A outra volta no parafuso

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A obra demonstra a sutileza do estilo requintado de Henry James (Crédto: Divulgação)

Por Edgar Aristimunho*

 O recente lançamento pela Companhia das Letras , agora em tradução atualizada pelo consagrado poeta Paulo Henriques Britto, de A outra volta no parafuso, obra do norte-americano Henry James escrita em 1898, é uma dessas delícias que a leitura dos inícios da madrugada nos coloca. Sim, o leitor tem que se agarrar a esse tipo de livro no silêncio das horas mortas, na calada da noite, porque é assim que ele deve ser lido. E se algum prato cair na cozinha, um copo se mexer sobre a mesa ou você enxergar vultos pela janela, não repare; podem ser os processos criativos de Henry James em funcionamento, ou os fantasmas lhe comunicando. A leitura desse pequeno grande romance enquadra-se, assim, na linha da escrita clássica dos grandes suspenses escritos no século XIX. Então vejamos.

O enredo de A outra volta no parafuso é relativamente simples. Numa noite de dezembro, diante de uma sala cheia de convivas, temos uma narradora (ela é uma governanta) que começa a narrar os fatos passados e que envolveram a época em que estiveram aos seus cuidados duas misteriosas crianças, Miles e Flora. A associação dessas duas palavras (criança e misteriosa) já desperta no leitor de Henry James a sensação de que talvez estaremos nas próximas páginas diante de algo fantástico e ao mesmo tempo aterrorizador. Porque a certo ponto da narrativa a governanta tenta convencer o leitor de que os vultos que enxerga pela janela são, de fato, fantasma; mas ela não pode arcar com isso sozinha, e por isso vê no pequeno Miles um canal de conversação com as vozes do além. Seu trabalho de persuasão dos ouvintes ao longo do romance vai no sentido de colocar no leitor a dúvida – a dúvida aterrorizadora. Como escreveu no posfácio do livro David Bromwich: “As discussões sobre a natureza do enredo concentram-se na questão de serem os fantasmas reais ou não, e no estado de espírito de controle possessivo ou virtude heroica que se apodera da governanta e a leva a dominar os outros”. Ao leitor caberá avançar nesse pântano nebuloso das dúvidas e inquietações de uma narradora que na sua fala beira o absurdo, para não dizer o improvável, o indizível, o impronunciável. Tudo é, contudo, irrelevante para o escritor, uma vez que o mais importante é repassar ao leitor esse clima de mistério e tensão.

Henry James foi uma das principais figuras do realismo no século XIX (Crédito: Arquivo)

A sutileza do estilo requintado de Henry James, muito conhecido pelo leitor brasileiro em livros como A herdeira (1880), Retrato de uma senhora (1881),  Pelos olhos de Mayse (1897), Os embaixadores (1903) e A taça de ouro (1904), surge aqui como um mecanismo descritivo em prol de certa funcionalidade. E esta se resume essencialmente em criar um clima de suspense, de dúvida quanto ao sentido das ações, de puro mistério. Se em várias obras de Henry James estamos acostumados a ver a capacidade descritiva dos extensos enredos amorosos (muitas vezes travados) e a ver os jogos de interesses de uma sociedade baseada nas conveniências, e se ainda por outro lado nos acostumamos a identificar no tom irônico do autor americano a chave para a compreensão da trama (e ela sempre é múltipla para o leitor), em A outra volta do parafuso esse engenharia narrativa está a serviço da dúvida, do mistério, da inquietação de saber quem é quem ao nosso redor. Até mesmo se esse ente existe… A natureza do homem em Henry James é por vezes sutil e enganadora; nunca sabemos com precisa exatidão as reais motivações de suas personagens; nos alivia saber, contudo, que essas estratégias de convívio deixam marcas, trilham caminhos e algumas vezes nos empurram para o impenetrável da mente, para o desconhecido mundo das ações e suas percepções. Estamos diante de um autor moderno.

Ao leitor, antes de se deliciar com o desfecho dúbio de sombra e mistério das páginas finais, percorrerá um longo caminho e nesse caminho o desenvolvimento de sinfonia na qual os elementos vivos do romance realista estarão a serviço da imaginação de uma governanta nitidamente perturbada. E se ao final do livro não ficarmos sabendo se tudo foi fruto de seu delírio e imaginação; ou, ainda, tivemos a sensação dura de que estávamos o tempo todo diante da brutalidade dos fatos, eis uma dúvida irrelevante. A delícia do andamento dessa magnífica história nos envolverá por longas horas, madrugada a dentro.

* É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela Editora Dom Quixote o livro de contos “O homem perplexo” (2008) e participou da antologia “Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com).

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