O futuro do setor cultural pós-Lei Aldir Blanc

Ester Caetano
Ilustração: Joanna Lira

Um dos primeiros setores a parar completamente suas atividades devido à pandemia de covid-19, o setor cultural permanece em hiato quase um ano depois dos primeiros cancelamentos. Sessões de cinema, peças de teatro, show de música, concertos e exposições de arte foram interrompidas logo no início da descoberta do vírus no País. O Brasil descobriu que não apenas os artistas dependem da renda gerada na área, como também motoristas, mecânicos, figurinistas, costureiras, maquiadores, logística, montadores de palco, técnicos, além das comunidades tradicionais e mestres da cultura popular. Ao todo, são 5,2 milhões de trabalhadores atuando no setor, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, divulgada em 2019 – dos quais 2,4 milhões atuam sem carteira assinada.

Aprovada com atraso e executada no final de 2020, a Lei Aldir Blanc injetou ânimo e R$ 3 bilhões no setor de forma descentralizada. Pela primeira vez, muitos municípios que sequer tinham um plano para a cultura (re)conheceram os trabalhadores e espaços culturais que fomentam a cidadania e a economia locais. “Municípios com menos de 5 mil habitantes, onde a prefeitura não tinha Secretaria, nem planejamento e sequer orçamento para as ações do setor foram desafiados a enxergar as práticas culturais de seu território como um valoroso ativo simbólico e econômico”, observa a presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes de Cultura e secretária de Cultura do Estado do Pará, Úrsula Vidal. Ainda assim, muitas prefeituras descumpriram a lei e se abstiveram de aplicar corretamente os recursos, como o Nonada Jornalismo mostrou nesta reportagem.

Agora, gestores públicos e parlamentares avaliam como sua construção pode se tornar um modelo para que mais recursos cheguem aos trabalhadores da área. Em tramitação desde outubro na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 4784/20 pretende determinar que o montante do Fundo Nacional de Cultura seja periodicamente executado de acordo com distribuição aos moldes da LAB. Atualmente, é o governo Federal quem decide quais projetos artísticos recebem anualmente o saldo do Fundo.  Conforme a proposta do PL, 60% dos recursos deveriam ser direcionados aos municípios e Distrito Federal; 39% aos estados e ao Distrito Federal; e 1% para manutenção das atividades do FNC.

Analisando a estrutura que se formou com a LAB, a deputada federal Maria do Rosário (PT), uma das autoras do projeto na Câmara, conta que a continuidade do modelo começa na necessidade de uma avaliação da própria LAB. “A comissão de cultura que deve ser instalada neste ano deve previamente ouvir a comunidade cultural, fazer uma avaliação da lei e verificar todos os caminhos para que ela seja replicada  da melhor forma possível, com ajustes que venham ser necessários para não deixar de atender realmente o seu objetivo”, acredita.

Busca ativa para descentralizar os recursos 

Objetivo da LAB era atingir manifestações culturais na sua pluralidade (Foto – agência Brasil)

Muitos foram os desafios para que realmente a lei atingisse o objetivo de chegar a quem mais sofreu com a crise imposta da pandemia do coronavírus no setor cultural. A secretaria Úrsula Vidal avalia que a falta de informação e a dificuldade de acesso à internet são obstáculos que demandaram um trabalho do governo na divulgação dos editais e chamadas públicas. “No caso do Pará, esforços imensos e parceirizados foram empreendidos numa busca ativa para chegarmos onde havia parentes indígenas isolados, comunidades quilombolas, extrativistas, ribeirinhas em áreas extremamente remotas. Um trabalho delicado e cuidadoso de cadastramento na língua nativa de cada povo e na oralidade dos não letrados, para garantir acesso aos direitos previstos na Lei Aldir Blanc a quem esteve, por décadas, na mais perversa invisibilidade para as políticas culturais” , relata.

