Música nas escolas: finalmente uma realidade?

Estêvão Grezeli (tocando violão): "Com a volta do ensino coletivo de música, viveremos uma nova etapa" (Crédito: Rafael Gloria)

Quando se fala em ensino de música nas escolas a reação das pessoas geralmente é parecida: a maioria apoia a ideia, mas considera as lições artísticas um mero e dispensável complemento a disciplinas como Matemática ou Física. Um dos argumentos é que música é lazer, entretenimento; que não é coisa séria e não traz conhecimentos significativos para quem não pretende seguir carreira. Será mesmo? O Nonada ouviu alguns especialistas na área e todos foram unânimes: já está mais do que na hora de as escolas brasileiras levarem a música a sério.

Uma conquista que levou décadas

A partir da Lei Nº 11.769, de 2008, a Educação Básica no Brasil precisa se enquadrar em uma nova realidade, já que a legislação tornou obrigatório o ensino de música nas escolas. Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1971, o que existia era a disciplina de Educação Artística, que, teoricamente, englobava todas as artes. No entanto, quem teve a experiência de absorver essa mescla de informações de diferentes conteúdos, através de um profissional que sabia “de tudo um pouco”, comemora a extinção da famigerada disciplina. Ainda mais no caso da música, já que a falta de instrumentos ou de conhecimento técnico sempre serviu como um bom argumento para não ensiná-la.

“Essa lei vem preencher uma lacuna aberta desde 1972, quando diversos conteúdos das artes foram substituídos apenas pela Educação Artística. O professor possuía uma formação polivalente para poder desempenhar um pouco de cada uma das artes em suas aulas. Não quero e nem ouso questionar ou tampouco desmerecer o papel desses profissionais, mas, com a volta do ensino coletivo de música, viveremos uma nova etapa, principalmente no que diz respeito à formação de professores da área, debate esse que já vem a certo tempo sendo pauta da Associação Brasileira de Educação Musical (Abem)”, afirma o professor Estêvão Grezeli, do Colégio João XXIII, em Porto Alegre.

A farsa da Educação Artística

Germano Francisco Schmitz concluiu sua licenciatura em música pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) em 2005. No entanto, já trabalhava com música, lecionando em salas de aula ou oficinas, pois o Ministério da Educação (MEC) ainda não havia promulgado a lei.  Ele é incisivo em relação à importância do ensino de música nas escolas e mostra-se um duro crítico da forma como isso se dava até então.

“Acredito que, a partir de que se tem uma lei nesse país, fica mais fácil de poder moralizar qualquer que seja a prática, tanto na escola como fora dela. A antiga Educação Artística foi um grande engodo no ensino deste país, instituída propositalmente durante a ditadura militar com o propósito de diminuir a capacidade cultural da juventude, pois os movimentos se davam a partir de cabeças que ‘pensavam’. Portanto, Filosofia foi a primeira disciplina a ser riscada dos currículos e as artes (teatro, artes visuais, música e dança) passaram a ser ministradas todas elas por um único profissional, que, no final de seu curso universitário, acabava sem saber o que fazer em sala de aula, pois não há pessoa que consiga englobar tanto e tão diverso conhecimento para passá-lo aos alunos de forma coerente. Disso lembro, pois tive aulas de Educação Artística, e a gente sempre odiou, já que a professora nem sabia ao certo ao que tinha vindo”, lamenta.

“A Educação Artística foi um grande engodo no ensino deste país, instituída propositalmente
durante a ditadura militar com o propósito de diminuir a capacidade cultural da juventude”

A disciplina de Educação Artística não existe mais desde 1996, quando foi promulgada a LDB.  Para Schmitz, isso só ocorreu “graças a um grupo de pessoas que trabalharam arduamente, principalmente professores da área de Educação Musical da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que é atualmente um dos principais centros nessa área na América Latina”.

Música com M maiúsculo

Quando chegou ao Colégio João XXIII, em abril de 2010, Grezeli, que já leciona música há dez anos, não se sentiu um “intruso” ao integrar o corpo docente. Isso porque o João XXIII é uma das poucas escolas da rede privada da capital que sempre teve o ensino de música em seu currículo. Há toda uma estrutura voltada para a disciplina, com cinco professores especializados e ambientes específicos para o ensino coletivo de Música. Sim, Música com letra maiúscula, já que agora não estamos falando apenas de um termo, e sim do nome de uma disciplina escolar.

