Relatório mostra que governo Bolsonaro desacelerou a regularização fundiária de territórios quilombolas

Abraji
Foto: Fórum de Comunidades Tradicionais/divulgação

Relatório do projeto Achados e Pedidos lançado na sexta-feira (16) mostra que a regularização de territórios quilombolas chegou aos menores níveis desde 2004. Segundo o estudo “Direito à terra quilombola em risco – Reconhecimento de territórios tem baixa histórica no governo Bolsonaro”, as duas etapas que envolvem a regularização dessas terras apresentaram declínio.

Em 2020, foram apenas 29 certificações – uma queda de 58% em relação a 2019. Nesse mesmo ano, somente uma titulação foi completada. Para as pesquisadoras, os números são um dos efeitos do enfraquecimento da estrutura socioambiental federal nos últimos dois anos.

O Achados e Pedidos é uma iniciativa realizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Transparência Brasil, em parceria com a Fiquem Sabendo e com financiamento da Fundação Ford. Em uma plataforma on-line, o projeto reúne milhares de pedidos de acesso à informação de cidadãos e as respostas da administração pública feitas via Lei de Acesso à Informação (LAI).

A certificação, primeiro passo para a regularização de um território quilombola, é de responsabilidade da Fundação Cultural Palmares (FCP). A titulação, que oficializa a posse da terra para as famílias remanescentes de quilombos, fica a cargo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A pesquisa mostra que a Fundação Palmares reduziu o ritmo de concessão de certificações nos últimos dois anos. A taxa de resolutividade de processos (a relação entre processos concluídos e o estoque de processos em tramitação) caiu de 45% em 2018, último ano do governo Temer, para 25% em 2019, já com Bolsonaro no poder.

A titulação pelo Incra envolve diferentes fases: elaboração de Relatório de Identificação e Delimitação, publicação do Relatório no Diário Oficial da União, desapropriações, reconhecimento, entre outros. As tramitações de processos de titulação por essas fases no biênio 2019-2020 representam o menor número desde o início da série histórica em 2005. A queda foi de 71% em 2019 na comparação com 2018, passando de 45 para 13, e de 69% em 2020, com apenas quatro movimentações.

Para Maria Vitória Ramos, cofundadora da Fiquem Sabendo, os dados obtidos, tratados e analisados no relatório não deveriam depender da ação de terceiros: “É responsabilidade da FCP e do Incra publicar e atualizar as bases de dados que quantificam as atividades fim de cada órgão. Além das inconsistências nos dados oficiais disponibilizados, o preenchimento incompleto das planilhas não permite concluir quantas famílias foram beneficiadas nem a área total demarcada pelos órgãos”.

O texto do documento lembra que a gestão Bolsonaro já deixou clara sua política pública para essas populações. Antes mesmo de chegar ao Palácio do Planalto, o então presidenciável avisou que não demarcaria nem um centímetro a mais de terras indígenas ou quilombolas. Além disso, o autor da declaração “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas” – se remetendo a um quilombo em Eldorado Paulista (SP) – defendeu o arrendamento dos territórios para exploração da mineração.

O jornalista Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, instituição que tem entre os seus comprometimentos o combate ao racismo e a preservação da cultura negra, foi alvo de inquérito por crime de racismo, assim como o presidente Bolsonaro. Em abr.2020, Camargo se referiu ao movimento negro como “escória maldita” e ao líder quilombola Zumbi dos Palmares como “filho da puta que escravizava pretos”.

Segundo o relatório, “o discurso é colocado na prática de três principais formas: falta de transparência sobre a execução das políticas, esvaziamento institucional e redução de orçamentos aos menores índices da história recente”.

Falta de transparência 

O levantamento sinaliza o que já vem acontecendo em outras áreas do governo federal, como o ministério da Saúde: informações que deveriam ser públicas e consistentes, se revelaram instáveis e inconclusivas. “A busca pelos dados relativos à certificação e demarcação de territórios quilombolas evidenciou os problemas na transparência ativa federal nessa área”, diz Marina Atoji, gerente de projetos da Transparência Brasil.

Os dados de certificação são disponibilizados em formato aberto no site da FCP, mas estavam desatualizados; foi necessário fazer um pedido de informação para que a autarquia atualizasse a página. Os dados de titulação de terras quilombolas foram obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto ao Incra, pois o órgão publica apenas apresentações em PDF defasadas.

Falta de reconhecimento gera insegurança jurídica

(da Redação)

Integrante da Frente Quilombola do Rio Grande do sul, o advogado Onir de Araújo se diz preocupado com o ritmo das regularizações. “Atualmente, segundo a Fundação Cultural Palmares, são em torno de 136 comunidades quilombolas certificadas no estado, e tituladas são 4, desde a Constituição. Se continuar neste ritmo de quatro comunidades tituladas a cada 30 anos, imagina o tempo que iremos levar para as titulações completas”, afirmou em entrevista ao Nonada.

Segundo o advogado, a falta de certificação tem gerado brechas que colocam em risco a situação dos quilombolas no estado. “Aqui em Porto Alegre, tivemos duas comunidades que os grileiros argumentam que as comunidades não estão tituladas, que os processos no Incra não andam, para justificar reintegração de posse em plena pandemia”, alertou. Apesar da presença histórica das comunidades quilombolas em seus respectivos territórios, o não-reconhecimento oficial pode acabar servindo de argumento para o agronegócioe para a especulação imobiliária. “A demora da titulação gera uma insegurança jurídica, permanentemente você está ameaçado. Como também as posses precárias dos grandes centros urbanos.”

Confira aqui a entrevista com Onir.

Leia aqui o relatório na íntegra.

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