Embora tenha facilitado a descentralização do dinheiro, a capilaridade da lei fez com que também os cadastros de espaços culturais e profissionais da Cultura criados a partir da LAB tenham ficado dispersos.  Portanto, não é possível ter uma visão geral e sistêmica a respeito do objetivo primordial da lei, ou seja, socorrer o setor em sua totalidade. “Não tenho ainda como analisar esse diagnóstico, pois cada município, cada Estado e o Distrito Federal teriam como tarefa, através das suas próprias legislações e planos de cultura, construir um plano de ação e um planejamento de aplicação da lei”, diz a deputada Benedita da Silva (PT),  também uma das autoras do projeto da LAB.

Para Úrsula, a fragilidade do Sistema Nacional de Cultura, que nunca chegou a ser estruturado de fato, pegou os gestores de surpresa. “Não havia Plano Nacional sendo executado e que pudesse nos guiar de maneira mais assertiva. Não havia cadastro unificado. O Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais estava desatualizado, desmantelado em sua missão exordial. Enquanto tateávamos no escuro, muita informação fundamental para o fortalecimento das políticas públicas na área da cultura circulou à velocidade da luz. O auxílio dos coletivos, associações e fóruns culturais foi determinante para garantir a democratização dos recursos. Foi uma tarefa árdua”, conta.

Do total de municípios brasileiros, 76% tiveram seu plano de ação para a aplicação da lei aprovado pelo governo. No início do ano, o governo editou uma MP que permite a prorrogação dos prazos para os municípios que se cadastraram no sistema.  Agora, ativistas e parlamentares trabalham para que o saldo não utilizado do total de R$ 3 bilhões possa ser reaproveitado.  

Fundo Nacional de Cultura

A deputada Benedita da Silva relata que o objetivo da LAB era fortalecer o Sistema Nacional de Cultura e impulsionar um equilíbrio econômico na área, tendo em vista o grande desemprego e informalidade do setor. “Um dos pontos que nos incentivou a construir essa lei foi o fato do executivo não ter apresentado nenhuma solução e manter contingenciado a verba do Fundo Nacional de Cultura, além de não ter executado os recursos destinados às instituições vinculadas”, diz a deputada.  

Vale reconhecer a existência de fundos voltados à cultura para a movimentação de políticas públicas que garantam o incentivo a manifestações culturais de pouco interesse do mercado. O Fundo Nacional de Cultura integra o Programa Nacional de Apoio à Cultura, principal estrutura estatal voltada ao fomento a projetos culturais no país. Recebe recursos do Tesouro Nacional, doações, saldos não utilizados da LIC, o equivalente a 1% da arrecadação dos Fundos de Investimentos Regionais, entre outras fontes. Em 2018, depois de grande mobilização do setor, o Senado aprovou a MP 846/2018, que garante repasses de 2,91% da arrecadação de loterias como Mega Sena e Quina ao FNC.

O FNC tem como objetivos estimular a distribuição de recursos de forma equivalente nas regiões do Brasil, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos criadores, preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro, além de proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional. Desta forma, o funcionamento do fundo é assegurado por lei, tal como o acesso e o fazer cultural é garantido pela Constituição Federal, em que seu Art. 215 apresenta: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. 

Cabe ao governo deliberar sobre o destino dos recursos, que são direcionados a editais, viagens e intercâmbios de profissionais da cultura, além de fomento direto a empresas e instituições selecionadas pelo governo. Nos últimos anos, entidades como a Fundação Bienal de São Paulo, o Instituto Empreender e a Sociedade Amigos da Cinemateca foram contemplados pela verba do FNC.

Entrevista: Úrsula Vidal

Nonada –  Quais foram os maiores aprendizados da Lei Aldir Blanc? Como o Fórum de Secretários avalia a continuidade da LAB através de modelos semelhantes?

