Batendo o pé na nossa cultura: a trajetória de Cassandra Calabouço

Ícaro Kropidloski*
Foto: Rafael Guedes/DUSTED

“Até hoje, toda vez que eu vejo uma drag eu fico com a mesma sensação de euforia, eu sinto isso. Não tem como ver uma drag queen e ficar com cara de paisagem, fingir que não viu.” Quem diz isso é  Nilton Gaffrée Júnior, artista e bailarino gaúcho que dá vida, há mais de 20 anos, à Cassandra Calabouço. 

O batismo da drag foi feito durante a juventude de Nilton por um amigo cabeleireiro que, ao confortá-lo durante um término de relacionamento, sentenciou: “Não fique triste! Um dia tu serás uma grande drag queen. E vai se chamar Cassandra Hills, não…peraí… vai se chamar Cassandra Calabouço, porque vai ficar trancada e sair só de vez em quando.” De lá pra cá, para nossa sorte, Cassandra fica cada vez menos no calabouço, se apresentando na cena local e bebendo de diferentes referências: desde releituras de clássicos dos Originais do Samba até músicas contemporâneas em espanhol, francês e inglês. 

Nessa trajetória, Cassandra Calabouço nasceu e cresceu de forma natural dentro do Nilton e, segundo ele mesmo diz, desde a sua infância: “A sensação que eu tenho é que a Cassandra me acompanha há muito tempo, porque ela vem do meu desejo de explorar uma coisa que não é do meu cotidiano, não é a minha vivência. Eu gosto dessa coisa de experimentar, de ter e performar outra vivência”.

Desde pequeno, Nilton foi fascinado pelas mulheres da sua vida: a mãe e suas três irmãs. Memórias afetivas como o cheiro da maquiagem materna, por exemplo, seguem presentes até hoje nos seus processos criativos. “Me lembro também das minhas irmãs se aprontando para ir pra balada, eu achava aquilo o máximo! Eu queria ser adulto e ir pra balada ver o que acontecia. Elas eram muito vaidosas, então era sempre cabelo e essas coisas, nossa!” relembra. 

O universo feminino era explorado de forma solitária: “Me enfiava no guarda-roupas dela (a mãe), pegava um salto alto. Eu aprendi a andar de salto assim, sozinho. Então, sabe? Eu acho que essas coisas já estavam assim, aqui. Eu já tinha isso”.  Aos 21 anos, Nilton entrou em um grupo de dança, período no qual, segundo ele, conseguiu se entender e “sair do armário”. Nessa época, mais especificamente em 1994, o filme Priscilla, a Rainha do Deserto ampliou as possibilidades da arte transformista. A obra foi uma renovação de estilos possíveis a partir das perucas, cores e atitudes eternizadas no cinema. 

Nilton e Cassandra, artista e arte, autor e obra, não passaram batido por isso. Foram diretamente afetados por essa referência, vivendo a noite porto-alegrense, se entendendo e fazendo o caminho, caminhando. Foi na noite que reencontros e parcerias que duram até hoje ocorreram. É o caso da amizade com a drag Charlene Voluntaire, parceira dos palcos e da vida.

Em abril, as duas, junto com outras artistas drag queens de diferentes idades e vertentes, participaram do Festival Poa In Drag. O evento foi online e teve como objetivo apresentar e popularizar a arte drag junto ao grande público, além de oferecer oportunidades de trabalho e aprendizado para a classe artística, fortemente impactada pela pandemia da Covid-19.  Antes da pandemia, Nilton também ministrava o Pimp My Drag, um workshop para drags aspirantes ou veteranas, de todas idades, gêneros e orientações sexuais, uma oportunidade para qualquer um aprender sobre a arte de se montar. 

A questão é que: seja nos palcos, nas telas ou nas salas de aula, Cassandra Calabouço segue fazendo arte. Conversamos com ela sobre trajetória, pandemia e cultura! Leia a entrevista: 

Foto: Candy Diazy/divulgação

Nonada – Quais são as suas referências e como é o seu processo artístico?

Cassandra Calabouço – As minhas referências musicais são de um amplo espectro. Eu posso dizer que, musicalmente, eu sou aquilo que chamam de eclética. Gosto e ouço muita coisa. Mas geralmente o que eu gosto de dublar são coisas em português, depois espanhol, depois em francês e por último em inglês. Eu evito bastante dublar coisas em inglês, eu dublo em inglês em último caso. O grosso do meu processo artístico, quando eu tenho que criar, o que mais tá em mim, são as coisas da cultura musical brasileira, MPB e todo o resto. É o que eu gosto e é o meu desejo de afirmação, sabe? 

Sou anti-ianque, admiro e acho que ninguém faz entretenimento como os norte-americanos, mas eu quero bater pé na nossa cultura! Eu acho que a gente é melhor, na verdade não é nem questão de ser melhor, é questão de apenas ser. A gente é. Eu não acho que eu sou melhor que eles, só não acho que eles são melhores que nós. A gente é muito bom, eu me satisfaço culturalmente. Eu não tenho essa coisa de “ai os Estados Unidos, eles são os caras!” Não, eles são muito bons, mas a gente tem muito talento, eu adoro. Eu tenho esse gosto, porque cresci ouvindo samba e música que hoje a gente diz que é brega. Era o que eu ouvia no rádio, mas também ouvia música clássica, tango, bolero. Meus pais adoravam bolero, meu pai adorava samba. Então isso tudo vem da minha família, essa coisa musical. 

Nonada – Como a pandemia afetou a arte drag?