“Recentemente nosso governador (Tarso Genro) esteve na Coreia do Sul pesquisando sobre a educação do povo coreano. Em menos de 30 anos a Coreia passou de um país basicamente agrário para um país de exportação tecnológica. Um de seus segredos é o foco no ensino de Música na escola, pois a educação deles foca em criar líderes criativos. A música tem um papel fundamental para isso, sem falar que podemos utilizá-la não só como fim, mas como meio para variadas áreas como a neurociência, psicomotricidade, dentre outras”, exemplifica.

“A Coreia passou de um país basicamente agrário para um país de exportação tecnológica. Um de seus segredos é o foco no ensino de Música na escola, pois a educação deles foca em criar líderes criativos”

Já Schmitz está no Rio de Janeiro, prestes a iniciar seu trabalho no Colégio Pedro II, escola federal para o qual prestou concurso no início do ano. “Essa escola, assim que foram promulgadas as novas LDB, voltou a adotar Educação Musical em seu currículo. Eu fiz concurso para professor em Educação Musical, termo que vi pela primeira vez num edita”, relata, empolgado.

Entre suas experiências na área, cita um exemplo de Florianópolis: a Escola Waldorf Anabá, onde trabalhou por três anos. “Ela segue um currículo diferenciado em todos sentidos, o currículo Waldorf. Em Porto Alegre há a Escola Waldorf Querência, que pode ser uma referência para pesquisares sobre o ensino de Música na escola. Nesta pedagogia, a disciplina é parte integrante do currículo desde a pré-escola até o 12º ano, que é o último ano do Ensino Médio. Ela atua aí como um dos principais pilares, se faz presente em todos os momentos, tanto no ensino de outras matérias quanto em festividades, momentos de concentração, aulas de Educação Física, enfim, praticamente todas as atividades se utilizam da música, até como veículo de aprendizado”, explica. “Os professores possuem conhecimentos musicais básicos. É um requisito necessário, e todos trabalham muito em conjunto com o professor de Música”, ressalta Schmitz, que também passou pelo Centro de Ensino Médio Pastor Dohms, em Porto Alegre.

Vantagens sem fim

Músico formado e com mestrado na área de música pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Gerson Rios Leme hoje vive na zona Sul do Estado. Ele atua na área de Som para Audiovisual do curso de Cinema e na Licenciatura em Música da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), além de ser professor de Produção Fonográfica na Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e tutor virtual na área de Educação Musical na Universidade Federal de São Carlos-SP (UFSCar). Não há dúvidas de que Leme respira música, mas o professor avalia o ensino como uma atividade de relevância mesmo para aqueles que não têm a mínima pretensão artística.

“O somatório de todas as diferentes áreas do saber, sejam elas científicas ou artísticas,
é que possibilita uma formação mais ampla e completa para o individuo”

“A meu ver, a obrigatoriedade do ensino de música se faz necessária como qualquer outro conteúdo, pois o somatório de todas as diferentes áreas do saber, sejam elas científicas ou artísticas, é que possibilita uma formação mais ampla e completa para o individuo”, argumenta. Ele recomenda a prática desde os anos iniciais, “pois, quanto mais cedo se criar o hábito no contato com arte, mais à vontade se fica para lidar com a linguagem específica e integrá-la ao cotidiano das pessoas”. Leme cita diversos benefícios que a música proporciona aos jovens, dentre eles “desenvolvimento da percepção sonoro-espacial, expressão artística, desinibição, contato crítico-reflexivo-transformador com culturas variadas, conhecimento histórico-artístico de diferentes contextos e manifestações culturais mundiais”.

Schmitz reforça a importância de tomar todos os cuidados para obter a máxima vantagem que o ensino de Música pode proporcionar. “É preciso saber levar repertórios apropriados a cada faixa etária: criança tem de cantar música de criança, adolescente de adolescente e assim por diante; fomentar a formação de grupos vocais e instrumentais na escola, pois proporcionam momentos importantes de sociabilidade, ajudam positivamente na organização do tempo, de suas coisas, do ambiente ocupado e tantos outros detalhes que envolvem essas atividades: tolerância, amizades, ajuda ao próximo, pontualidade, compromisso e tantos outros benefícios que só vivendo uma atividade assim para se ter profundo conhecimento”, conclui.

Dúvida

Ao finalizar esta matéria, notamos que a Lei Nº 11.769 data de agosto de 2008. Não seria nada demais, não fosse um detalhe: o artigo 3 diz que “os sistemas de ensino terão 3 (três) anos letivos para se adaptarem às exigências estabelecidas nos arts. 1º e 2º desta Lei”. Ou seja, no próximo mês completam-se três anos desde que a lei foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.  A pergunta que fica é: será que todos os “sistemas de ensino” do Brasil já oferecem o ensino de Música na Educação Básica?

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