Úrsula – A Lei Aldir Blanc nasceu como num parto prematuro, quase aflito, chorando as dores do isolamento, das perdas, das angustias diante de um futuro incerto. No decorrer destes longos meses de construção e execução da Lei, nós, gestoras e gestores, partilhamos métodos, formatos, experiências, pereceres jurídicos. Partilhamos temores, formulamos saídas. A articulação necessária para executar esse volume expressivo de recursos gerou um ambiente incrivelmente colaborativo, ágil, transversalizado e atomizado, inclusive na relação com os municípios. Histórias bem bonitas e inspiradoras emergiram. Municípios com menos de 5 mil habitantes, onde a prefeitura não tinha Secretaria, nem planejamento e sequer orçamento para as ações do setor foram desafiados a enxergar as práticas culturais de seu território como um valoroso ativo simbólico e econômico. Cidades que deram um salto quântico na direção da cidadania cultural de sua gente. 

Em relação à continuidade da LAB, sabemos que ela chegou em um período de excepcionalidade e ainda está em plena execução. Mas já nos deixou um legado organizativo fabuloso, que nos servirá para sempre! Precisamos unir forças pra lutar também por direitos já consolidados, como a aplicação dos recursos do Fundo Nacional de Cultura, que tem um saldo acumulado e não repassado de quase 3 bilhões de reais. Os recursos da LAB vieram de créditos extraordinários. O FNC precisa implementar ações que irriguem a política cultural nos estados e municípios.

Nonada – Quais foram os maiores obstáculos na aplicação da lei? Os recursos realmente chegaram na ponta, nos mestres de cultura popular e comunidades tradicionais, por exemplo?

Úrsula – A descentralização dos recursos para os 26 estados e DF e os 5.570 municípios brasileiros – fruto de ampla articulação – foi um imenso e necessário desafio estrutural e organizativo, que nos defrontou com a ausência de um importante protagonista: o Sistema Nacional de Cultura. Não havia Plano Nacional sendo executado e que pudesse nos guiar de maneira mais assertiva. Não havia cadastro unificado. O Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SEIIC estava desatualizado, desmantelado em sua missão exordial. Enquanto tateávamos no escuro, muita informação fundamental para o fortalecimento das políticas públicas na área da cultura circulou à velocidade da luz. O auxílio dos coletivos, associações e fóruns culturais foi determinante para garantir a democratização dos recursos. Foi uma tarefa árdua.

 De dentro de cada estado emergiram novos Brasis. Manchas territoriais gigantes de apagamento digital. Exclusões sobrepostas na falta de acesso à internet, à rede bancária, à política pública de assistência durante a pandemia. No caso do Pará, esforços imensos e parceirizados foram empreendidos numa busca ativa para chegarmos onde havia parentes indígenas isolados, comunidades quilombolas, extrativistas, ribeirinhas em áreas extremamente remotas. Um trabalho delicado e cuidadoso de cadastramento na língua nativa de cada povo e na oralidade dos não letrados, para garantir acesso aos direitos previstos na Lei Aldir Blanc a quem esteve, por décadas, na mais perversa invisibilidade para as políticas culturais. Conseguimos cadastrar por este método mais de 4.200 agentes culturais em 700 comunidades do Pará.

Nonada – Também havia a expectativa de que com a lei, se criasse um cadastramento, através da capilaridade, dos artistas e demais fazedores de cultura. O Fórum tem dados ou alguma avaliação sobre essa questão?

Úrsula – Com a falta do SNIIC, cada estado foi obrigado a implementar sua própria metodologia cadastral. A Dataprev tem hoje uma ampla base de dados, porque concentrou as demandas de validação cadastral de todos os agentes culturais do país que solicitaram o auxílio emergencial. Precisamos reativar o SNIIC e alimentá-lo com essa riquíssima cartografia construída durante a execução da Lei Aldir Blanc, que ampliou a dimensão de quem somos, onde estamos e como atuamos em nossos saberes e fazeres artísticos e culturais. Um Brasil que se forjou, ao longo de séculos, na expropriação de terras, de tradições e crenças, de riquezas materiais e simbólicas e que, no meio de uma pandemia, se voltou para dentro, para o fundo de sua identidade.

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redaçõesrealizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo Representativo, com o apoio do Google News Initiative

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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