Cassandra Calabouço – Eu entendo que quando a gente se monta, a gente quer o contato com o outro. A gente não quer se montar só pra ficar se olhando bonita em casa. A gente quer ouvir do outro,  tirar uma foto, postar, ter a interação com o público. A gente quer, digamos assim, ser famosa. A gente quer dar o close, ser a Pabllo Vittar e a RuPaul. O que eu quero dizer é que existe um desejo grandioso dessas personas, as drags querem ser pra fora e daí é caro. É muito caro montar uma drag, mas normalmente os cachês são baixos. E o que fecha essa conta entre o que se deseja e o que se consegue é o teu bolso. Se eu desejo fazer uma drag luxo com a melhor maquiagem, o melhor figurino e a melhor peruca, então vai ter um custo. Se tu não pode pagar, vai trabalhando com adaptação, vai criando. E isso eu acho o mais mágico da drag queen, é ser punk! Porque eu acho que drag é contracultura! Inclusive, tem que lutar contra o capitalismo e não a favor. Eu não posso como drag virar consumista de grandes marcas, não é isso que eu quero. Eu quero é dar um truque, fazer um CC [logotipo] de Chanel com aquele alumínio que vem dentro da lata de Nescau e transformar aquilo na jóia mais linda. Mas essa é a minha linguagem artística. 

Mas daí o que acontece? A maioria das drags hoje em dia ambicionam trabalhar e aqui em Porto Alegre a gente tem essa coisa de palco. Têm dois bares aqui que contratam drag queens com bastante regularidade. Tem o Vitraux Club, uma casa com quase 40 anos, uma boate maravilhosa e chiquérrima. O tempo de existência do Vitraux é o tempo de existência e resistência da arte do transformismo em Porto Alegre, é um lugar muito importante para tudo que a gente vê hoje na cena. Grandes artistas de Porto Alegre nasceram lá e é uma casa que contratava, antes da pandemia, pra shows todo domingo. Outro lugar forte que contrata drag sempre é o Workroom, um bar ali na Cidade Baixa que tá completando quatro anos e o dono se esforça muito pela arte drag e entende a importância daquele espaço. E tem muita drag que tá aí  e começou com o Workroom. Daí vem a pandemia, e assim: tem drag youtuber? Tem. Tem drag que é influencer no Instagram? Tem, claro, super tem. Mas aqui em Porto Alegre eu acho que a gente tinha essas possibilidades de cachê, porque tem lugares que em início de carreira te chamam pra trabalhar e trocam por bebida.  

Nonada – Uma chance de retomar os palcos…

Cassandra Calabouço – É, porque é uma classe artística que no geral não é muito valorizada. A gente vê drag queen na televisão e pensa: “Uau, que legal!” Mas as pessoas, na hora de pagar o cachê, não querem. “Ai olha só, eu não posso te pagar um cachê melhor, mas te dou uma comanda, te dou três cervejas”. Rola muito isso mana. As manas trabalham por quase nada, às vezes para ganhar nome. 

E essa classe é tão inviabilizada, tão marginalizada. E historicamente, né? Os artistas da noite, artistas LGBT. Porque é claro, quem nos vê no Instagram acha que a gente é a Pabllo Vittar. Mas não. Eu faço show por 100 pilas, e aí? “Ah, mas 100 pila é um ótimo cachê.” Mas e o Uber, o lencinho umedecido pra tirar isso da cara, a maquiagem pra botar isso aqui na minha cara? E o laquê da peruca, o grampo? Não acho na rua. Sabe quanto custa a cola pra cílio? não sabe. Sabe quanto custa o fixador da peruca? não sabe. Mas enfim, okey…

Nonada – E tem arte drag de todo tipo e para todo mundo?

Cassandra Calabouço – Sim. A potência da arte está na revolução, no que ela consegue revolucionar e tensionar. A arte drag lida com várias expressões, tu pode ser um artista cênico e trabalhar humor, tu pode ser musicista por exemplo. Tem uma drag que é pianista (Loulou Callas), se não me engano em São Paulo, que é maravilhosa. Tem drag que é youtuber, como a Rita Von Hunty que também é maravilhosa, tem drag influencer como a Lorelay Fox coisa mais mimosa, que leva a sério o trabalho. Todas elas levam esse trabalho a sério, porque é isso: a gente enquanto artista vai fazer aquilo que tem capacidade e quer. Cada um vai transformar a sua persona naquilo que quer assim e, claro, no que realmente deseja. E a gente ser artista de cena tem um preço, no Instagram tem outro preço. Em cada espaço tu vai ganhar e perder coisas.

E tem drag de tudo que é tipo! Tem drag que gosta de arrasar nos modelões, vai para esse lado mais fashionista. Tem quem é mais de cena, gosta de bater cabelo e de fazer show. Tem drag mais engraçada e gosta de ser mais caricata e de fazer stand up, tipo eu que comecei a investir nisso. Tem drag de tudo que é tipo e de todos os modelos (risos)! E aí tem mais a coisa da visualidade, tem drag que gosta de pirar na peruca, outras na make, outras no figurino ou no comportamento e atitude. São infinitas possibilidades e isso eu acho genial na arte drag queen: tudo é drag, mas cada uma é única. O legal de ser drag é ser única. 

Nonada – E antes da pandemia começar tu tocavas o pimp my drag. O público desse workshop é amplo?

Cassandra Calabouço – É super diverso! Eu acho que drag enquanto expressão artística não pode jamais fazer qualquer barreira quanto à gênero, orientação sexual, idade. Não faz o menor sentido pra mim. Drag é pra quem quer, simples! Tu quer? Vem fazer e não interessa se é homem, mulher, cis, trans, gay, lésbica. Não importa! Ou se é homem hétero, não importa. Porque a vivência drag é muito legal, é tu te permitir fazer aquilo que tu sempre aprendeu que não podia. Tu pode experimentar o que tu quiser e visualmente também. 

*Jornalista, pós-graduando em Direitos Humanos e mestrando em Comunicação Social pela PUCRS.

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