha com produtos culturais. A gente geralmente fica respondendo a questões de fórmulas que a gente acha que é o que está certo na cultura pop e do que deve ser feito. Então é uma forma de tentar conscientemente não seguir certas regras. Olhar pra gente, olhar para um outra forma de a gente trabalhar é o grande lance.

Outro ponto era que a gente estudasse um pouco isso. Uma parte do meu projeto acadêmico foi viajar, fazer pesquisa de campo nas aldeias, debater sobre esses processos com os indígenas. Muito do que eu tinha pensado mudou e depois fui para uma pesquisa bibliográfica. Mas em todos esses processos temos que ter cuidado, porque existe um filtro. Mesmo que tu vá para uma sociedade indígena, é uma dentre os 240 povos diferentes, etnias indígenas diferentes que temos no Brasil. Uma sociedade indígena não são todas. Um livro não representa toda uma cosmologia. Temos que saber que tem diferentes entre cada uma dessas questões, e escolhas que temos que fazer. Pesquisei livros sobre o assunto, tanto os tradicionais, Câmara Cascudo, Monteiro Lobato, como alguns mais específicos, como O Dicionário de Lendas Amazônicas, os livros de Alcir Monteiro, que é um autor pouco conhecido fora de Belém. Mas o principal foi que a gente se olhasse, que eu acho que dentre todos esses exercícios é o mais difícil.

Nonada – Nas redes sociais, ativistas indígenas têm se manifestado questionando o folclore e especificamente as lendas brasileiras baseadas em histórias indígenas. Qual a avaliação de vocês sobre esse debate?

Otoniel Oliveira – Isso é muito interessante, é uma das questões que mais tem me tocado e tocado esse meu contato com os indígenas. É um questionamento muito relevante e essencial, pra gente discutir vários aspectos da nossa construção de um produto dentro da indústria cultural e da nossa responsabilidade ao construir esse produto. Pra isso, temos que entender as condições e possibilidades. Por exemplo, quando eu fiz a sala de roteiro inicial das icamiabas, eu não tinha contato com roteiristas indígenas. Mas durante o processo, a gente fez oficinas e trabalhos com a sociedade indígena que eu tive contato, para que a gente pudesse dar ferramentas para que a existissem autores e autoras indígenas. Por isso que “A história de Zahy”, um curta-metragem que eu fiz a seguir, foi escrita por uma roteirista indígena, a Kudã Tembé-Tenetehara.

Esse é um processo contínuo. Se a gente quer uma sociedade que seja respeitosa, que se coloca como algo que possa desconstruir a colonização do lugar, é essencial que a gente trabalhe com esse conceito de quem fala, com quais condições e possibilidade e de que lugar. Dentro desse processo de construção de uma adaptação para a indústria cultural, é claro que a gente passa por diversas questões. E essas questões têm que ser trabalhadas com muita sinceridade, respeito e estudo. Não pode ser um estudo superficial, como o feito no google. Isso faz com que o trabalho, além de não ser ético, não fique tão profundo e adequado ás demandas sociais que a gente vive. Então por exemplo, Tupã não é um deus indígena originalmente, é uma adaptação. Tupã vem de um barulho, da forma como os guaranis chamavam o relâmpago. Então como os jesuítas estavam muito a fim de traduzir o conceito de divindade para os indígenas, eles falaram “é, essa relação divina, esse relâmpago, essa força de que vem dos céus, isso é uma manifestação de deus”.

Então no universo das “icamiabas”, a gente trabalha isso, mas o deus Tupã é um apelido que ele adquiriu com o tempo. Cada sociedade tem a sua religiosidade, sua forma de trabalhar, sua cosmologia, e a sua relação com o mundo. Eu vejo que as críticas são necessárias, devem vir. Ao mesmo tempo, uma das responsabilidades da cultura pop é trazer, de uma forma respeitosa para a discussão, universos, para que a gente, de uma forma respeitosa, bem pesquisada, consiga perceber aquilo como algo que se deva se aprofundar em outras fontes, e que a gente entenda que a mesma lógica que se aplica naquela sociedade não é a que se aplica em todos os mundos. Tem que ter alteridade. Quando vem esse questionamento dos ativistas e dos pensadores indígenas, é uma coisa que é essencial para a gente trabalhar. Ao mesmo tempo, vejo que produtos como esse que a gente produziu tem um objetivo muito claro, que é a decolonização do olhar. É uma sociedade amazônida, futurista, que tem entre outras referências, as sociedades indígenas como protagonistas. Queremos que seja visto como a naturalização de uma possibilidade, de um conceito. E não como uma forma de tradução simplificada.

Petrus Medeiros – Essa sociedade multicultural, multifacetada que a gente vive hoje foi marcada por dois elementos fundamentais. Ela foi marcada por uma invasão, uma colonização europeia e pela escravidão de pessoas negras. A premissa futurista da série é: “e se ao invés disso, tivessem existido esses encontros entre povos tão diferentes mas que não fossem matizados a partir da colonização, do capitalismo e da escravidão? Que tipo de sociedade amazônica surgiria aí?” Claro que o próprio nome “Amazônia” é fruto desse processo, mas a intenção é justamente pensar que sociedade seria essa.

Imaginando essa perspectiva, a sociedade indígena teria um traço muito mais forte, porque era a maioria da população que vivia aqui [na época da colonização] e produziria uma sociedade para além do capitalismo. A ideia é quebrar com vários paradigmas coloniais, como a separação entre o que é cidade e o que é o campo. A ideia de uma cidade floresta quebra com esse paradigma e é um pouco do que a gente busca, como por exemplo movimentos como a agroecologia e a Permacultura. O traço indígena da série é como se fosse um grito contra esse apagamento, esse extermínio que aconteceu, que faz com que tenhamos hoje muito menos traços indígenas. É uma perspectiva que nos traz muito desejo de criar, de imaginar. A Cidade Amazônia é a ideia de uma outra perspectiva para além do Estado e do capitalismo.

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